Programa de Treino

“Independentemente das metas a que se propõe cada equipa no início de cada época desportiva, terá que existir um trabalho programado, que oriente o processo de treino desde o seu começo até ao final.”

(José Mourinho, 2001)

Iremos em breve iniciar a publicação de uma nova parte do nosso trabalho, intimamente ligada ao “todo” que vamos progressivamente construindo. A sua publicação será progressiva, exercício a exercício, objectivos e com várias variantes, até ficar completa a estrutura do Programa, ou seja, o ciclo das 4 semanas.

O Programa de Treino torna-se um desafio e uma descendência do conhecimento e experiência obtidas na investigação que vamos realizando paralelamente à intervenção directa no treino. Estas experiências trouxeram questões e fizeram crescer determinadas necessidades metodológicas visando a eficiência e eficácia do processo.

Deste modo, propomos um Programa de Treino que se constitui numa programação hierarquizada e sistematizada de temas (Momentos do Jogo), sub-temas (Sub-Momentos do Jogo) e Princípios. Procurando também atingir um nível mais profundo de operacionalização, acrescentamos ainda um conjunto de variantes para cada exercício proposto pelo Programa.

Naturalmente usámos a Sistematização do Jogo que desenvolvemos em 2015 e que continua a servir-nos no presente para mapear o jogo e a partir daí garantir vários propósitos ao processo de organização de informação, análise, planeamento e ensino / treino. Também procurámos que o Programa fosse, por um lado, suficientemente fechado para se conseguir um razoável controlo do processo de aquisição e repetição num plano macro, por outro, que também fosse suficientemente aberto para poder ser implementado com diferentes Ideias de Jogo, diferentes níveis competitivos e ainda diferentes escalões etários. Nesta lógica, no âmbito da Ideia de Jogo, será num plano mais micro que se ditarão as diferenças no contexto de cada equipa que adopte este Programa, o que não quer dizer que desse modo estas diferenças sejam menos impactantes do que uma mudança no plano macro (Organização dos Momentos, Sub-Momentos e Grandes Princípios). Recordamos que estamos perante um sistema complexo de extrema sensibilidade às condições iniciais, e como tal, tais diferenças poderão ditar Modelos de Jogo muito diferentes entre si.

“Devemos, por isso, ter em atenção os perigos de treinar só a olhar para o próximo jogo. Recentemente, um treinador partilhava comigo a dificuldade dessa gestão. Imaginem que preparamos a semana toda para enfrentar uma linha de 5 e, durante 3 semanas seguidas, vamos enfrentar linhas de 5. No final dessas 3 semanas, provavelmente, haverá coisas importantes que se podem perder. Coisas que se relacionam com outro tipo de problemas. Por isso, entendo que ao longo de todas as semanas é preciso ir cuidando do todo, para que não arrisquemos empobrecer partes importantes.”

“Fazer muita coisa com qualidade é difícil. É difícil apresentar diversidade de comportamentos bem trabalhados. Mas não é impossível. É preciso tempo, qualidade de treino e qualidade nos intervenientes. Mas teremos de estar sempre conscientes que não podemos treinar tudo. Não podemos ter tudo na nossa forma de jogar, pelo menos para quem acredita na força do pormenor. Para haver padrão tem de haver repetição e entendimento. Isso leva tempo. Temos então de escolher muito bem o que treinar e a quantidade de coisas em que queremos ser fortes. Podemos ter maior variabilidade mas menor pormenor ou ter mais pormenor e menor variabilidade. O que não podemos é ter tudo.”

(Bruno Fidalgo, 2022)

Procurando dar um exemplo, no Programa proposto, o exercício:

B-2OO2A

Semana: B

Sessão de Treino: -2

Tema / Momento do Jogo: Organização Ofensiva

Parte da Sessão de Treino: 2

Exercício: A

O tema da sessão, Momento de Organização Ofensiva estará neste exercício ligado ao momento seguinte, a Transição Defensiva, cumprindo assim o Princípio Metodológico da Articulação de Sentido. Neste enquadramento, e realizando “zoom” no exercício, este terá como sub-temas (Sub-Momentos) a Construção + Criação + Reação à perda, e ainda de forma mais específica, os Princípios o Equilíbrio defensivo em construção + Saída de jogo do GR + Decisão pelo ataque rápido + Construção pela primeira linha + Construção pelo corredor lateral. Assim, se todas as equipas terão, ao longo do jogo, que passar obrigatoriamente por estes e restantes Sub-Momentos, estes grandes Princípios também se situam na mesma lógica.

“a beleza desta forma de pensar o treino, é que no mesmo exercício nós treinamos muitas coisas e é difícil explicar o objectivo de cada exercício, já que ele é muito rico”

(José Mourinho, 2010)

Por uma via ou por outra, ou seja, através dos “comos”, os jogadores terão que saber ler, decidir e executar os diferentes Momentos, Sub-Momentos e Princípios de Jogo. Especificamente relativamente aos últimos, todas as equipas deverão cumpri-los não só para jogar bem, e em alguns casos mesmo, simplesmente para poderem… jogar, como é o caso da Saída de jogo do GR. Agora, se a equipa sai de forma aberta ou fechada, curta ou longa e de que forma(s) específica(s) (que posicionamentos?, que decisões?), o “como”, já estará dependente da Ideia específica de cada treinador. E em função do nível de liberdade permitido pela Ideia (a concepção), se este este assim o entender, da criatividade e aporte que cada jogador, tendo conta a bagagem que possui (a qualidade) possa acrescentar ao Modelo (o real). No mesmo exemplo, o mesmo sucede com o Equilíbrio defensivo em construção e de que forma ele é garantido. Também a Decisão pelo ataque rápido e em que circunstâncias a equipa deve (ou simplesmente não deve) decidir acelerar a progressão e tornar-se mais vertical e agressiva na procura de chegar ao Sub-momento de Criação ou mesmo à baliza adversária se existir essa possibilidade. No mesmo sentido, de que forma, e que variantes adopta na Construção pela primeira linha, podendo, por exemplo, o objectivo ser chegar ao espaço entre-linhas e ao Sub-Momento de Criação, ou então atacar imediatamente a profundidade (o espaço entre a última linha adversária e o seu GR) em passes mais longos verticais saltando assim o momento de Criação para se chegar de imediato à Finalização, ou ainda procurar a variabilidade e explorar ambas as soluções. E finalmente que posicionamentos e decisões se pretendem para a Construção pelo corredor lateral, se é desejada por exemplo em combinações curtas, se em passes mais longos, que variabilidade, se é garantida mobilidade e trocas posicionais e quais as circunstâncias para a equipa o fazer, se procura atrair o adversário fora, para depois procurar a progressão por dentro ou variar o corredor lateral, etc, etc.

Como vemos, emergem ilimitadas possibilidades de configurar a equipa de acordo com a Ideia e até ligá-la ao plano estratégico num contexto de rendimento ou próximo. Podemos então afirmar que as diferenças de equipa para equipa não se situarão no que fazer, mas sim no como o fazer.

“(…) os «exercícios», em si mesmos, têm pouco valor. Têm unicamente informação potencial. A ênfase que eu coloco nisto e naquilo enquanto o «exercício» acontece, o modo como eu ligo isto com aquilo e a articulação entre «exercícios», são os aspectos mais importantes e os mais difíceis de dominar. E dependem exclusivamente do treinador. Por isso é que eu digo que os «exercícios» nunca são novos. Têm de estar sempre relacionados uns com os outros.”

(Vítor Frade, 1998) citado por (Nuno Amieiro, 2009)

Perante este cenário percebe-se que se trata de um desafio extremamente ambicioso e complexo, principalmente se o programa deseja ser transversal a todos os escalões etários. Contudo, acreditamos que tal seja exequível tendo em conta as ideias que vamos abordando e a especificidade do processo que idealizamos. Compreendendo simultaneamente que o exercício de treino é o elemento básico e decisivo na intervenção do treinador. Desta forma, em idades mais baixas, adotando os exercícios propostos pelo programa ou criando novos de menor complexidade, ajustando e cortando também conteúdos em função do escalão etário e tendo em conta o desejável volume de treino nessas etapas de desenvolvimento, o objectivo parece-nos alcançável. Por outro lado, nesse género de processo, serão também importantes, e em função da dimensão do Projecto de Formação, a criação de outras actividades complementares, que garantam outra riqueza e multilateralidade à formação do jovem jogador. Será um outro desafio que o nosso projecto poderá abordar no futuro.

Diversos autores e treinadores, tendo em conta o entendimento que têm do processo, defendem o trabalho semanal através de um Microciclo ou Morfociclo padrão. Independentemente do entendimento e da consequente terminologia, a grande maioria, na actual fase de desenvolvimento do Treino de Futebol, concorda com a importância da sistematização do processo, pelo menos a este nível. Tal terá sucedido, consequência da necessidade de cumprir pilares fundamentais do processo adaptativo, como é exemplo a necessidade de recuperação aos estímulos obtidos. Seja a recuperação decorrente do último jogo disputado, da última sessão de treino, ou do último exercício. Também porque diferentes estímulos pressupõem diferentes períodos de recuperação, não só do ponto de vista físico-energético como também nervoso. Como temos vindo a defender, o processo de adaptação e a consequentemente fadiga, é um todo complexo do qual se torna muito difícil distinguir a maior ou menor influência a suas diferentes dimensões.

Estamos alinhados com os autores que defendem a importância desse padrão no ciclo semanal em função, por um lado, das competições e do desgaste decorrente das mesmas, mas também pelas necessidades decorrentes do próprio processo aquisitivo. Isto, principalmente no caso dos contextos de rendimento. E concordamos também com a visão de Vítor Frade que se materializou no Morfociclo. No entanto sentimos idêntica necessidade de encontrar outro ciclo a maior prazo, que além de salvaguardar as necessidades referidas, também promova uma repetição sistemática de temas tendo em conta a complexidade do jogo, a sua especificidade, a sua lógica acontecimental e determinada cultura que se pretende alcançar, que por sua vez deverá estar alinhada com os princípios fundamentais e específicos do próprio jogo.

Neste enquadramento, pegando no ciclo semanal que vínhamos a desenvolver, o qual já garantia em cada Sessão de Treino protagonismo a um Momento do Jogo diferente, sendo que, como vimos atrás, em cada Exercício esse Momento estaria pelo menos ligado ao Momento imediatamente antes ou imediatamente seguinte de forma a cumprir o Princípio da Articulação de Sentido, chegámos a uma proposta programática de um ciclo de 4 semanas. Deste modo, procuramos promover uma diferenciada densidade de temas em função da sua importância no jogo, mas também que permita uma repetição e consolidação ao longo da época, a qual poderá ser gerida de forma progressiva ou regressiva tendo em conta a avaliação que se vai fazendo do processo. E para tal, como também vimos atrás, o Exercício é o principal meio que o treinador possui, neste e em qualquer outro processo, para garantir essa operacionalidade. No entanto, como Frade defende, por si só o exercício tem pouco valor. Para além da sua eficácia relativamente ao seu propósito e em função disto, da sua lógica interna, torna-se também fundamental que interaja com o “ecossistema” em que actua, por exemplo, com os exercícios da restante Sessão de Treino, com o Ciclo Semanal, com o Ciclo Programático das 4 semanas e com o Ciclo Anual. E no caso do Futebol de Formação, também com os Ciclos Anuais anteriores e seguintes, ou seja, o Ciclo Plurianual.

Assim, na perspectiva do ciclo semanal de um momento competitivo, defendemos os dias de dominância dos Momentos de Transição no início da semana e os de Organização nos treinos -3 e -2, ou seja um ciclo semanal com competição ao Domingo, as Transições seriam Terça e Quarta e as Organizações Quinta e Sexta. Esta lógica foi encontrada pela observação e experiência sobre o género de exercícios que defendemos dedicados a cada um destes Momentos, tendo em conta os regimes que exacerbavam, a complexidade dos mesmos, portanto, a fadiga promovida e os dias subsequentes de possível recuperação. Sendo verdade que podemos manipular a grande maioria dos exercícios de forma a atingir tais regimes a determinado dia da semana, por outro lado, estaremos desse modo, novamente a trabalhar na lógica de periodização física, dado que será essa a prioridade que estamos a dar ao nosso processo de planeamento. Desse modo, esse género de manipulação também tenderá a afastar o exercício do seu contexto e especificidade ideal, podendo daí resultar menos impacto naquilo que é realmente importante para nós: o comportamento desejado, seja ele de objectivo dominante de posicionamento, decisão ou execução.

Continuando a explicação, os dias dedicados às Transições serão alternados a cada semana, ou seja, na Semana A a Sessão -5 será dedicada à Transição Ofensiva enquanto a Sessão -4 à Transição Defensiva. Na semana seguinte é invertida a sequência de forma a possibilitar, a ambos os Momentos, diferentes níveis de complexidade e diferentes géneros de exercícios e consequentemente outro nível de desgaste. O mesmo se passa com as Organizações. Se na primeira semana, na Sessão -3 o tema dominante é a Organização Ofensiva, no -2 é a Organização Defensiva. Na semana seguinte, o inverso. Deste modo, no Programa, ou seja, no ciclo das 4 semanas, teremos sempre 2 treinos no mesmo dia para cada Momento.

O treino -1, para as equipas que o contemplam na sua estrutura semanal (níveis de rendimento semi-profissional e profissional, e pré-rendimento de clube profissional), será para nós dedicado a questões emocionais, de plano micro, estratégicas e de possível reforço às situações de bola parada.

Sublinhando que este Programa surgiu por necessidade prática, estamos convictos que pode ser um upgrade ao processo metodológico. Não só do ponto de vista da eficiência do mesmo, como da sua eficácia. Para os treinadores que estão à procura de uma orientação, mas também para colocar questões aos que já têm o seu processo definido. Acreditamos então que este pode ser um passo decisivo na evolução da intervenção do treinador.

“Agir local, pensar global.”

(Silveira Ramos, 2004)