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Conhecimento do Jogo & Modelo de Jogo

“(…) enquanto sozinho no seu gabinete pensava sobre o que mudar, mas convencido de uma coisa: a minha ideia, a ideia de Cruyff, teria que ser mantida. Eu manteria-a, por mais difícil que fosse. E o suporte estava prestes a ser proveniente de uma fonte inesperada… Não parava de pensar sobre isso, quando alguém bateu na porta do meu gabinete…

“Pode entrar.”

“Olá, mister”.

Uma figura pequena entrou pelo gabinete dentro e falou calmamente. “Não se preocupe, mister. Nós vamos ganhar tudo. Estamos no caminho certo. Continue assim, ok? Estamos a jogar muito e a adorar o treino… Por favor, não mude nada.”

Pep Guardiola, citado por (López, et al., 2016)

Como fizemos questão de sublinhar no início deste projecto, o conhecimento que procuramos construir, terá o intuito de estar em permanente evolução, evitando cristalizar-se, e eventualmente consolidando-se como alguns dogmas idênticos aos que procuramos derrubar. Essa missão, em nosso entender, não só é fundamental, como se constitui no principal objectivo do projecto Saber Sobre o Saber Treinar.

Exposto na Introdução do projecto, sentimos uma primeira necessidade de caracterizar, dividindo… “sem empobrecer”, as principais dimensões na intervenção do treinador. Mas não só, e estamos a procurar expandir o conhecimento a outras funções técnicas que contribuem para o desenvolvimento da equipa. Nesse âmbito chegámos à Liderança, Metodologia e Modelo de Jogo. O Modelo de Jogo constituiria-se como o máximo conhecimento teórico sobre o jogo que conseguiríamos reunir.

Nesse domínio específico seria reunido, conhecimento do jogo, da sua sistemática, história e contexto cultural, que permita idealizar uma forma rica de disputar o jogo, que traga à equipa organização, mas que simultaneamente não a torne mecânica e incapaz de dar resposta à aleatoriedade e caoticidade do jogo. E ainda, que essas ideias que tenham também em conta a sua adaptação ao tal “espaço” / contexto e “tempo” / evolução do jogo.

Neste trajecto evolutivo, começámos a sentir que essa dimensão da intervenção do treinador seria vasta e que o conceito de Modelo de Jogo seria-lhe desajustado, dado tratar uma realidade mais específica. Recorrendo à (Wikipédia, 2019) um modelo científico trata-se de “uma idealização simplificada de um sistema que possui maior complexidade, mas que ainda assim supostamente reproduz na sua essência o comportamento do sistema complexo que é o alvo de estudo e entendimento“. Assim sendo, o Modelo de Jogo será uma leitura da realidade. Portanto, uma Ideia de Jogo, alicerçada no tal conhecimento do jogo, em interacção com o contexto onde é operacionalizada.

O professor Vítor Frade, em entrevista a (Tamarit, 2013), explica este entendimento. “Duas coisas distintas, uma coisa é a ideia de Jogo e outra coisa é o Modelo de Jogo. Pode parecer um paradoxo, uma coisa estranha, mas antes está a Ideia de Jogo e só depois está o Modelo de Jogo. O Modelo é o que se sujeita também às circunstâncias. O Modelo é tudo porque é a Ideia de Jogo mais as circunstâncias, e as circunstâncias podem relativizar aquilo que eu faria noutras circunstâncias, mas em termos de padrão é igual! Eu quero jogar mais ou menos assim. Agora, se eu fui treinador do Barcelona e depois vou treinar uma equipa da quarta divisão… é diferente, eu quero que passem de primeira e eles não o fazem nem de pistola na mão. A bola não se assusta! As pessoas têm que ter a inteligência suficiente. Estou a falar a Top. Acha que havia muitas diferenças do Chelsea para o Inter? Não há, não há. Há mais de jogo para jogo em função das circunstâncias… mesmo no Porto, só que o Porto não tinha Zanetti, não tinha o não sei quê, e tenho que ver isso. Agora a Ideia de Jogo é uma coisa, a fabricação da Ideia tem a ver com as circunstâncias e esse é o Modelo de Jogo, o que implica também a dinâmica existencial dos Princípios Metodo­lógicos. E o Modelo é tudo, até algo que às vezes desconheço, e que me «incita» à modelação, porque se eu não o contemplei, lixei-me!“.

O autor (Azevedo, 2011) reforça esta posição, explicando que “o Modelo de Jogo em Futebol é normalmente mal-entendido pelas pessoas. Fala-se dele como sistema de jogo implementado ou a estrutura inicial que a equipa apresenta em campo. No entanto, o Modelo de Jogo é muito mais do que isso, o Modelo é tudo (Frade, 2006). Entendemos que um Modelo de Jogo é algo que identifica uma determinada equipa, não é apenas um sistema de jogo, não é o posicionamento e disposição dos jogadores, mas sim a forma como os jogadores estabelecem as relações entre si e como expressam a sua identidade, uma determinada organização apresentada em cada momento do jogo que se manifesta com regularidade“.

Também (Maciel, 2011), refere que “o Modelo é constituído por um conjunto de inúmeros aspectos, alguns mais relacionados com opções do treinador, como a concepção de jogo, a metodologia de treino, a operacionalização do processo, outros mais relacionados com os jogadores e com a própria realidade do clube e o contexto envolvente. Aspectos que vão desde as crenças de jogadores ou dirigentes, à história do clube, dimensão estatuto e competência do departamento médico, a realidade competitiva, até as picardias e rivalidades históricas que possam existir dentro e fora do clube. Pode dizer-se que o Modelo é tudo. E por isso mesmo penso que a imagem mais capaz de o retratar é a de um iceberg, à superfície, isto é a face visível, parece ser uma realidade circunscrita a uma determinada dimensão e complexidade, mas na verdade é bem mais complexa e edificada sobre muitos aspectos que não são visíveis à superfície, mas que se assumem como fundamentais para a dimensão visível do Modelo. O Modelo é tudo e resulta da interacção altamente dinâmica entre os aspectos visíveis e dizíveis com os aspectos invisíveis e indizíveis que o compõem. A melhor definição que conheço de Modelo é a do Professor Vítor Frade quando afirma que “o Modelo é qualquer coisa que não existe, mas que todavia se pretende encontrar”. Trata-se portanto de uma espécie de impossível necessário, que nós em termos ideais concebemos, mas que depois na sua concretização não conseguimos reproduzir tal e qual, pois ao nível do pormenor ele vai assumir contornos únicos resultantes da interacção com o que o envolve“.

Deste modo o Modelo não é o antes. É uma “fotografia” da realidade. Neste caso, da realidade de uma equipa.

Perante isto, faz-nos mais sentido falar em Conhecimento do Jogo para descrever essa dimensão mais “generalista” da intervenção do treinador. Partindo dela, influenciada sempre por traços de liderança e mesmo metodológicos, o treinador / equipa técnica, chega(m) à Ideia de Jogo. A sua operacionalização, deste modo, no domínio “do real”, implica no contexto específico onde acontece, uma interacção profunda com a Metodologia e Liderança exercidas. Podemos então entender, que daí resulta o… Modelo de Jogo.

Dimensões da intervenção do treinador e Modelo de Jogo.

“Mourinho tinha uma definição, uma exclamação, quando lhe faziam essa pergunta, ele dizia: Para mim, modelo é tudo! E é. É tudo e mais alguma coisa. Porque muito desse tudo a gente não conhece. Muito desse tudo está pra vir. Agora eu não posso perder o azimute. É por isso que eu lhe dizia, digo sempre, num processo de treinabilidade, o futuro é o elemento causal da interacionalidade. Mas o futuro como perspectiva, como ideia. Por isso é que eu digo, o modelo de jogo é qualquer coisa que não existe em lado nenhum… não existe como tal, mas a configuração… É como eu, aqui, quando estive agora a falar consigo, eu sabia do que vinha falar, porque você tinha me dito, mas não sabia e não sei o que vai sair daqui. E é isso que se deve aspirar que aconteça, na treinabilidade.”

(Frade, 2015)

Três ideias (exercícios) para desenvolver a decisão e a qualidade do contra-ataque [Subscrição Anual]

“(…) (o contra-ataque tem por) objectivo principal, a partir da recuperação da bola, a desorganização da equipa adversária, de forma a progredir para espaços abandonados e conseguir encontrar condições significativas que nos possibilitem oportunidades de golo antes da reorganização do adversário.”

(Moreno, 2009)

Na sequência de recentes artigos que abordaram o sub-momento contra-ataque, publicamos três ideias, pela forma de exercícios, dentro do mesmo tema, juntando-os a outros presentes no nosso arquivo de exercícios. Como abordado recentemente, para o contra-ataque suceder, tem de existir uma reacção ao ganho da bola, manifestada essencialmente pela saída da primeira zona de pressão adversária, e antes disso, tem de existir obrigatoriamente, recuperação da bola. Deste modo, estes exercícios visam essencialmente a decisão da equipa pelo contra-ataque e o seu desenvolvimento. Dois deles possibilitam mesmo, a decisão entre o contra-ataque ou a valorização da posse de bola, uma decisão que cremos ser fundamental no jogo ofensivo da equipa e que tendo em conta a articulação de sentido do jogo, terá também assim, consequências no seu jogo defensivo.

O treinador português (Miguel Cardoso, 2018), está de acordo com a importância desta decisão, referindo a propósito do trabalho realizado no Rio Ave, que sentiu o sucesso no “critério na transição ofensiva, porque nós conseguimos muito bem tirar a bola da pressão em muitos momentos, fosse para a frente, fosse para a largura, e depois tínhamos critério suficiente para entender se devíamos entrar em ataque organizado ou em (contra-ataque)“. Na mesma linha de pensamento, o autor (Santos, 2010), explica o “caso específico de uma equipa que ataca precipitadamente. Obviamente não percebe os “quandos” e o resultado é um jogo em transições permanentes, com perdas e conquistas de bola sucessivas”. O autor confessa que “ver uma equipa a jogar em transições sistemáticas, sabendo que essa mesma equipa tem jogadores com capacidade para jogar de uma forma que lhe confere mais sucesso, privilegiando a posse de bola e a circulação objectiva, é algo que me inquieta. É como se visse um grande actor num filme fraco e sem reconhecimento nenhum por parte da indústria cinematográfica”. Contudo, o treinador espanhol Julen Lopetegui, confesso devoto de equipas que hiper-valorizam a posse de bola, citado por (Bouças, 2014) sustenta que uma equipa que “queira ter a bola não significa que não possa jogar em contra-ataque quando o adversário deixa espaços. Nesses casos podemos fazer transições rápidas, com amplitude e velocidade”. Deste modo, a autora (Gomes, 2015) explica a importância do Contra-Ataque, pois “quando a bola é recuperada o adversário pode:

  • “Estar desorganizado;
  • Ficar em inferioridade numérica;
  • Ser lento a reagir;
  • Ter uma reacção rápida e impetuosa;
  • Criar muito espaço entre os sectores;
  • Criar muito espaço entre a sua linha defensiva”.

Se o jogo e o seu treino são complexos, elevar a complexidade dos exercícios, também o é. É redutor pensar que elevar ou baixar essa complexidade passa apenas por relações numéricas, ou pela introdução de determinadas regras. Ela surge da manipulação do todo complexo constituído pelo espaço-tempo-número-regras, sempre em função do contexto, ou seja, do nível / ideias / evolução dos jogadores ao qual o exercício é proposto. O técnico português Rui Faria, citado por (Sousa, 2007), explica que quando diz que a complexidade é dada pelo estorvo mental é, no fundo, pela necessidade de fazer uma determinada acção pretendida num conjunto de condicionantes que envolvem e que pode ser a dificuldade natural da própria acção, o espaço, o número de jogadores. É óbvio que o número de jogadores condiciona essa acção e condiciona esse pensamento ou a complexidade é condicionada pelo número de jogadores envolvidos, pelo espaço de jogo envolvido e a partir daí o comportamento que tens de ter é condicionado por isso tudo. No fundo, isto é que aumenta a complexidade ou diminui a complexidade do exercício. Toda esta relação entre estas componentes“. 

A exclusão da idade neste pensamento, não é inocente. Na realidade há exercícios, tendo principalmente em conta as suas dimensões espaço e número, que não deverão ser utilizados frequentemente em idades mais baixas, mas mesmo aqui, as características de alguns jogos escolhidos pelas crianças no Futebol de Rua e o que eles lhes podem potenciar demonstram-nos muitas vezes que o pensamento “nunca”, torna-se perigoso. A idade não é indicador do nível de jogo. Há crianças aptas para um jogo, que no pensamento do treinador se perfila de maior complexidade, e simultaneamente há adultos sem nível para tal. Por outro lado, também porque a “bagagem” de conhecimento constitui-se como mais uma variável decisiva em tudo isto, e nem sempre essa bagagem significa melhores ideias e evolução. O treinador português (Jesus, 2013), explica que “existem jogadores que para renderem aquilo que tu queres tens de lhes explicar concretamente qual é a tua ideia, caso contrário eles perdem-se, e existem outros que sem lhes determinar alguma tarefa eles conseguem desenvolver o que tu pretendes”. Deste modo, novamente Rui Faria, citado por (Campos, 2007) defende que “em primeiro lugar temos que perceber em que nível nos encontramos. É decisivo percebermos o que é a cultura individual dos jogadores em termos do jogo, é fundamental perceber as qualidades dos jogadores e perceber isso em função do que se pretende. Se pretendemos que haja sucesso em termos do que fazemos no treino e queremos que isso se constitua como uma aprendizagem em termos de cultura de jogo, em termos de comportamentos colectivos é necessário que se compreenda esta evolução em termos de complexidade. Isto é decisivo, mas também é decisivo fazer uma avaliação do que é a nossa equipa, os nossos jogadores e do que é o conhecimento do jogo por parte da equipa e portanto a antecipação é tão mais facilitada quanto maior for a cultura de jogo da equipa”.

Por outro lado, a explicação das regras, eventualmente dos objectivos, o feedback durante a operacionalização do exercício, a sua análise e avaliação, etc, são também fundamentais para o seu sucesso. E como é referido que Albert Einstein terá defendido… “é possível ensinar física quântica a uma criança. Desde que coloquemos a linguagem ao nível da sua compreensão”. Deste modo, o exercício de treino é no fundo um veículo de comunicação de ideias, e como tal, é fundamental perceber, que como em qualquer outro processo comunicacional, que a sua essência é interactiva e não diapositiva, portanto, o seu sucesso, depende de uma relação, estabelecida e influenciada, pelo menos por dois intervenientes. No caso do futebol, existindo mais intervenientes, o processo densifica-se. No entanto, torna-se para muitos treinadores, dada a sua consciência da tremenda complexidade do fenómeno, um enorme desafio e fonte de motivação e prazer. Tal como um maestro numa orquestra, o treinador procura sintonizar-se e sintonizar toda a equipa em torno de um projecto comum pelos meios que dispõe. O exercício de treino emerge como um dos fundamentais.

Perante esta ideia, os exercícios que trazemos, sendo formas jogadas procuram aproximar-se da realidade do jogo e apresentam uma progressão complexa em função do número de jogadores / estrutura da equipa, do espaço, dos alvos e principalmente da complexidade da decisão sobre o contra-ataque. No entanto, como referido atrás, essa complexidade estará também sempre condicionada pela qualidade de jogo dos jogadores. Se o exercício 131 garante propensão ao contra-ataque para a equipa que inicia a defender e recupera a bola, o exercício 132 já contempla a decisão sobre contra-ataque numa estrutura de equipa mais reduzida, e finalmente, o exercício 133 potencia estímulos idênticos, porém em mais espaço, número e sobre balizas regulamentares.

131 | Pressing e contra-ataque para qualquer das baliza (exercício grupal)

132 | Decidir atacar as mini-balizas ou resgatar o companheiro (exercício sectorial + intersectorial)

133 | Defender a baliza, posse ou sair da área e contra-atacar

“A saúde não depende só do exercício físico. Depende de um exercício físico onde há valores.”

“O futebol é um jogo infinito em que se encaixa toda a complexidade humana, desde os grandes valores até aos mais pequenos. Se os treinadores que são autênticos maestros da vida, ajudarem a iluminar a parte mais nobre do jogo, servirão para melhorar primeiro, os homens que jogam, depois, o jogo em si e, finalmente, todos aqueles que são arrastados pela paixão do futebol.”

(Jorge Valdano, 2014)

Qualidades do líder [Subscrição anual]

Os autores (Lourenço & Guadalupe, 2017) citam (Druker, 2008) que defende que “[não] Existem coisas como “qualidades de liderança” ou uma “personalidade liderança”. Franklin D. Roosevelt, Winston Churchill, George Marshall, Dwight Eisenhower, Bernard Montgomery e Douglas McArthur foram todos os líderes altamente eficazes – altamente visíveis – durante a Segunda Guerra Mundial. Não havia dois destes que partilhassem quaisquer “traços de personalidade” ou “qualidades”. No entanto, os mesmos autores explicam que apesar de ser verdade o que afirma Peter Drucker, “contudo, também aqui Drucker é demasiado redutor. Lá por existirem líderes com personalidades totalmente distintas, não quer dizer que não existam “qualidades de liderança”. Elas existem, sim, mas para diferentes contextos, diferentes realidades, diferentes processos sociais… diferentes qualidades de liderança e diferentes traços de personalidade. Por isso poderemos dizer que, em nossa opinião, a liderança tem muito de intuitivo mas também muito de aprendizagem. Um líder, ao fim de um ano de liderança, será diferente porque… aprendeu“.

Assim, da mesma forma que as grandes dimensões, que na nossa perspectiva influenciam decisivamente a competência do treinador: Liderança, Metodologia e Modelo de Jogo, e por sua vez, as sub-dimensões de Liderança: Qualidades do líder, Estilos de liderança, Situações contextuais e Características do líder, não podem ser compreendidas de forma isolada. Investir em qualidades na liderança de forma analítica, pode ser um caminho errado, ou pelo menos, mais desfasado da complexidade da realidade e consequentemente da complexidade da natureza humana. Isto porque, por exemplo, todos atravessamos momentos de maior confiança e vitalidade emocional e isso influencia decisivamente a nossa coragem, criatividade, lucidez e portanto… inteligência. Depois, podíamos continuar e procurar compreender desde já, o Erro de Decartes e perceber o todo Mente-Corpo.

(…)

Continua…

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Tudo tem um fim… ou um novo princípio. Rui Faria enquanto sistema complexo.

“«Muito obrigado por me teres dado este contrato, muito obrigado por me teres trazido para Barcelona, muito obrigado por teres mudado a minha vida». O meu trabalho e a minha dedicação são a minha forma de gratidão. Eu nunca senti, em nenhum momento, que lhes devia alguma coisa. Quando decidi ser treinador principal e vir embora, nunca pensei que estava a ser incorrecto. Não lhes devo nada, paguei-lhes tudo, e por isso senti-me sempre livre para decidir. Se sentisse que não tinham pernas para andar sem mim, se calhar hipotecava um ano ou dois da minha independência. Era capaz de o fazer. Mas eles não precisavam de mim para nada. Tanto um como outro disseram: «Tu estás preparado».”

(José Mourinho, 2003) a propósito do seu percurso como treinador assistente de Bobby Robson e Van Gaal no Barcelona

Tornou-se uma curiosidade na equipa técnica liderada por José Mourinho. Iria Rui Faria acompanhar Mourinho até ao fim? Em vários momentos afirmou a sua felicidade e satisfação na função de treinador assistente e consequentemente a indisponibilidade em abandonar a equipa técnica e iniciar um percurso como treinador principal. Pouco crível para muitos, mas legítimo. Neste contexto, em 2012, (Miguel P., 2012) questionava se “Rui Faria não pode simplesmente… gostar de ser treinador adjunto? Há algum mal nisso? Nem toda gente que “vai para treinador”, quer ser treinador principal. Se ele se revê na metodologia de treino e na liderança do Mourinho, se sente que é útil, se o próprio Mourinho faz questão de dizer várias vezes que o Rui Faria é fundamental. Ele pode muito bem querer continuar com as funções que tem”. Durante muito tempo partilhámos esta opinião e que as pessoas, independentemente do contexto, perante a felicidade, procurarão eternizá-la.

Porém, à luz do pensamento complexo, a autora (Ana K R, 2009), sustenta que “há a convivência da ordem, desordem e organização, sem uma anular a existência da outra”. Rui Faria conviveu e foi feliz com essa “ordem” resultante do trabalho e convivência na equipa técnica de José Mourinho. Porém, como ser complexo que é, mesmo vivenciando uma sensação de equilíbrio, a sua natureza solicita-lhe um novo estímulo, neste caso, um novo desafio. É no fundo, o que exactamente se passa no processo de treino e a sua interacção com os jogadores. Portanto, e reforçado a ideia pela teoria do caos, o ser humano nunca está verdadeiramente em equilíbrio. Pequenas perturbações estão sempre a afectá-lo e podem mudar por completo o estado geral do sistema, podendo levá-lo ao desequilíbrio ou à sua necessidade. Ilya Prigogine, citado por (Esteves, 2010), refere que os sistemas complexos não podem evoluir (gerar novos padrões) em estados de equilíbrio ou próximos do equilíbrio”. Por isso, para (Manuel Sérgio, 2012), “o ser humano é imprevisível, é por isso que ele é complexo, o que significa ser complexo? No fundo é porque dentro dele também há ordem e desordem, também há certeza e incerteza, é por isso que ele é complexo”. Rui Faria, estará portanto, à procura de um nível superior de complexidade, ou na perspectiva do treino, de adaptação.

“Se o sistema permanecer em equilíbrio, ele morrerá. O “longe do equilíbrio” ilustra como sistemas que são forçados a explorar seu espaço de possibilidades vão criar diferentes estruturas e novos padrões de relacionamento.”

(Nicolis e Prigogine, 1989)

“17 anos… Leiria, Porto, Londres, Milão, Londres de novo e Manchester. Treinar, viajar, viajar, estudar, rir e também algumas lágrimas de alegria. 17 anos e agora a criança já é um homem. O estudante inteligente é um especialista de futebol, pronto para uma carreira bem sucedida enquanto treinador. (…) Vou sentir a falta do meu amigo e essa é a parte mais difícil para mim, mas a sua felicidade é mais importante e, claro, respeito a sua decisão, especialmente porque sei que vamos estar sempre juntos. Sê feliz, irmão.”

(José Mourinho, 2018) sobre Rui Faria

Um Real engano

“(…) o trabalho sobre a análise do jogo tem-se focado, predominantemente, no uso de descrições simples e associações entre variáveis, levando à investigação do fenómeno sem considerar os aspetos dos sistemas complexos, dinâmicos e interativos, que poderão caracterizar melhor o rendimento num jogo de futebol.”

Hugo Sarmento citado por Luís Cristóvão, 2017

Tem sido constante o ataque ao rendimento de Karim Benzema pela escassez de golos marcados do jogador Francês. O próprio Cristiano Ronaldo também tem sido alvo de criticas similares dado o menor número de golos marcados na presente época desportiva.

“Esta é uma crise sem precedentes dos habituais goleadores do Real Madrid nos últimos anos. Na mesma altura da época passada, Ronaldo e Benzema somavam 12 golos no campeonato. Em 2014/15 já tinham apontado 27 golos no mesmo número de jogos. Agora estão ao nível dos piores da Europa e longe dos melhores. Neymar e Cavani, do PSG, somam 22, enquanto Suárez e Messi, do Barcelona, já marcaram 17.”

“Ronaldo e Benzema são a pior dupla da Europa”

“Quando Ronaldo não se encontra na melhor forma é fácil perceber a má forma do Real Madrid à frente das balizas. No entanto, a seca de golos de CR7 não pode ser o único motivo que explica o mau momento pelo qual passa a equipa de Zidane. (…) Mais que Ronaldo, Benzema está a ser obliterado pelas críticas à maneira como pouco tem contribuído com golos para a equipa. O francês não está a acertar com a baliza e quando o faz, não consegue dar seguimento com boas exibições. Sendo um dos principais elementos da badalada BBC, Benzema tem apenas seis golos marcados esta temporada, o que para um avançado do Real Madrid é um número fraco. O avançado já leva 22 partidas disputadas e conta com apenas três assistências.”

“Um Real Madrid que está em crise e já não consegue disfarçar”

Porém, os que procuram explicar o menor rendimento colectivo do Real Madrid por um fragmento da realidade ignoram outros números. O facto é que o Real Madrid, colectivamente, é a quinta equipa com mais golos marcados na Europa.

Equipas mais goleadoras da Europa – 26 de Fevereiro de 2018 (SportTV, 2018)

Portanto, se os golos marcados pela equipa não são a explicação para o seu menor rendimento global, não serão com certeza os golos, nem as assistências, do ponto de vista individual. O objectivo do artigo não é procurar a explicação para o momento do Real Madrid. Pela análise ao seu jogo, é um exercício sempre interessante, mas difícil. Pior ainda se tivermos em conta a complexidade que envolve a dinâmica de uma equipa de futebol. O dia-a-dia, o treino, o plano individual, as relações internas, externas, etc. O propósito é, uma vez mais, sublinhar como o pensamento reducionista está sempre presente na forma como observamos a realidade. Se tivermos em conta a proposta por nós apresentada, o jogo de futebol acontece em 12 sub-momentos.

Momentos e Sub-Momentos do jogo.

A finalização da equipa só está presente em dois deles, assim como a “assistência”. No que toca ao que é visível no campo, não estarão possíveis explicações para o rendimento do Real Madrid nos outros 10 sub-momentos? E será que os jogadores criticados, não serão importantes noutros sub-momentos do jogo? Por se posicionarem na maior parte do tempo de jogo mais perto da baliza adversária, têm obrigatoriamente que ser os melhores marcadores da equipa?

Parece-nos clara a resposta à última questão. Depende da forma de jogar da equipa. Se a mesma proporcionar situações de finalização a esses jogadores e os mesmos falharem-nas sistematicamente, logicamente que isso é um dado negativo do ponto de vista individual. Porém se a mesma os usar como “um meio para chegar a”, então a crítica individual é absurda. Não tendo oportunidades para marcar, não poderão com certeza somar golos. Voltando ao contexto particular do Real Madrid, talvez Benzema e Ronaldo não estejam no melhor momento no que toca à sua eficácia. Porém, não estarão, mais do que nunca, a dar uma maior importância ao jogo colectivo da equipa? Pelo menos no momento ofensivo? A própria decisão, no passado fim-de-semana, de Cristiano Ronaldo ceder a marcação de uma grande penalidade a Benzema talvez reflicta isso mesmo. E não se tratou de uma assistência. Mas de uma preocupação com o outro. A tal relação interna. O próprio José Mourinho, em 2011, quando treinou o Real Madrid descrevia assim Benzema:

“Karim está a trabalhar mais do que nunca, sobretudo na fase defensiva, e é um jogador nada egoísta e que faz jogar a equipa.”

José Mourinho, 2011, citado por João Paulo Godinho, 2011

Segundo o autor (Amado, 2010), “o Futebol é tudo menos um jogo simples e um avançado tem mais para fazer em campo do que ser o elemento mais avançado de uma equipa. O Futebol, jogado como um todo, não pode estar refém de jogadores com funções específicas; uma equipa, para fazer golos, não pode estar refém do seu atleta mais adiantado. Tem de ser capaz de tornar complexo o seu jogar a ponto de ser absolutamente indiferente quem faz ou não faz os golos”. O avançado espanhol, Fernando Torres, citado por (Bouças, 2012), a propósito do seu papel na selecção espanhola, descreve que “é preciso ter paciência. É complicado jogar. Deves fixar o central, é um papel secundário, porém é o melhor para a equipa. É um luxo jogar nesta selecção. Aqui pode acontecer que te contenhas mais na partida e não faças golos, mas é o melhor para a equipa. Há dias que pensas: “Que partida fiz! Oxalá jogue assim sempre.” E ouves críticas por todos os lados. E no dia em que estás lento, mal e erras, mas marcas dois golos, aplaudem-te. Aprendi a viver com isto.” Pedro Bouças sustenta que estamos numa era em que perceber o futebol é muito mais complexo que o que na realidade parece. Há onze jogadores, e todos devem ser responsáveis por tudo dentro do campo. Uns dias ganhas notoriedade, noutros parece que o jogo te passa ao lado. Há é que decidir bem a cada instante. Se assim for, a equipa estará sempre mais próxima do sucesso”.

Na sua obra, Edgar Morin, explica que “a palavra compreender vem do latim, “compreendere”, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de explicação, ou seja, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos. Mas a compreensão humana vai além disso, porque, na realidade, ela comporta uma parte de empatia e identificação. O que faz com que se compreenda alguém que chora, por exemplo, não é analisar as lágrimas no microscópio, mas saber o significado da dor, da emoção. Por isso, é preciso compreender a compaixão, que significa sofrer junto. É isto que permite a verdadeira comunicação humana. A grande inimiga da compreensão é a falta de preocupação em ensiná-la. Na realidade, isto está-se a agravar, já que o individualismo ganha um espaço cada vez maior. Estamos a viver numa sociedade individualista, que favorece o sentido de responsabilidade individual, que desenvolve o egocentrismo, o egoísmo e que, consequentemente, alimenta a autojustificação e a rejeição ao próximo. A redução do outro, a visão unilateral e a falta de percepção sobre a complexidade humana são os grandes empecilhos da compreensão. Outro aspecto da incompreensão é a indiferença. (…) Por isso, é importante este quarto ponto: compreender não só os outros como a si mesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a autojustificação, pois o mundo está cada vez mais devastado pela incompreensão, que é o câncer do relacionamento entre os seres humanos.”

“Mourinho dizia-me: Tranquilo, não precisas de marcar golos para ser o homem do jogo.”

Didier Drogba citado por (Bouças, 2013)

“Pergunto-me por exemplo, quantos não serão os “dados” existentes à cerca da pergunta seguinte: Quais são, os elementos estruturais de todo o jogo de futebol? A estrutura de acção não é mecânica, no entanto, o saber compartimentado do “nosso” futebol segregou já demasiadas previsões especializadas. Deve continuar o “futebol”, a deixar-se cegar pelo erudito reducionismo? Para nós, a formulação de MODELOS DE INTELIGIBILIDADE afastados da FRAGMENTARIDADE DOMINANTE, e ajustados à natureza complexa do objecto empírico, parece-nos de premente necessidade.”

Vítor Frade, 1990, no seu projecto de tese de doutoramento, em 1990

“Sem equipa

nenhum jogador cresce,

mas só boa equipa fica

se ser bom jogador acontece.”

(Frade, 2014)

“Cada ser humano é um universo de estudo”. O “estranho” caso de Mafalda Mariano.

“Para mim, a expressão “todos os jogadores são iguais” é a maior mentira no desporto. Nem todos são iguais. Nem todos têm de ser tratados de forma igual. Com o mesmo respeito sim… (…) Descobrir cada um é o mais fascinante na nossa função…”

Pep Guardiola citado por (Santos L. , 2013)

Fruto, uma vez mais, do pensamento analítico e cartesiano que se enraizou na nossa cultura e raciocínio, o ser humano continua a ser seriado e catalogado como se de uma peça de mobiliário se tratasse. Não nos estamos a referir à procura de padrões comportamentais. Referimo-nos a identificação de características muito genéricas como a idade, o sexo, a morfologia ou mesmo a fisiologia, e a partir daí colocar adultos e crianças em categorias mais ou menos estanques. No futebol de formação é comum depararmo-nos, com opiniões de responsáveis técnicos, de que por exemplo, “miúdos com determinada idade devem jogar futebol de X” ou “as raparigas devem jogar com raparigas e rapazes com rapazes”. Ignora-se porém, a sua complexidade, e que cada ser humano é possuidor de uma individualidade, passe a redundância… singular, com um particular crescimento e traços exclusivos. Como Yuri Verkhoshansky, citado por (Silveira Ramos, 2004) defendeu, “cada ser humano é um universo de estudo”. Também (Barreiros, 2016) sustenta que “o desenvolvimento é um conceito de raiz biológica que procura exprimir o conjunto dos processos de transformação de um organismo ao longo da sua vida. No caso do desenvolvimento humano, este processo inclui inevitavelmente o conjunto das transformações da vida psíquica e os efeitos de interações sociais constantes. O desenvolvimento humano é, por natureza, biológico, psicológico e social, o que significa também que estas dimensões do desenvolvimento interagem, produzindo uma notável complexidade e individualidade“. Assim sendo, cada indivíduo apresenta as suas necessidades particulares.

Mafalda Mariana, aos 12 anos, teima em provar que o pensamento tradicional está profundamente errado. Há quatro anos a jogar em competições federadas com rapazes, inclusive dois desses anos contra uma maioria de adversários de idade superior. Começou, aos 8 anos, a jogar Futebol de 7, portanto, numa complexidade de jogo acima da regulamentarmente definida para a sua idade, o Futebol de 5. Na presente época deu um semelhante “salto” para o Futebol de 9. Durante este período formou equipa com outros miúdos de enorme talento, que sempre lhe reconheceram o dela, tratando-a como igual. Por vontade e decisão própria tem recusado passar para as competições femininas em clubes de maior dimensão, por sentir que o actual contexto onde treina e compete, é o mais adequado e desafiante à sua qualidade. Naturalmente, também pela amizade que construiu com os companheiros, aspecto que um regulamento competitivo que separa por completo, rapazes de raparigas no futebol de formação a determinado momento, ignora em absoluto.

“Como te sentes a jogar numa equipa de rapazes contra rapazes?

Sinto-me bem, pois os meus colegas receberam e tratam-me como igual. A maioria dos meus adversários respeita-me.”

Mafalda Mariano, 2017 em entrevista ao website www.futebolfemininoportugal.com

Ignora-se também que existem aspectos ainda mais decisivos para a evolução da criança do que a própria complexidade do modelo competitivo. Uma criança, numa equipa de Futebol de 7, à qual seja imposto jogo directo e marcação individual, não terá com certeza mais propensão à sua relação com bola, com o centro de jogo e desafio à inteligência táctica, que o jogo curto e apoiado e a Defesa Zonal potenciam, mesmo quando solicitados num contexto competitivo de Futebol de 11. Neste sentido, (Fábio Ferreira, 2013), descreve que “de acordo com Pacheco (2001), a competição em idades mais jovens depende da qualidade da sua prática e da intervenção por parte dos treinadores, dos dirigentes e dos pais que enquadram a criança na actividade desportiva. Por isso, é extremamente importante que se respeite a individualidade biológica, cognitiva e emocional da criança (Fernandes, 2004). Assim sendo, é fundamental que no futebol de formação as competições estejam ao serviço dos jovens futebolistas, estando adequadas às características das crianças e do seu nível de desenvolvimento (Pacheco, 2001) tornando-se uma ferramenta de auxílio para que os objetivos de formação sejam atingidos. Pacheco (2001) refere ainda que o problema induzido pela competição nos escalões mais jovens são as distorções impostas pelos adultos”.

Em entrevista a (Xavier Tamarit, 2013), o professor Vítor Frade questiona: “você já viu ou acha que o gajo que vai tocar piano, primeiro vai andar a correr à volta do piano ou fazer elevações ou flexões?! Não. Os putos vão, se tiverem dois, «olha, joga tu ali e eu ali», se tiverem onze, «seis para aqui e cinco para acolá». É isso que eles fazem, é Futebol com bola!” No entanto, condicionados pelas ideias, preconceitos e receios dos adultos, o autor (Carlos Neto, 2017) deixa a pertinente questão: “qual é o nível de participação das crianças na sua formação desportiva?” E responde. É tudo imposto. Tal e qual como nas escolas, onde têm de estar sentadas, quietas e a ouvir professores cansados, velhos e chatos. O que é que elas gostariam de fazer no treino? Algumas vez os treinadores ouvem as crianças? Os pais ouvem os próprios filhos? A formação de crianças e jovens em Portugal é de uma visão autocrática e isto é mau, porque as crianças do século XXI mereciam outro respeito e um processo mais democrático. Haveria mais participação, um melhor ambiente, mais entreajuda… como acontece nos países que já o fazem de forma mais adequada, como o Canadá e alguns países nórdicos. As crianças não são atletas em miniatura. Eu posso fazer um campeão à martelada. Se repetir exaustivamente, eu chego lá. Só que ele não vai ser criativo, não se vai adaptar, vai morrer cedo. Se eu fizer um atleta inteligente, dinâmico, com capacidade adaptativa, esse é que vai ser um bom atleta, e quero na formação um modelo que forme estes atletas”.

Por outro lado, autor (Esteves, 2010), partilha a visão de Vítor Frade ao distinguir especificidade precoce e especialização precoce. Segundo Frade as melhores equipas na formação, treinam sob a especificidade precoce, evitando os problemas causados pela especialização precoce. Para Esteves “quando treino em especificidade precoce, desde cedo, com diferentes graus de complexidade numa progressão complexa de muitos anos, consigo um jogador muito mais evoluído, pelo simples factor confiança. A repetição constante leva a sistematização, ao hábito e isso com o passar dos anos leva à «expertise». As grandes mentes, em diferentes sectores da história da humanidade, dificilmente iniciaram as suas trajectórias em fase adulta. Grandes lutadores iniciam as suas lutas muito cedo, entre 6 a 8 anos, grandes pianistas idem, grandes jogadores iniciam suas trajectórias no Futebol de rua, na escola, nos campos de praça, logo aos 5, 6 anos”. Por outro lado o autor defende que a “especialização precoce é a maior negação do princípio da individualidade biológica. Não é possível aceitar que todos os seres humanos são diferentes e que a qualquer momento pode surgir um novo Pelé ou Maradona se logo ao se iniciar um treino podamos todas as possibilidades de gerar este comportamento, criando uma espécie de fábrica de jogadores, fazendo tudo igual, sendo que a grande graça está em quem faz o diferente”. 

Neste sentido, o treinador português (Carlos Carvalhal, 2010) destaca a “importância de desenvolver os sentidos e de experimentar as sensações em contacto com o meio (perspectiva ecológica) de forma a testarmos todas as nossas capacidades fazendo do ensaio / erro uma autodescoberta. A individualidade é assim um conceito obrigatoriamente agregada à noção de criatividade: o que vivencio enquanto jogador potencia as minhas qualidades, exponenciando-as; faz com que codifique de determinada forma o significado do que vivi, determinando também a conexão que farei com episódios semelhantes no futuro”. O professor (Francisco Silveira Ramos, 2013), conclui que “o futebol é um jogo coletivo, mas é feito de individualidades e temos até que fomentar essas individualidades”. O autor sustenta ainda que é necessário “que o trabalho para eles seja rico e criativo”. Rico e criativo, implica experimentar diferentes contextos e desafios, e garantir uma maior propensão do mais favorável ao estágio de desenvolvimento individual e desejos de cada criança. No fundo, o caminho trilhado autonomamente por cada criança no Futebol de Rua, em regime de auto-descoberta e longe da intervenção do adulto.

“O possível

é o futuro do impossível

o padrão de problemas

não se acorrenta por esquemas,

nenhuma impossibilidade

é impossível…

Não tendo na robotização a verdade

a complexidade é exequível.”

(Frade, 2014)

O todo… organização defensiva… que está nas partes… sectores e jogadores

É notória a evolução que o Futebol manifestou nos últimos anos. Na liderança, no jogo e no treino. Contudo, o pensamento analítico sobrevive e ainda influencia as três dimensões. Naturalmente, porque como Vítor Frade referiu no I Congresso da Periodização Táctica “foram 400 anos de pensamento analítico ou cartesiano”.

Não é por acaso que Miguel Cardoso, e o seu processo… no fundo, o resultado da interacção da sua liderança com a sua visão do jogo e da forma como treina, tem demonstrado qualidade. Tem demonstrado qualidade no critério, na nossa opinião, mais importante para um treinador. A qualidade de jogo da sua equipa. Porque esta é o grande resultado do seu trabalho e será esta a conduzir a uma regularidade nos resultados. Na conferência de imprensa após o Porto x Rio Ave para a Taça da Liga, a questão do jornalista procurou separar a equipa nos que defendem e nos que atacam. Miguel Cardoso, mostrou o porquê da qualidade das suas ideias.

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O treinador do Rio Ave demonstra, dentro e fora do campo, pensar o jogo como um todo. Num artigo que publicámos recentemente, o responsável técnico pelo ciclismo na Federação da modalidade defendia que o atleta era um todo. Sendo o jogo composto por vários homens, consequentemente também o é um todo. Entendê-lo em complexidade é procurar compreender esse todo. E procurar ir ao plano do detalhe e perceber as suas partes, implica não lhes ignorar as relações e a interação que estabelecem entre si e as consequências que isso provoca no todo. Neste sentido (Azevedo, 2011) explica que “ (…) de acordo com Gaiteiro (2006) podemos afirmar que aquilo a que chamamos “parte” é apenas um padrão numa teia inseparável de relações, não existindo portanto, partes em absoluto”Um dos principais defensores do pensamento complexo, Edgar Morin (2003, p. 108, 109), citado por (Tamarit, 2013), esclarece que “num holograma físico, o ponto mais pequeno da imagem do holograma contém a quase totalidade da informação do objecto representado. Não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte. O princípio hologramático está presente no mundo biológico e no mundo sociológico… a ideia de holograma ultrapassa, quer o reducionismo que só vê as partes quer o holismo que só vê o todo”. O mesmo autor acrescenta que “então pode enriquecer-se o conhecimento das partes pelo todo e do todo pelas partes, num mesmo movimento produtor de conhecimentos”. Xavier Tamarit reforça que parece especialmente relevante para o futebol sobretudo se tivermos em consideração o facto de que como sugere, “a relação antropossocial é complexa, porque o todo está na parte, que está no todo”. Importa contudo salientar que da relação do todo com as partes podem resultar estados diversos de complexidade do todo. O todo pode ser menos que a soma das partes, pode ser igual à soma das partes e pode ser mais que a soma das partes. Mas só o todo organizado será maior que a soma das partes“. No fundo foi o que Miguel Cardoso explicou quando expôs a sua visão do jogo e a forma como identificou os problemas da sua equipa.

“É da problemática da complexidade

a natureza do que é nela interacção,

esfacelar tal realidade

é o que promove a mono explicação.”

(Frade, 2014)

“O atleta é um todo”

“(…) acontece uma variedade de reacções humanas ao mesmo tipo de factores e de situações porque não é reacção o que propriamente se dá, mas, antes, uma acção – e esta é iniciada intencionalmente por um todo que, de todo, jamais o é da mesma forma que o todo de outro: é o todo que enforma as partes e não estas que determinam aquele.”

(Neto, 2012), sobre o “todo” do Futebol – a Táctica

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A opinião é dada por, Gabriel Mendes, Coordenador Técnico da Federação Portuguesa de Ciclismo. A visão sobre o rendimento e o treino sofreu uma clara ruptura epsistemológica. Deixou de se ver o jogador, ciclista, atleta, etc., como um somatório de capacidades para ser interpretado do ponto de vista das suas acções, enquadradas num todo complexo. Se o pensamento Cartesiano começa a abandonar as modalidade individuais, as quais, apresentam uma estrutura de rendimento menos complexa, então é urgente irradicá-lo por completo dos desportos colectivos.

Neste contexto, em 2003, o professor Silveira Ramos defendia que ““o Futebol pode ser decomposto nas suas partes constituintes – técnica, táctica, física, psíquica, social, das leis de jogo, etc.” ou “então pode ser decomposto em – acções individuais e colectivas – considerando que cada uma delas é constituída em termos técnicos, tácticos, físicos, psíquicos, sociais, etc.” E concluía… “ao procedermos à análise das capacidades dos jogadores e da equipa, com o sentido de conhecermos melhor cada uma delas, corremos, como já foi referido, o risco de “isolar” determinados aspectos, criando teoricamente capacidades isoladas, que nas acções do jogo têm um significado mais amplo e menos repartido. Qualquer capacidade que se considere isoladamente, manifesta-se sempre pelos comportamentos do jogador no desempenho das tarefas em jogo, sendo esses comportamentos expressos de forma global e não através de uma única capacidade, ou grupo de capacidades. Cada acção desenvolvida em jogo, é consequência de diversos factores, mesmo que algum, ou alguns sejam mais evidentes à nossa observação”.

“A motricidade

do jogar, no jogo

a de qualidade…

Implica o indivíduo todo!

(Frade, 2014)

“Fisicamente mais forte”

Quantas vezes ouvimos e lemos a expressão… “o jogador x é fisicamente mais forte”. Mas o que isso significa exactamente no jogo de futebol? A qualificação atribui-se à morfologia? Às qualidades físicas? Ou à influência que a “imagem” morfológica, misturada com a agressividade, terá na mente dos adversários?

Se falamos de morfologia, face às leis do jogo, nas quais o único contacto físico permitido será no ombro a ombro, diga-se, acção rara ao longo do jogo, então a mesma torna-se pouco importante. A excepção é o jogo aéreo, onde ser-se mais alto pode ser relevante. Mas mesmo nesse caso, nem sempre. Antecipar o local onde a bola vai cair, calcular o tempo de salto ideal, garantir a melhor impulsão, ser corajoso para disputar uma bola, muitas vezes, no meio de um aglomerado de jogadores, e a técnica de cabeceamento, são exemplos de qualidades que serão bem mais decisivas na disputa do jogo aéreo do que apenas ser-se mais alto.

Quanto às qualidades físicas, sendo obviamente relevantes, desligadas de boas decisões em jogo, tornam-se no futebol, também obsoletas. Neste sentido, (Sampaio, 2013) defende que “no futebol, ao contrário de muitos desportos, não há um estereótipo de “atleta”. Como exemplo, na prova de 100 metros do atletismo, é normal vermos atletas altos e musculados; na maratona é normal os atletas serem muito magros; no futebol não é assim, o jogador de futebol não é um atleta, simplesmente é jogador de futebol. Alguém pode dizer que Pirlo, Xavi, Aimar, Messi, David Silva, etc., são atletas? Eu não acho que sejam, simplesmente são jogadores de futebol”.

Por outro lado, a influência da dimensão física na dimensão psicológica reflecte, não só a complexidade do jogo, mas no fundo a complexidade humana e o “erro de Descartes” que “segundo Damásio, terá sido a não apreciação de que o cérebro não foi apenas criado por cima do corpo, mas também a partir dele e junto com ele”, (Wikipédia, 2016). Nesta perspectiva, no futebol, o jogador ser fisicamente mais forte, não é relevante. O que será relevante é ser-se complexamente mais forte. E se assumirmos que a dimensão táctica, como Vítor Frade postulou, “não é psicológica, não é física, não é técnica, mas necessita de todas elas para se manifestar”, então, ser-se mais forte neste jogo significa ser-se mais forte tacticamente, que surge da interacção da morfologia com as qualidades físicas, com a mentalidade, com o conhecimento do jogo, o domínio da execução, etc. Conclui-se então que o aspecto ou o desempenho estritamente físico… garante pouco para este jogo.

Lionel Messi, Xavier Hernández, Andrés Iniesta, Andrea Pirlo, Pablo Aimar, Luka Modric e tantos outros, comprovaram tudo isto jogo após jogo, sendo mais fortes que os seus adversários. Aqui, Modric, não necessitou do ombro a ombro para recuperar a bola.

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“O indivíduo todo, inteiro

emerge da cultura táctica

que sustenta o bom jogo, primeiro

no jogar o jogo como prática!”

(Frade, 2014)

I Congresso Internacional da Periodização Táctica

“O treino e o jogo não são somas. Às vezes confunde-se complexidade com complicação”.

Vítor Frade, 2017

“”Football is not a linear process,” Frade said. “It is not a sum of things: If you do this, plus that, you will achieve this.” Instead, “the coach must consider every aspect, of the individual, of the team. Football is not two-dimensional. It is multidimensional.” It is an imperfect parallel, but the game, as Frade envisages it, is not unlike a Rubik’s Cube: Every thing a manager does, every single turn they make, has a consequence elsewhere. It does not work if they try to fix one side alone; the problem must be considered in its entirety.”

Rory Smith no The New York Times, 2017

Decorreu no passado mês de Junho, o I Congresso Internacional da Periodização Táctica no Porto. Mais do que uma forma de divulgação da corrente metodológica, uma justíssima homenagem a Vítor Frade pela genialidade e resistência na defesa de uma ideia que ultrapassa em muito as ténues fronteiras do futebol. Mas a questão parece teimar em persistir: qual é a essência da revolução de Frade?

Efectivamente, numa visão complexa da realidade, muito díspar da corrente de pensamento tradicional, que devemos dizer, foi poluindo o pensamento humano nos últimos quatro séculos. Isto porque quer queiramos, quer não, quer consigamo-lo compreender ou não, o universo que habitamos é complexo. Como Vítor Frade também referiu no congresso, “não existem as ciências da complexidade. Existe sim, a complexidade”. Não é o homem e a sua ciência que dita que a realidade é complexa. Ela é-o intransigentemente. Frade reforçou também, duas vezes ao longo da sua palestra, que “foram 400 anos de pensamento analítico ou cartesiano” e como consequência vivemos os mais diversos contextos das nossas vidas contaminados por esta forma redutora de pensar. Os números, as quantidades, as partes, as somas, foram castrando as relações, as qualidades, as interacções… no fundo o todo complexo. Vulgarizou-se nos últimos anos que o “todo, é mais que a soma das partes”, porém continua sem se perceber muito bem o que isso significa e como consequência, o homem continua a mutilar a realidade na sua intervenção nas mais diversas áreas.

É verdade que as ideias de Vítor Frade são baseadas no pensamento de ruptura de Ludwig von Bertalanffy, Norbert Wiener, Ross Ashby, Edgar Morín, Manuel Castells, entre tantos outros. É também verdade que outros autores também procuraram aproximar o desporto de uma perspectiva mais globalizante do rendimento, mas foi porém Frade, que surge, ainda na década de 70, com o mais disruptivo pensamento, sob a perspectiva da complexidade, consumado mais tarde na sua Periodização Táctica. Na sua tese de doutoramento – A interacção, invariante estrutural da estrutura de rendimento do Futebol, como objecto de conhecimento cientifico – uma proposta de explicação de causalidade, de 1990, declarou: “O Futebol, apesar de frequentemente encarado como “realidade-inferior”, disciplina de importância menor, desprezada, pouco vocacionada a despertar pessoas para uma carreira académica – como especialidade e investigação consequente, é no entanto, um objecto de estudo complexo, na medida em que uma multiplicidade de factos e de acontecimentos, se dão a ver ao mesmo tempo. Enquanto prática social, o futebol tem uma história, inclusivamente, uma geografia. Daí, que não se tome por único o que é plural, e por plural o que é único. O futebol pré-existe á ideia que dele se tem. O problema está em saber, se as ideias que dele se tem, se lhe ajustam”.

Uma das organizadoras do congresso e ex-aluna de Frade, Mara Vieira, numa entrevista ao jornal Expresso, que procurava antecipar o congresso, referia precisamente isto: “a primeira grande diferença para toda a gente é esta: o professor Vítor Frade faz-nos refletir. O que é um papel que a universidade no seu todo devia ter. “Que treinadores é que nós queremos formar para quando eles saírem da faculdade?” Nós temos de ter conhecimentos sobre futebol e sobre variadíssimas áreas. E o professor Vítor Frade, das primeiras coisas que faz, é explicar que nós para pensarmos o futebol temos de perceber que é algo complexo e temos de refletir muito sobre as coisas. Porque a malta normalmente está à espera de fórmulas: “O professor há-de dizer e nós apanhamos as coisas e vamos para o campo”. O que ele faz é relacionar várias áreas e mostrar como todas elas podem ser importantes para o futebol. Ele é especial porque nos faz a todo o momento querer saber mais e refletir sobre os assuntos, entendendo as coisas na sua dimensão complexa, porque as coisas não são A mais B”.

Recentemente, em entrevista a (Tamarit, 2013), Vítor Frade confessava que hoje lhe dava um certo gozo ler coisas que escreveu “nos anos 70 e princípios de 80, sendo na altura muito contestadas, e ler hoje qualquer coisa assim científica avançada e ver que não estava mal de todo, e até parece que estava bem! Mas pronto, era um paradigma diverso daquele que estava e está institucionalizado!” Na sua tese de 1990, Frade questionava ainda, “por exemplo, quantos não serão os “dados” existentes à cerca da pergunta seguinte: Quais são, os elementos estruturais de todo o jogo de futebol? A estrutura de acção não é mecânica, no entanto, o saber compartimentado do “nosso” futebol segregou já demasiadas previsões especializadas. Deve continuar o “futebol”, a deixar-se cegar pelo erudito reducionismo? Para nós, a formulação de MODELOS DE INTELIGIBILIDADE afastados da FRAGMENTARIDADE DOMINANTE, e ajustados à natureza complexa do objecto empírico, parece-nos de premente necessidade”.

Neste sentido, perante toda a evolução sentida no futebol, a difusão da Periodização Táctica e de muitas novas ideias relacionadas com o jogo e o treino, ao contrário do que poderia ser esperado, Vítor Frade declarou no congresso acreditar que o pensamento analítico e redutor estará mais presente no Futebol do que nunca. A propaganda à medicina, à fisiologia, à nutrição, ao ginásio, à estatística, etc., vai ganhando terreno no jogo. Na verdade, a frase de José Mourinho “quando ganhamos, ganhamos todos… e mais alguns” nunca fez tanto sentido. Perante o sucesso todas estas “partes” e “compartimentos” que foram surgindo no Futebol reclamam para si o mérito. No insucesso, cai sobre o treinador toda a responsabilidade. Recordamos, por exemplo, o recente caso de Claudio Ranieri no Leicester City. Mara Vieira também vai ao encontro desta ideia, defendendo que “as coisas têm de estar enquadradas, senão a certa altura o departamento médico faz o que quer, o nutricionista também, o psicólogo também e depois o processo é de quem? Assim não há um processo único, há bocadinhos”.

“Uma investigação cuidada sobre o fenómeno da “INTERACÇÃO” exige um estudo “desta-em-si” (ou seja, do processo) e não da acção dos jogadores sobre os conteúdos nem dos conteúdos sobre os jogadores.”

Vítor Frade, 1990

O legado de Vítor Frade é grandioso, contudo difícil de compreender. O próprio reconhece, em entrevista a Xavier Tamarit, 2013, que “devemos compreender que estamos colonizados por uma lógica comum, por uns reforçadores culturais que nos influenciam conscientemente e, o que é pior, subconscientemente”. Assim, arriscamos que, levará, no mínimo, mais algumas décadas a compreender a essência da Periodização Táctica. Carlos Carvalhal em entrevista a (Cabral, 2017) concorda, referindo que Vítor Frade “é uma pessoa que pensa diferente, que é muito avançada no tempo. Acho que o devido valor só lhe será dado daqui a 20 ou 30 anos, só aí é que as pessoas o vão entender”. O impacto que este congresso teve em muitas pessoas, reforça essa crença. Ferrán Sarsanedas, a propósito de Johan Cruyff terá dito que “Cruyff é um génio, não há quem saiba mais de futebol que ele. O problema é que já não tem com quem discutir o que criou. Está tão à frente que vive há demasiado tempo num mundo só dele, como os loucos”. Podemos afirmar que Vítor Frade, não só na dimensão metodológica, mas também no entendimento do jogo, terá também atingido um patamar semelhante.

“Em primeiro lugar temos que entender o fenómeno como complexo, e se o é, jamais poderá deixar de ser complexo o modo como intervimos, reflectimos e actuamos sobre ele. (…) Há que estar perante esta realidade, reconhecendo-a como não linear e assim todo o pensamento tem de ter esta base, não linear.”

Vítor Frade em entrevista a Xavier Tamarit, 2013

“A Periodização Táctica procura o “regresso” do homem à sua essência. À sua complexidade.”

 José Tavares, 2017 – I Congresso Internacional de Periodização Táctica

O jogo como ciência, e as crianças como cientistas

Se atendermos à definição de ciência no “sentido restrito”, a qual “refere-se ao sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico bem como ao corpo organizado de conhecimento conseguido através de tais pesquisas”, expresso na (Wikipédia, 2017), então a frase que intitula o artigo deve ler-se no sentido figurado. Isto claro, se também entendermos o método científico pela visão clássica de Descartes e Newton. Obviamente que o futebol tem uma margem reduzida de pesquisa em laboratório e de comprovação teórica através destes pressupostos. Esse foi um dos erros que o pensamento analítico e mecanicista introduziu no jogo, no seu treino e na sua liderança, concretizado por exemplo em ideias de jogo que privilegiam a resolução individual, na Periodização Física, na excessiva importância dada à estatística, em lideranças que separavam a equipa em partes, dando mais importância a determinados elementos entendidos como mais valiosos, em detrimento de outros.

No entanto, segundo a mesma fonte, a ciência (do latim scientia, traduzido por “conhecimento”) refere-se a qualquer conhecimento ou prática sistemáticos“. Assim, nesta interpretação mais lata, pode surgir o futebol, pelo conhecimento que emerge da prática sistemática dos seus intervenientes. Neste enquadramento, e na perspectiva técnica, o treinador português (Jesus, 2015), explica que criou e desenvolveu uma metodologia com a sua equipa técnica ao longo dos anos que treinou. Jorge Jesus ressalva que não sendo uma ciência exacta”, criaram “uma ideia, uma ideia de treino, uma ideia de jogo, trouxemos muitas coisas novas para o Futebol”, e remata “o Futebol tem ciência, e ela começa no treino”.

“As pessoas riram-se muito quando Jesus disse que tinha inventado uma ciência, fartaram-se de rir disso, e é uma estupidez porque uma ciência é um corpo organizado de conhecimentos, e portanto o que o Jorge Jesus fez foi isso de facto. Ele tem, provavelmente até tomou apontamentos e armazenou, um conjunto sistematizado de conhecimentos sobre uma determinada matéria e que põe em prática com óptimos resultados, coisa que boa parte dos cientistas não se pode gabar.”

Ricardo Araújo Pereira

Na mesma linha de pensamento, Jorge Maciel, acrescenta que treinar tem muito de Ciência, mas não menos de Arte, e é a articulação bem conseguida entre estes dois planos que permite o sucesso”. O mesmo autor refere ainda que é uma ciência que se encontra “na esteira do pensamento sistémico e como tal coloca a ênfase nas relações, na qualidade e nos padrões, sem refutar na sua evolução a intuição, mostrando assim que tal como treino, também a Ciência de qualidade requer Arte“. Manuel Sérgio defende ainda que “o futebol “é uma ciência, tem de ser estudado e praticado como uma ciência humana, porque são homens e cada ciência humana estuda o homem à sua maneira“.

“Passado meio-século, a nossa visão da natureza mudou radicalmente. Onde a ciência clássica falava de equilíbrio e de estabilidade, vemos agora flutuações, instabilidades, processos evolutivos. E isto a todos os níveis, desde a cosmologia à biologia, passando pela química.”

Prefácio do livro de Prigogine e Dilip Kondepudi, editado pelo Instituto Piaget, Termodinâmica – dos motores térmicos às Estruturas Dissipativas, citado por (Sérgio, 2016)

Se mudarmos ligeiramente a perspectiva, podemos ir mais longe e interrogarmo-nos se o jogador não poderá assumir o papel do tradicional investigador e o jogo, o seu laboratório. Porque no fundo é, em primeiro lugar, ele que experimenta, ele que erra, ele que aprende, ele que evolui, ele que constrói um corpo de conhecimento, mesmo que este surja predominantemente no domínio do saber fazer. E desta forma também nos interrogamos se, assim, o jogo também não se torna numa ciência que se desenvolve nos pés, ou melhor, na cabeça de quem o joga.

Este pensamento conduz-nos a outro problema no contexto do Futebol de Formação. O papel do adulto enquanto condicionador das experiências que a criança obtém através do jogo. Isto, claro, partindo do pressuposto que o treino para o adulto é jogo. Cada vez vai ganhando mais força a ideia da importância do Futebol de Rua, das suas características singulares, e da prática sistemática que este promove. Da forma como esse contexto, desprovido de adultos, liberto da pressão que o erro significa para os mesmos, leva a criança a ser o “cientista”, experimentando, aprendendo o jogo com este como o professor, proporcionando-lhe evolução, fazendo emergir o talento e até conhecimento. Em conversa com um amigo e treinador de futebol de formação, ele relatava que “engraçado foi os miúdos dizerem que o melhor jogador do jogo de sub-14 era o… mais pequeno da equipa deles!!! Até eles sabem que o tamanho conta pouco quando a qualidade é muita!” Portanto, é constantemente o adulto, baseando-se em lugares comuns, em experiências castradoras, no pensamento analítico que o domina fruto do paradigma educativo e social vigente em que cresceu, que acaba por deseducar futebolisticamente a criança, castrando-lhe pelo caminho, a criatividade e o pensamento divergenteComo esse treinador referia… “o problema das crianças é… tornarem-se adultos”.

“Antigamente, sobravam tempo, espaço e oportunidades para as crianças jogarem longe das regras dos adultos. Nesses espaços não havia limite de toques ou caminhos proibidos. Muito menos caminhos obrigatórios.”

Paulo Sousa citado por (Amieiro, 2009)