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Intensidade no Futebol IV

Tal é profundidade do pensamento analítico na nossa cultura que é extremamente difícil a compreensão do paradigma da complexidade. A intensidade específica do jogo de Futebol é um bom exemplo, e como tal temos recorrido a este tema com insistência.

Hoje trazemos uma acção individual ofensiva, mais concretamente um drible. Não analisando a decisão de o efectuar, olhamos para acção concreta que acabou por resultar em sucesso, uma vez que provocou uma falta adversária numa situação de 1×2 e posteriormente de 1×3. Na perspectiva tradicional, ser intenso aqui significava acelerar, ininterruptamente, a execução e o deslocamento. A acção que que se mostrou eficaz perante uma situação desfavorável, para além de mudanças de direcção, implicou também temporizar, acelerar, temporizar, e novamente acelerar. No fundo na perspectiva complexa da intensidade, a específica do jogo de futebol, fazer bem, no tempo certo.

Quando a superioridade numérica não ajuda

A situação surge no momento de Transição Ofensiva, no nosso Modelo no sub-momento de Contra-Ataque, situação específica de contra-ataque em 3×1+GR. A questão que se levanta coloca-se na superioridade numérica clara do ataque, que até parece atrapalhar os jogadores em causa na resolução da situação. Lembra-nos o futebol de rua ou o jogo informal, quando uma das equipas tem superioridade numérica, mas não beneficia com isso e até parece sentir que a mesma a prejudica. Isto sucede em contextos de baixo conhecimento do jogo e consequentemente baixa qualidade individual e colectiva, tornando a gestão da maior complexidade, resultante do número elevado de jogadores e falta de espaço, um problema.

Constitui-se então como um exemplo de que por vezes, uma maior superioridade numérica pode não tornar a situação mais fácil de resolver. Porém não pelo número de jogadores em si, que por si só é um dado extremamente redutor, mas pelas relações que os jogadores estabelecem – a qualidade colectiva, e restante configuração do jogo. Como temos insistido, se o Futebol é extremamente complexo, como tal a sua reprodutibilidade teórica será sempre falível, nem que seja pelo mais ínfimo detalhe. Cabe a cada um de nós compreender isso na forma como interpretamos o jogo, ou como interpretamos representações teóricas do mesmo.

Neste caso, um dos atacantes sem bola deveria ter garantido opção à esquerda do companheiro com bola, sugerindo este a conduzir para o corredor central e fixar a o defensor. Deste modo, o portador ficaria com duas soluções de passe, em vez da única que dispôs aqui, dada a presença dos dois companheiros no mesmo espaço, à sua direita.

A ruptura epistemológica

Sub-tema de História do treino de Futebol, e na continuação da Periodização Física no Futebol, publicamos A ruptura epistemológica. Referimos que apesar da adição de algumas citações mais recentes, grande parte destes textos sobre a história do treino do futebol foram redigidos há alguns anos. No entanto, na nossa opinião, continuam actuais, e um tema que não está claro para muitas pessoas.

Estrutura actual de Saber Sobre o Saber Treinar.

Estrutura actual de Saber Sobre o Saber Treinar.

Filme

Filme - Arrival (2016)

Com naturalidade, a primeira questão será que ligação um filme, eminentemente de ficção científica, tem com o futebol? A resposta está desde logo na essência do argumento e na perspectiva de que existe uma relação entre tudo. De que a realidade, ou melhor, a realidade de cada um de nós, é toldada pela interacção de uma infinidade de fenómenos, muitos dos quais, provavelmente mesmo a maior parte, que não compreendemos dado o nosso momento evolutivo. Tempo, espaço, linguagem, sentimentos. Arrival procura portanto explorar a complexidade de forma incrivelmente profunda.

Edgar Morin, um dos principais pensadores da complexidade, citado pela (Wikipédia, 2012) descreve que “à primeira vista, a complexidade (complexus: o que é tecido em conjunto) é um tecido de constituintes heterogéneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efectivamente o tecido de acontecimentos, acções, interacções, retroacções, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal. Mas então a complexidade apresenta-se com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza… Daí a necessidade, para o conhecimento, de pôr ordem nos fenómenos ao rejeitar a desordem, de afastar o incerto, isto é, de seleccionar os elementos de ordem e de certeza, de retirar a ambiguidade, de clarificar, de distinguir, de hierarquizar… Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de a tornar cega se eliminarem os outros caracteres do complexus; e efectivamente, como o indiquei, elas tornam-nos cegos”. A ideia de que o futebol, à sua dimensão, pela infinidade de interações que promove, constitui-se como um fenómeno que representa essa complexidade, parece-nos hoje clara. Ideia que durante muito tempo, e ainda hoje, é repelida pela natural dificuldade na sua compreensão, consequência da forma como foi construída a nossa consciência. Coincidentemente, este será um tema que abordaremos em breve.

No mesmo plano, das múltiplas ideias que o filme aborda, a perspectiva que deixa sobre a comunicação e a linguagem parece-nos muito interessante pensando no futebol, genética, influência do meio, pensamento divergente e talento. Fomos educados, aprendemos e crescemos sob perspectivas lineares e redutoras da realidade. Consequentemente, o nosso pensamento e consciência, seguem a mesma linha. Assim, na abordagem do filme, as linguagens comuns são também elas construções desse pensamento linear e condicionam a nossa forma de pensar. Uma linguagem complexa, como a imaginada no argumento, fazendo interagir diferentes fenómenos e valências, estimularia o nosso cérebro, levando-o a outra percepção da realidade. Uma consciência guiada por sentimentos, superando as barreiras do espaço e do tempo seria com certeza um passo mais à frente na nossa evolução.

Esta ideia lembrou-nos uma parte de uma das apresentações de Sir Ken Robinson. Quando demonstra que à nascença todas as crianças têm uma enorme apetência para o pensamento divergente, e que a sua aquisição cultural, vai progressivamente condicionando negativamente e subtraindo esta qualidade.

As implicações desta ideia no futebol são tremendas. Para já deixamos ao “pensamento divergente” de cada um de vocês, o seu desenvolvimento. No entanto, lembramos a eterna questão sobre influência genética e influência do meio no talento. A perspectiva que o filme traz e o pensamento de Robinson empurram-nos cada vez mais para o papel decisivo do meio no desenvolvimento do talento no jovem praticante de futebol, nomeadamente naquele que está a ter os primeiros contactos com o jogo. Ideia reforçada pela nossa convicção na importância do papel da decisão e criatividade no jogo e sobre a qualidade de execução na sua profunda ligação à decisão e a diferentes estados emocionais. Esta perspectiva refuta assim a codificação genética das competências técnicas, assumindo-as portanto como uma construção cultural.

“Cada vez maior o convencimento de que os conceitos de que normalmente nos servimos para conceber a «REALIDADE» estão mutilados e conduzem a acções inevitavelmente mutiladoras.”

(Frade, 1985)

“O importante não são os números, mas sim a dinâmica da equipa.”

Na conferência de imprensa da selecção portuguesa, João Mário foi ao encontro de uma ideia defendida por nós. À luz do seu conhecimento do jogo, o jogador português descreve que cada vez dá menos importância aos “números”, portanto aos sistemas, e que tacticamente, o mais importante é a dinâmica que a equipa manifesta.

Dada a natural evolução táctica que o jogo apresentou, a estrutura posicional da equipa – sistema táctico, ganhou uma importância nuclear, assumindo-se como a principal referência para transmitir e analisar a organização das equipas. Uma das razões para este facto, foram mesmo as diferentes implicações na dinâmica das equipas e consequentemente na cultura de jogo, que as diferentes mudanças estruturais trouxeram.

Contudo, tal como noutras dimensões da intervenção do treinador no jogo, esta “catalogação” estrutural, foi extremamente redutora. É hoje claro, que o mesmo sistema pode absorver diferentes dinâmicas, diferentes princípios, e até mesmo diferentes culturas e formas de compreender o jogo.

Vamos mais longe e levantamos um problema para nós óbvio quando se caracteriza de forma geral uma equipa atribuindo-lhe um determinado sistema. Já excluindo os momentos de transição e os naturais posicionamentos colectivos mais caóticos que deles resultam, questionamos qual foi o momento de jogo, se a organização ofensiva ou organização defensiva da equipa que esteve na base dessa “fotografia” da estrutura posicional do seu jogo. Isto porque nesta fase da evolução táctica do jogo, todas as equipas apresentam determinados posicionamentos no momento defensivo e outros bem diferentes no momento ofensivo. Dando dois exemplos simples, é comum vermos uma equipa atacar numa estrutura de 1:4:3:3 e defender numa estrutura de 1:4:5:1, e aqui sem caracterizar eventuais posicionamentos altos dos defesas laterais no momento ofensivo. Por outro lado, é também cada vez mais comum vermos equipas em organização defensiva num estrutura de 4 jogadores na sua última linha, e que no momento ofensivo se transforma, com a subida dos defesas-laterais e o recuo de um médio-centro, numa estrutura de 3 jogadores. E como a caracterizamos? 1:4:X:X ou 1:3:X:X? Tomando como referência apenas um desses momentos, não será isso redutor? Não serão os dois momentos igualmente importantes na organização geral e qualidade de jogo da equipa? No pontapé de saída? Mas esse até é um momento estático em que nem se está a jogar, e por outro lado cada vez surgem mais equipas a tentar fazer dele uma oportunidade para utilizarem um esquema táctico, ou seja, uma situação mais ou menos fechada trabalhada previamente, em que os jogadores assumem um posicionamento muito específico.

Por outro lado, se analisarmos os diferentes comportamentos das equipas dentro de cada um desses grandes momentos do jogo, também percebemos que as equipas a esse nível de organização, variam muito de estrutura. Por exemplo, uma equipa pode pressionar alto em determinada estrutura, mas apresenta outra quando se encontra a defender junto à sua área.

Vários autores, nomeadamente treinadores portugueses, como são exemplos José Mourinho, Jorge Jesus, Vítor Pereira e André Villas-Boas, atribuem importância ao sistema enquanto ponto de partida, ou seja, como mais um princípio. São porém unânimes em entender como decisiva a dinâmica criada a partir do mesmo. O nosso ponto é que diferentes momentos e sub-momentos do jogo, logo, diferentes princípios, diferentes dinâmicas e consequentemente diferentes… sistemas. Portanto, é redutor e irrelevante identificar determinada equipa através de um sistema.

No exemplo, provavelmente mais contundente, em 1974, um traço que marcou a Holanda de Rinus Michels e Johan Cruyff, foi a permanente troca de funções e também variabilidade posicional dos seus jogadores, nomeadamente no momento ofensivo do jogo. Como resultado, se hoje fizermos uma pesquisa ao sistema táctico da selecção holandesa presente nesse campeonato do mundo, surgem-nos diferentes estruturas com os mesmos jogadores.

Desta forma, sentimos, para a evolução teórica do jogo, e uma vez mais indo ao encontro da sua natureza complexa, ser importante evoluir para outra caracterização das equipas, pois a actual forma, para além de redutora, é consequentemente um problema para os treinadores, analistas, e naturalmente para os jogadores.