Conhecimento do Jogo & Modelo de Jogo

“(…) enquanto sozinho no seu gabinete pensava sobre o que mudar, mas convencido de uma coisa: a minha ideia, a ideia de Cruyff, teria que ser mantida. Eu manteria-a, por mais difícil que fosse. E o suporte estava prestes a ser proveniente de uma fonte inesperada… Não parava de pensar sobre isso, quando alguém bateu na porta do meu gabinete…

“Pode entrar.”

“Olá, mister”.

Uma figura pequena entrou pelo gabinete dentro e falou calmamente. “Não se preocupe, mister. Nós vamos ganhar tudo. Estamos no caminho certo. Continue assim, ok? Estamos a jogar muito e a adorar o treino… Por favor, não mude nada.”

Pep Guardiola, citado por (López, et al., 2016)

Como fizemos questão de sublinhar no início deste projecto, o conhecimento que procuramos construir, terá o intuito de estar em permanente evolução, evitando cristalizar-se, e eventualmente consolidando-se como alguns dogmas idênticos aos que procuramos derrubar. Essa missão, em nosso entender, não só é fundamental, como se constitui no principal objectivo do projecto Saber Sobre o Saber Treinar.

Exposto na Introdução do projecto, sentimos uma primeira necessidade de caracterizar, dividindo… “sem empobrecer”, as principais dimensões na intervenção do treinador. Mas não só, e estamos a procurar expandir o conhecimento a outras funções técnicas que contribuem para o desenvolvimento da equipa. Nesse âmbito chegámos à Liderança, Metodologia e Modelo de Jogo. O Modelo de Jogo constituiria-se como o máximo conhecimento teórico sobre o jogo que conseguiríamos reunir.

Nesse domínio específico seria reunido, conhecimento do jogo, da sua sistemática, história e contexto cultural, que permita idealizar uma forma rica de disputar o jogo, que traga à equipa organização, mas que simultaneamente não a torne mecânica e incapaz de dar resposta à aleatoriedade e caoticidade do jogo. E ainda, que essas ideias que tenham também em conta a sua adaptação ao tal “espaço” / contexto e “tempo” / evolução do jogo.

Neste trajecto evolutivo, começámos a sentir que essa dimensão da intervenção do treinador seria vasta e que o conceito de Modelo de Jogo seria-lhe desajustado, dado tratar uma realidade mais específica. Recorrendo à (Wikipédia, 2019) um modelo científico trata-se de “uma idealização simplificada de um sistema que possui maior complexidade, mas que ainda assim supostamente reproduz na sua essência o comportamento do sistema complexo que é o alvo de estudo e entendimento“. Assim sendo, o Modelo de Jogo será uma leitura da realidade. Portanto, uma Ideia de Jogo, alicerçada no tal conhecimento do jogo, em interacção com o contexto onde é operacionalizada.

O professor Vítor Frade, em entrevista a (Tamarit, 2013), explica este entendimento. “Duas coisas distintas, uma coisa é a ideia de Jogo e outra coisa é o Modelo de Jogo. Pode parecer um paradoxo, uma coisa estranha, mas antes está a Ideia de Jogo e só depois está o Modelo de Jogo. O Modelo é o que se sujeita também às circunstâncias. O Modelo é tudo porque é a Ideia de Jogo mais as circunstâncias, e as circunstâncias podem relativizar aquilo que eu faria noutras circunstâncias, mas em termos de padrão é igual! Eu quero jogar mais ou menos assim. Agora, se eu fui treinador do Barcelona e depois vou treinar uma equipa da quarta divisão… é diferente, eu quero que passem de primeira e eles não o fazem nem de pistola na mão. A bola não se assusta! As pessoas têm que ter a inteligência suficiente. Estou a falar a Top. Acha que havia muitas diferenças do Chelsea para o Inter? Não há, não há. Há mais de jogo para jogo em função das circunstâncias… mesmo no Porto, só que o Porto não tinha Zanetti, não tinha o não sei quê, e tenho que ver isso. Agora a Ideia de Jogo é uma coisa, a fabricação da Ideia tem a ver com as circunstâncias e esse é o Modelo de Jogo, o que implica também a dinâmica existencial dos Princípios Metodo­lógicos. E o Modelo é tudo, até algo que às vezes desconheço, e que me «incita» à modelação, porque se eu não o contemplei, lixei-me!“.

O autor (Azevedo, 2011) reforça esta posição, explicando que “o Modelo de Jogo em Futebol é normalmente mal-entendido pelas pessoas. Fala-se dele como sistema de jogo implementado ou a estrutura inicial que a equipa apresenta em campo. No entanto, o Modelo de Jogo é muito mais do que isso, o Modelo é tudo (Frade, 2006). Entendemos que um Modelo de Jogo é algo que identifica uma determinada equipa, não é apenas um sistema de jogo, não é o posicionamento e disposição dos jogadores, mas sim a forma como os jogadores estabelecem as relações entre si e como expressam a sua identidade, uma determinada organização apresentada em cada momento do jogo que se manifesta com regularidade“.

Também (Maciel, 2011), refere que “o Modelo é constituído por um conjunto de inúmeros aspectos, alguns mais relacionados com opções do treinador, como a concepção de jogo, a metodologia de treino, a operacionalização do processo, outros mais relacionados com os jogadores e com a própria realidade do clube e o contexto envolvente. Aspectos que vão desde as crenças de jogadores ou dirigentes, à história do clube, dimensão estatuto e competência do departamento médico, a realidade competitiva, até as picardias e rivalidades históricas que possam existir dentro e fora do clube. Pode dizer-se que o Modelo é tudo. E por isso mesmo penso que a imagem mais capaz de o retratar é a de um iceberg, à superfície, isto é a face visível, parece ser uma realidade circunscrita a uma determinada dimensão e complexidade, mas na verdade é bem mais complexa e edificada sobre muitos aspectos que não são visíveis à superfície, mas que se assumem como fundamentais para a dimensão visível do Modelo. O Modelo é tudo e resulta da interacção altamente dinâmica entre os aspectos visíveis e dizíveis com os aspectos invisíveis e indizíveis que o compõem. A melhor definição que conheço de Modelo é a do Professor Vítor Frade quando afirma que “o Modelo é qualquer coisa que não existe, mas que todavia se pretende encontrar”. Trata-se portanto de uma espécie de impossível necessário, que nós em termos ideais concebemos, mas que depois na sua concretização não conseguimos reproduzir tal e qual, pois ao nível do pormenor ele vai assumir contornos únicos resultantes da interacção com o que o envolve“.

Deste modo o Modelo não é o antes. É uma “fotografia” da realidade. Neste caso, da realidade de uma equipa.

Perante isto, faz-nos mais sentido falar em Conhecimento do Jogo para descrever essa dimensão mais “generalista” da intervenção do treinador. Partindo dela, influenciada sempre por traços de liderança e mesmo metodológicos, o treinador / equipa técnica, chega(m) à Ideia de Jogo. A sua operacionalização, deste modo, no domínio “do real”, implica no contexto específico onde acontece, uma interacção profunda com a Metodologia e Liderança exercidas. Podemos então entender, que daí resulta o… Modelo de Jogo.

Dimensões da intervenção do treinador e Modelo de Jogo.

“Mourinho tinha uma definição, uma exclamação, quando lhe faziam essa pergunta, ele dizia: Para mim, modelo é tudo! E é. É tudo e mais alguma coisa. Porque muito desse tudo a gente não conhece. Muito desse tudo está pra vir. Agora eu não posso perder o azimute. É por isso que eu lhe dizia, digo sempre, num processo de treinabilidade, o futuro é o elemento causal da interacionalidade. Mas o futuro como perspectiva, como ideia. Por isso é que eu digo, o modelo de jogo é qualquer coisa que não existe em lado nenhum… não existe como tal, mas a configuração… É como eu, aqui, quando estive agora a falar consigo, eu sabia do que vinha falar, porque você tinha me dito, mas não sabia e não sei o que vai sair daqui. E é isso que se deve aspirar que aconteça, na treinabilidade.”

(Frade, 2015)