A decisão de Endrick. Pensá-la de forma linear ou de forma complexa.
“Não é fácil, e sobretudo temos de ter perfeita noção que não há receitas, apela fundamentalmente ao Sentido da Divina Proporção, daí que não faça sentido estabelecer momentos para a utilização tanto do feedback ou do feedfoward. E esse é o lado engraçado e desafiador do processo, não há receitas, tem de haver arte na gestão de tudo isto. Eu penso inclusive que muita da robotização manifesta por muitos jogares resulta da renúncia da parte dos treinadores ao lado intuitivo da gestão dos processos de treino. Parece que parte da pergunta feita, “em que momentos utiliza-os” espelha uma tendência generalizada nos treinadores, e que quanto a mim radica na não capacidade de lidarem com a complexidade e com o que esta implica, nomeadamente a necessidade de estarmos perante uma realidade que não é à partida totalmente conhecida.”
(Jorge Maciel, 2011)
Durante muito tempo acreditámos que existiam melhores decisões para resolver um determinado problema que o jogo coloque. Referimo-nos principalmente a situações que vão emergindo como padrão. Por exemplo, como decidir do ponto de vista atacante um contra-ataque em 3×2+GR, tendo inclusive em conta os diferentes comportamentos que os defensores e o Guarda-Redes poderão adoptar. Ainda acreditamos que existem melhores decisões do que outras. A principal passa por o Futebol ser um jogo com determinadas regras e especificidade, no qual não vale tudo, nem tudo tem a mesma validade qualitativa para o jogar ou se ser bem sucedido. Ou no limite, diferentes comportamentos, mesmo que no mais ínfimo detalhe, diferentes consequências na eficiência e eficácia no jogo. Resumindo, melhores decisões farão então crescer a eficiência e a eficácia no jogo.
Porém, a experiência e conhecimento levam-nos a reflectir, se hoje os treinadores em geral, não estão a condicionar as decisões de forma excessiva. É um debate recorrente, tendo em conta o argumento já clássico que recorre à forma como jogávamos na rua, e como, sem a presença do treinador, o jogo nos ensinava pela tentativa, erro e feedback sócio-emocional a regular a e modelar o nosso jogar do ponto de vista do trinómio Estética-Eficácia-Eficiência. E influenciando directamente tudo isso, obviamente que todos tínhamos velocidades e interesses diferentes sobre este desenvolvimento, o que se tornava decisivo no processo. Como maior exemplo, se quase todos sonhávamos em vir a ser jogadores de futebol profissionais, apenas alguns acreditavam mesmo nisso com a suficiente ambição, determinação e resiliência para efectivamente lá chegar.
Emerge então essa questão fundamental. Se os treinadores e a sua eventual excessiva intervenção, mecanização, e castração da criatividade, autonomia e individualidade, não estão então a condicionar e formatar os jogadores para perfis idênticos e de limitado poder autónomo, cognitivo, criativo e de pensamento divergente. A resposta parece-nos clara no Futebol de Formação. Mas quando a discussão se alarga ao Futebol de Rendimento, tendo em conta as necessidades do contexto em maximizar a eficácia e o pouquíssimo tempo que existe para treinar, a questão torna-se mais complexa.
O golo marcado por Endrick no Real Madrid x Estugarda para a Liga dos Campeões levantou uma importante discussão num grupo de treinadores de Futebol. A situação foi a referido atrás: o clássico contra-ataque 3×2+GR com mais 2 atacantes a chegar. Na nossa mente, são vários os sub-princípios ofensivos que podem ajudar a tornar mais eficiente a resolução da situação e portanto, mais fácil a finalização. Por outro lado, a finalização pelo jogador em condução pelo corredor central é uma dessas soluções e que acontece muito frequentemente no Futsal quando os dois defensores permitem aproximação à sua baliza e abrem espaço entre si, para que o remate seja efectuado com sucesso. E tão próximo da baliza, a capacidade de reação do Guarda-Redes torna-se mais curta. Mas não foi o caso. O jovem brasileiro finalizou de uma posição ainda distante da baliza.
Neste enquadramento, apesar da eficácia da decisão que tomou, tendo em conta a eventual dificuldade da mesma, terá decidido mal. Clarificando, decido mal numa perspectiva a prazo. Ou seja, repetindo a decisão mais 10 vezes, poderia não ter sucesso em mais nenhuma. Isto porque num pensamento lógico e linear, tomando uma decisão mais difícil muitas vezes, logo, de probabilidade de sucesso menor, irá perder essa oportunidade várias vezes. Diminuindo a eficiência, teremos então consequências na eficácia.
Mas perante uma potencial evolução de pensamento, este raciocínio, sublinhamos, torna-se simplificado e linear. Isto porque só estamos a pensar em tempo, espaço, número e na ”média“ da dificuldade das acções individuais para os jogadores em geral. Não estamos a pensar de forma complexa. Não estamos a pensar em que a acção humana não é linear, que existem jogadores que resolvem determinados problemas e acções muito melhor que outros. E neste caso concreto, a questão será… se Endrick voltar a tomar a mesma decisão… se voltará a marcar golo. É provável que não. Mas não sabemos sequer se volta a tomar a mesma decisão, até porque as circunstâncias são irrepetíveis. Cada ser humano é único. Como cada uma das suas decisões.
Fruto da nossa educação e cultura, somos levados a pensar de forma. Como tal tendemos a ignorar dimensões influentes no processo. Não ”vemos” intuição, qualidade da criatividade e do pensamento divergente. Temos dificuldade em sentir o que, naquele momento, a confiança de cada um pode aportar à situação. E isto são só alguns dos fenómenos que não vemos ou sentimos. Haverá muito mais certamente. Desejamos fechar o espectro de análise para conseguir catalogar, colocar em caixas, moldar e guiar, mesmo que na nossa mente isto não seja num sentido fechado. Mas no final torna-se sempre. O problema é se as “regras” traçadas pelo treinador ao jogo que quer que os jogadores joguem, limitam qualidades que o jogador tem ou está a ter, e o treinador não as vê ou sente.
Não existem jogadores iguais, com qualidades iguais, em momentos qualitativos iguais. Tal como as circunstâncias, por muito que se aproximem de forma semelhante. E é de facto o papel do treinador no treino, aproximá-las do jogo, tendo no entanto a consciência que nunca se irão verdadeiramente repetir. Assim, deve então propiciar contextos que se posicionem num limiar onde existirá transfere do treino para o jogo, conseguindo dessa forma potenciar e não castrar ou prejudicar.
Este caminho passa pela criação de princípios a diferentes escalas do jogo. Que são isso mesmo… princípios. Porque o seu desenvolvimento e final irá caber sempre aos jogadores e ao ”aqui e agora” do jogo. Dando o mesmo exemplo, dificilmente criamos a real condição da acção de Endrick, em ter acontecido nos derradeiros segundos dos descontos… e como o resultado se encontrava naquele momento. E consequentemente, o contexto emocional vivenciado. E “só” isto tem potencial para mudar a decisão de um jogador.
Por outro lado estamos sempre, no registo do certo ou errado. Da boa e má decisão. Estamos formatados para isso. Para a dualidade, para o binário. O que a ciência começa-nos a provar, é que a realidade não é assim. O “gato está vivo e morto até abrirmos a caixa”…
Não estamos a defender o oposto da mecanização. Estamos a argumentar que devemos ter sensibilidade para o contexto de cada acção. E como Vítor Frade defende, devemos dar espaço à “divina proporção”. E como também diz… em ajudar a construir “mecanismos não mecânicos”. E isto passa pela intuição e decisão do treinador em criticar, valorizar, ou às vezes não intervir e deixar fluir. Como pensamos que deve ser este caso. Se no futuro começar a originar um padrão negativo… aí sim… condicionar ou mesmo reprimir a decisão. Até porque, na decisão tomada pelo jogador brasileiro, e sublinhado a ideia passada anteriormente, nas tais características lineares (tempo, espaço, número), não estamos a considerar a intuição, o pensamento divergente e a confiança. Que não só são fundamentais para muitas vezes desbloquear situações de jogo, como a nível macro, para o jogo evoluir. O Guarda-Redes do Estugarda, muito provavelmente, tal como nós, não previu aquela decisão do Endrick e por isso não a defendeu melhor…
Todos os que jogámos, e principalmente na rua, sentimos em determinados momentos uma intuição e uma confiança inabalável numa decisão ou execução mais difícil. Mesmo perante outras alternativas de decisão e execução bem mais fáceis. Mas decidimos fazê-lo porque sentimos que íamos ter sucesso. E tivemos. E como, do ponto de vista externo, medir ou avaliar isto? Não sentindo, torna-se de facto muito difícil. Por outro lado, avaliar uma acção pelo seu sucesso, torna-se o caminho mais simples, apesar dos riscos em si inerentes. E no fundo, é informação superficial. Tonar-se claro o grande desfio evolutivo que temos pela frente.
Concluindo, e lançando um tema futuro, é curto avaliar uma acção de jogo apenas através de tempo-espaço-número. Se há algum tempo para trás referíamos a importância de acrescentar a qualidade, hoje sentimos que a mesma também não pode ser considerada de fechada, mas sim muito influenciada por diferentes estados emocionais e diferentes contextos. Portanto, continuamos a acreditar que existem melhores decisões para resolver um determinado problema. No entanto, compreender as mesmas carece de uma visão mais complexa, do homem, do jogador, e está também mais dependente do contexto e do aqui e agora do jogo.
“nós normalmente quando acentuamos muito o que é táctico, temos tendência a robotizar, temos tendência a querer um futebol quase sem erros, um futebol mecânico. Eu já tive essa tendência, por exemplo, direccionar muito o feedback do exercício, sistematicamente parar para corrigir e não deixando que o jogo flua, é importante deixar fluir o jogo. Ás vezes estou no treino a ver uma solução, que para mim é a melhor solução, porque vem no sentido daquilo que é a minha ideia de jogo, por exemplo, quando a bola entra no corredor quero que haja a tentativa de forçar esse corredor em situações de dois contra um, através do envolvimento do lateral ou através do envolvimento do médio centro. Mas eu tenho um extremo direito que é muito melhor jogador daquilo que eu fui, mas muito melhor jogador, e muitas vezes aquilo que eu fui como jogador limita-me em termos de leitura daquilo que está acontecer, isso acontece montes de vezes, estou à espera de um movimento qualquer e o movimento sai correcto, o movimento sai correcto e a bola não entra, tenho a tentação de dizer é neste momento, tau, mas esse meu extremo direito inventa futebol, mas inventa futebol com uma qualidade acima da minha, do meu entendimento. Ele consegue descobrir soluções que eu no meu entendimento não consigo perceber, no momento não consigo perceber o que ele quer mas ele descobre, ele descobre porque ele tem muito mais qualidade do que eu algum dia tive e apesar de eu estar de fora ele é capaz de descobrir soluções… Aqui há uns anos se ele não jogava no movimento que eu pretendia, ficava chateado, porque achava que ele não estava a corresponder à dinâmica do colectivo. Agora deixo fluir, porque percebo que ele me consegue dar, a maior parte das vezes, soluções muito mais ricas do que aquelas que eu estava à espera. Eu não limito a criatividade, eu deixo criar mas tem que ser… agora, se ele me cria uma vez e perde a bola, se me cria duas vezes e perde a bola, sistematicamente colocando em causa o que é o colectivo, ai isso para mim não é criatividade. Para mim ele está a recrear, não está a criar para a equipa. O problema é nós deixarmos que eles do ponto de vista individual consigam emprestar o mais possível ao colectivo.”
(Vítor Pereira, 2009)