“Às vezes temos a tendência de não valorizar a parte em relação ao todo, mas a parte faz parte do todo e é fundamental para que tudo flua da melhor forma”

“É útil olhar para o experimento da maçã podre sob esta perspectiva. Nick conseguiu perturbar a química dos grupos apenas enviando alguns sinais de não pertença. O seu comportamento foi um sinal poderoso para o grupo — não estamos seguros — o que imediatamente fez com que o desempenho do grupo desmoronasse. Jonathan, por outro lado, forneceu um fluxo constante de comportamentos subtis que sinalizavam segurança. Ele conectou-se individualmente, escutou atentamente e sinalizou a importância da relação. Ele foi uma fonte inesgotável de sinais de pertença, e o grupo respondeu de acordo.”

(Daniel Coyle, 2018)

Nos últimos séculos, a sociedade foi dominada por um pensamento analítico, caracterizado pela divisão e dissecação do conhecimento em partes menores para melhor compreensão e controlo. Essa abordagem trouxe grandes avanços científicos e tecnológicos, mas também levou a uma visão fragmentada da realidade. Hoje surge uma tendência oposta: a sobrevalorização do pensamento holístico na demanda de integrar diferentes partes e reconhecer a complexidade do todo. No entanto, esta nova tendência surge eventualmente como compensatória ao tremendo domínio que o pensamento analítico exerceu e vai além do patamar de equilíbrio da análise com a síntese. Deste modo, em diversas áreas observa-se, pensa-se e actua-se excessivamente sobre o todo e esquece-se a importância das partes. O futebol, ainda que repleto de diferentes exemplos, também vai manifestando este problema.

Muitas vezes observa-se o jogo, seja quantitativa ou qualitativamente pela sua totalidade, quer pela estatística e quantidades de acontecimentos recolhidos, quer através da análise qualitativa de comportamentos colectivos, intersectoriais, sectoriais  e grupais. Esquecem-se as acções individuais e a execução técnica. O pensamento contagiou muitos treinadores que descuram a dimensão individual do jogo, quer no crescimento dos jogadores a este nível quer no combate às suas lacunas. Esquece-se então o jogador, a sua unicidade e individualidade e o quanto isso pode fazer a diferença no seio de uma equipa e no jogo. Como esclarece Vítor Frade, em entrevista a (Xavier Tamarit, 2013), “o que dirige o Processo é uma matriz, é uma ideia de jogo e de operacionalização, porque a Especificidade só é garantida… não é garantida pelo macro, é garantida pela intervenção que você consegue ter em todas as particularidades, de forma que elas contribuam para o todo, porque senão, não é Especificidade. Caso contrário, você não vai identificar que Joaquim é diferente de Manuel, e isto é diferente daquilo. Portanto, a Especificidade também está aí… e as partes melhorando, melhoram o todo”.

Uma equipa técnica é outro bom exemplo. A competência da mesma é certamente gerada pelo todo que se gera na interação das partes, ou seja, cada técnico. Mas a individualidade, aérea de especialidade, experiência e competência individual, são também fundamentais para que esse todo seja melhor.

Um destes técnicos, Vítor Matos, no passado formando equipa com Pepijn Lijnders no Liverpool de Jürgen Klopp e que agora acompanhou o neerlandês num novo desafio no Red Bull Salzburg, aborda a questão pela dimensão sócio-afectiva e dinâmica do grupo. O treinador português defende a importância da individualidade e das escolhas do treinador na construção da equipa. Certamente, nada de novo. Os bons e mais experientes treinadores terão há muito (para não dizer desde que o futebol é futebol), uma intuição e sensibilidade para tal. Racionalizar isto, na perspectiva de alguém que, pelo trajecto que teve no futebol acreditará na mudança de paradigma vivida nas últimas décadas nomeadamente ao nível do pensamento holístico, complexo e sistémico, é que é  se torna raro na hoje em dia. Porque tal como na restante sociedade, vivemos uma tendência para a polarização de crenças e atitudes.

“É um desafio pelas relações que se vão criando. Por isso é tão importante a ideia de jogo e este compromisso coletivo. É normal, quando tens dois ou três jogadores de uma nacionalidade e dois ou três de outra e por aí fora, que eles se relacionem mais entre eles, por grupos. O desafio é que nos consigamos conhecer melhor, de forma a que, no jogo, tudo flua naturalmente. Às vezes, é o próprio jogo que leva a essa naturalidade. Por essas razões, ao olharmos para o mercado, fomos buscar alguém com mais experiência, o Janis Blaswich, um jogador com maturidade, um capitão, que ajudasse a que existisse uma maior maturidade também nestas questões. É importante ter sensibilidade para este tipo de questões. Mas, mais do que aquilo a que nós [treinadores] possamos apelar, os jogadores também têm de, eles próprios, criar o seu próprio espírito de equipa. Acreditamos muito que os jogadores têm ownership, que sejam capazes de construir e criar uma cultura partilhada. Às vezes temos a tendência de não valorizar a parte em relação ao todo, mas a parte faz parte do todo e é fundamental para que tudo flua da melhor forma”.

(Vítor Matos, 2024)