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O Manchester United de Matt Busby… o regresso

Na sequência da primeira publicação sobre a extraordinária história do Manchester United de Matt Busby, publicamos a segunda parte.

O Manchester United de Matt Busby foi um exemplo inspirador de liderança e valores humanos, especialmente perante o terrível acidente aéreo que a equipa, o treinador e o clube sofreram em 1958. O desastre de Munique, como ficou conhecido, foi uma tragédia que abalou todo o universo do futebol, tirando a vida de vários jogadores e membros da equipa técnica, além de deixar muitos outros gravemente feridos. Um deles, o próprio treinador.

Apesar de destroçado, Busby foi um exemplo de enorme coragem. O que se seguiu ao desastre mostrou a resiliência, a solidariedade e a coesão que caracterizavam o Manchester United sob a sua liderança. Apesar da devastação, Busby e o clube recusaram-se a desistir. Com determinação e coragem, reconstruíram a equipa e continuaram a lutar em honra daqueles que perderam as suas vidas. Este período difícil na história do Manchester United demonstrou não apenas a força do carácter de Matt Busby como líder, mas atrás disso, o seu profundo compromisso com os valores humanos. Ele não dirigiu a equipa apenas com competência e visão, mas também cuidou dos seus jogadores como uma família, mostrando empatia, compaixão e apoio inabalável.

O legado deixado por Matt Busby e pelo Manchester United após o desastre de Munique vai muito além do futebol. É um testemunho inspirador de como uma liderança virada para as pessoas pode superar até as adversidades mais terríveis. O Manchester United de Busby permanece um símbolo de esperança e perseverança, lembrando-nos da importância de nunca desistir, mesmo nos momentos mais sombrios.

“O sucesso nunca é permanente, e o fracasso nunca é total. O que importa é o coração que colocamos em cada jogo.”

Matt Busby

O Celtic de Jock Stein e a histórica vitória do Jamor

A primeira Taça dos Clubes Campeões Europeus ganha por um clube Britânico aconteceu em Lisboa, mais precisamente no Estádio do Jamor, a 25 de maio de 1967. No Diário de Notícias podia-se ler: “Uma das mais belas tardes do Jamor: o “duche escocês” apagou o Inter… Um jacto que durou 90 minutos e deslumbrou milhões de espectadores”.

O Celtic enfrentou a então poderosa equipa italiana do Inter de Milão, liderada pelo revolucionário Helenio Herrera, treinador argentino-italiano conhecido pela sua abordagem táctica inovadora, descrita como “catenaccio”. Herrera foi uma figura icónica no futebol, tendo conquistado vários títulos importantes durante a sua carreira de treinador. No entanto defrontavam-se dois treinadores lendários. O Celtic, liderado por Jock Stein, conquistou a vitória por 2-1, tornando-se então o primeiro clube britânico a vencer a competição. Este foi um momento histórico não só para o futebol escocês, mas para toda a Grã-Bretanha. Mas perante tal confronto de culturas, a vitória do Celtic foi celebrada em toda a Europa.

Isto porque o Celtic era visto como um clube representante do “futebol dos homens comuns”, uma vez que sua equipa era principalmente composta por jogadores da própria Escócia e de outras partes das Ilhas Britânicas, em contraste com o Inter de Milão, que contava com uma equipa de jogadores icónicos internacionais. Além disso, a vitória do Celtic quebrou a hegemonia dos clubes italianos, espanhóis e portugueses, que vinham a dominar a competição até então. Isso trouxe uma sensação de renovação e esperança para os fãs do futebol de outras partes da Europa e culturas, que se viram representados por um clube menos tradicional nestes contextos e menos poderoso.

Deste modo, a disparidade cultural e táctica refletiu-se no estilo de jogo apresentado pelas equipas. O Celtic apresentava uma abordagem mais ofensiva e apaixonada, enquanto o Inter de Milão jogava numa estratégia mais cautelosa e defensiva. Portanto, o confronto não foi apenas sobre futebol, mas também sobre diferentes filosofias e ideologias que cada clube representava. Deste modo, a vitória do Celtic, derrotando na final uma equipa tão forte como o Inter de Milão com uma exibição apaixonada, emocionante e determinada, contribuiu para que a sua vitória transcendesse fronteiras e rivalidades clubísticas.

“Se algum dia vão ganhar a Taça dos Clubes Campeões Europeus, então este é o dia e este é o lugar. Mas não queremos apenas ganhar esta taça, queremos fazê-lo a jogar bom futebol – para fazer os neutrais contentes por termos ganho, contentes por se lembrarem como o fizemos.”

(Jock Stein em discurso à equipa antes do jogo)

O Manchester United de Matt Busby

No passado dia 6 de Fevereiro fizeram-se 66 anos desde o terrível desastre aéreo que a então equipa do Manchester United sofreu, no qual perderam-se 23 vidas, das quais 8 eram jogadores da primeira grande equipa de Matt Busby. Reconhecido como um incrível líder de valores humanos excepcionais, Busby ergueu-se das lesões e tremenda amargura sentida e voltou a reconstruir a equipa levando-a novamente ao sucesso. Sucesso que ficou marcado com a conquista da Taça dos Campeões Europeus frente ao Benfica em Wembley, passados 10 anos do acidente, constituindo o Manchester United como o primeiro clube Inglês a vencer a competição.

O video, extraído do filme The Three Kings,  relata uma das grande histórias que o jogo viveu. Aqui publicamos a primeira parte, ficando a promessa de publicarmos a segunda brevemente.

“O desastre aéreo de Munique tornou-se parte da alma do Manchester United. Está lá enraizado com o sonho de Matt Busby quando ele estava nas ruínas bombardeadas de Old Trafford em 1945 e na realização desse sonho com os Busby Babes. No seu cerne há uma paixão e uma determinação inabalável; uma paixão não apenas para vencer, mas para vencer com estilo, para jogar o belo jogo, para atacar e entreter; e uma determinação inabalável para lutar contra todas as probabilidades. Ambos estavam evidentes naquela primeira temporada após Munique, quando, para espanto de grande parte do mundo do futebol, a equipa que eu agora ia ver regularmente com os meus amigos em vez do meu pai terminou como vice-campeã, atrás do Wolves. Estavam lá quase uma década depois, no Bernabéu, quando um Bill Foulkes envelhecido e lesionado saiu a galope da defesa para marcar o dramático golo tardio contra o grande Real Madrid, colocando o United na Final da Taça Europeia; e lá na própria final, em Wembley, quando Bobby Charlton saltou mais alto do que alguma vez o tinha visto saltar para marcar o golo inaugural, e na ala brilhante do jovem John Aston, que desfez a defesa do Benfica e contribuiu muito para selar a vitória que finalmente tornou o United campeão da Europa.”

(David Hall, 2008)

Os princípios de jogo e a necessidade dos mesmos na resolução de uma situação de contra-ataque 2×2+GR

“Romário só tinha uma tarefa defensiva”

O contra-ataque, e… ou melhor… ou, o ataque rápido II

“Segundo Garganta (1997) e Castelo (2004) este Método de Jogo Ofensivo apresenta as características fundamentais que foram referidas para o Contra-Ataque. A diferença estabelece-se fundamentalmente no facto do contra-ataque procurar assegurar as condições mais favoráveis para preparar a fase de finalização antes da defesa contrária se organizar de forma efectiva. Enquanto que o Ataque Rápido terá de preparar a fase de finalização já com a equipa adversária organizada eficientemente no seu método defensivo.”

(José Lopes, 2007)

Como prometido na semana passada, hoje voltamos a falar do contra-ataque e de ataque rápido. Num artigo de 2019 abordámos o tema, explicando sob a nossa visão e sistematização do jogo, as diferenças entre ambos. Nesse momento escrevíamos:

“A relevância deste assunto, prende-se, para nós, com a confusão geral em que mergulhou, em trabalhos académicos e entre treinadores e jogadores, tal como o próprio tópico da discussão ilustra. Deste modo, o assunto assume especial importância uma vez que se trata de entendimento e conhecimento do jogo, portanto, questões fundamentais no papel do treinador.”

Como referido, tornou-se um lugar comum a associação, tantas vezes ouvida entre ataque rápido e contra-ataque, que acreditamos ter surgido de uma visão clássica do jogo, a qual apenas contemplava as “fases” ofensiva e defensiva, e os coorrespondentes métodos de jogo ofensivos disponíveis nos quais eram agrupados o “ataque organizado ou posicional”, o “ataque rápido” e o “contra-ataque”. Com a evolução para uma visão mais completa e complexa do jogo, contemplando quatro momentos de jogo, surgiu uma nova necessidade de organizar estas ideias. Foi o que procurámos fazer quando propusemos uma sistematização que ia além dos quatro momentos, contemplando então mais doze sub-momentos.

Porém, a mais simples e básica distinção entre ambos não foi sugerida por nós. Há muito que era transmitida nalgumas obras, Universidades e cursos de treinadores, por quem procurava pensar, enquadrar e justificar os diferentes comportamentos em jogo. O Contra-Ataque, como o próprio nome indica, pressupõe a recuperação da bola. Deste modo, tem obrigatoriamente de ser enquadrado no momento de Transição Ofensiva. E como surge imediatamente a seguir à perda de bola e desorganização defensiva de uma equipa e a recuperação de bola e procura de aproveitamento da desorganização defensiva adversária da outra, para nós, o Contra-Ataque continua a ser momento de Transição Ofensiva. Particularmente, um sub-momento, pois torna-se algo muito comum no jogo e uma forma altamente directa de chegar à finalização. Por outro lado, o ataque rápido, não pressupondo recuperação de bola, enquadra-se na Organização Ofensiva. Anteriormente como método, hoje, tendo em conta a evolução da visão sobre o jogo, como um princípio passível de ser adoptado para uma equipa passar do sub-momento de Construção para o sub-momento de Criação. Ou seja, à excepção de ataque à profundidade em jogo longo directo, só em raras situações que implicam tremendos erros defensivos adversários, é que um ataque rápido permitirá que uma situação passe de construção a finalização. Deste modo, enquanto princípio, tal como outros mais, a sua potenciação e utilização, estarão dependentes da ideia de jogo de cada treinador, ao contrário do Contra-Ataque, que enquanto sub-momento torna-se um comportamento transversal a praticamente todas as equipas.

Assim sendo, a situação que trazíamos na semana passada, enquadramos como ataque rápido porque surge em Organização Ofensiva, mais precisamente em Construção. Uma decisão permitida por um conjunto de princípios como a posse e circulação de bola, a atracção da pressão adversária que em conjunto com a profundidade provocada à última linha adversária por Haaland, Doku e Foden acabou por permitir espaço entre-linhas para o apoio frontal de Álvarez e o passe vertical de Ederson, que permitiram iniciar o ataque rápido.

Finalizando, trazemos mais dois exemplos que sucederam num jogo da selecção portuguesa de Sub17, e que possibilitaram mesmo dois golos. O jogo é de 21 de Novembro de 2023.

Na primeira situação, estamos então perante um ataque rápido, pois a equipa estava em Organização Ofensiva, sub-momento de Construção, mais especificamente num lançamento lateral ofensivo. A mobilidade que efectuou provocou espaço ao adversário no interior do seu bloco, e perante isto o lançamento tornou-se um passe vertical para o espaço entre-linhas, permitindo imediatamente à equipa ficar num ataque de 3×3+GR. Por outro lado isto reforça a nossa posição, a qual refuta as bolas paradas como um quinto momento do jogo. Isto porque se há bolas paradas ofensivas que nos permitem finalizar, outras criar situações de finalização, e outras ainda, como esta, que possibilitam passar do sub-momento de Construção para o de Criação. Estão portanto claramente integradas nos sub-momentos do jogo.

Na segunda situação, a equipa recupera a bola no seu meio-campo, logo, momento de Transição Ofensiva, consegue sair da pressão, possibilitando uma situação de contra-ataque, também de 3×3+GR.

Portanto, situações com alguma semelhança em espaço, tempo e número, e nos princípios que permitirão eficiência e eficácia à sua resolução. No entanto, antecedidas de momentos e comportamentos diferentes, o que acreditando na importância da Articulação de Sentido entre sub-momentos e entre momentos para que o todo tenha lógica e coerência, leve a que seja igualmente importante que o treino exija isto, e que a operacionalização de cada uma das situações parta então de contextos e princípios de jogo diferentes.

“Na transição defesa-ataque o objetivo fundamental é, caso existam condições para o efetuar, aproveitar a desorganização posicional do adversário e progredir em direção à baliza adversária, evitando ao máximo interrupções para criar, o mais rápido possível, situações de golo.”

(Carlos Queiroz, 1983)

Um “detalhe” pode tornar o talento indecifrável

“(…) a importância de falar primeiro com um pai de um jogador é decisiva.”

(Aurélio Pereira, 2013)

O relato de George Best não é uma novidade. Recordamo-nos de uma grande referência do nosso Futebol no processo de Scouting, Aurélio Pereira, que revelava consciência dos muitos erros cometidos quando, na década de 80, tinha de filtrar e selecionar, em conjunto com a restante estrutura do Sporting, centenas de jogadores em pouquíssimo tempo de jogo para cada um deles. Eram as condições possíveis no momento e só não erra quem não está no processo e não toma decisões.

Porém, hoje o conhecimento e experiência cresceram. Os grandes clubes, e até os de média dimensão têm outras condições e têm obrigatoriamente que errar cada vez menos. Muitos destes têm departamentos de Scouting profissionais, com acesso a muita informação e possibilidades de verem diversos jogos de um determinado jogador. Mas sejamos claros: o erro será sempre uma constante de processos de enorme complexidade como estes. Aqui, tal como no papel de treinador, o fundamental é ter consciência dessa mesma complexidade inerente ao processo, partir daí para uma análise e avaliação e procurar perceber o máximo de ângulos possíveis.

No panorama actual, tal como no treino, na eminência de entrar numa crise existencial, scout, treinador e clubes, ainda se procuram agarrar a dados mensuráveis, por vezes quantitativos, e a “métricas” com que se possam justificar. A si e a terceiros. Não que tudo isto não ajude, mas acabam por afastar tudo o que seja “ruído” e factos difíceis de mensurar ou perceber a sua influência no sistema complexo – jogador. O problema é que o tal efeito borboleta é mesmo real. E para o responsável, o que não passa de um detalhe, poderá influenciar decisivamente a análise e avaliação de um jogador. Quer falemos de rendimento, quer de potencial. Quer falemos de Futebol de Formação, quer de Futebol de Rendimento.

Se o pai de George Best não tivesse explicado a Matt Busby o que se passava com o filho, seria provável que Best não tivesse atingido o panteão dos jogadores lendários em que hoje se encontra. Uma vez mais, não é uma critica a Busby, um dos maiores da história do futebol que até ficou célebre pela aposta que fez em jovens jogadores e pelo crescimento e rendimento que os fez alcançar. O nosso foco vai para a extrema importância de todos os detalhes e da consciência que quem realiza estas escolhas tem de ter sobre isso. Ser mais “técnico”, mais “alto”, mais “inteligente”, mais “rápido”, menos “maturado”, fazer muitos golos, etc., podem ser qualidades importantes para predizer um talento. Porém, um “detalhe” pode ser o suficiente para anular tudo isto. E como no caso ilustrado, um “detalhe” pode tornar esse talento indecifrável. 

“Repara às vezes as pessoas raciocinam duma forma impeditiva, ou seja, parece um contrassenso, então como é que raciocinam? Porque estão possuídas de juízos de valor ou preconceitos. Às vezes até dizem assim: é inato. Não. Sabe-se que o inato é em sí adquirido. E o inato, a genética passou a utilizar termos novos, como epigenético, ecogenético… Precisamente para a importância de que qualquer pentelho, mesmo qualquer gene, na importância da relação com o meio envolvente. E daí que alterações bruscas ou sistemáticas possam lesar isso. É por isso que filogénese e ontogénese são coisas diferentes.”

(Vitor Frade, 2012)

Um contra-ataque, ataque rápido ou ambos?

Hoje trazemos uma situação ofensiva do jogo Manchescter City x Liverpool desta época. A equipa de Manchescter encontra um caminho para chegar à baliza adversária. Porém, uma questão se levanta: estamos perante uma situação de contra-ataque, de ataque rápido ou ambos são válidos em simultâneo?

Na próxima semana trazemos a nossa perspectiva sobre tema.

A importância do desenvolvimento do pé não dominante

Uma justificação mais profunda sobre a importância do desenvolvimento do membro inferior não dominante ficará para mais tarde e para o tema Metodologia do Saber Sobre o Saber Treinar. No entanto, tal como noutros temas, iremos abordá-lo sempre que uma situação da actualidade nos demonstre a sua importância.

É o caso da acção que trazemos de Di María, até porque seria difícil encontrarmos um exemplo melhor. Pelo jogador em causa e pelo contexto. É conhecida a mestria do Argentino na execução com o seu pé dominante, o esquerdo. Faz praticamente tudo com ele, inclusive cruzamentos e remates de trivela, mesmo quando a maioria dos jogadores, com maior ou menor dificuldade, sentiria-se mais confortável em recorrer ao pé direito. Na situação em causa, o remate de trivela, ou com a face externa do pé esquerdo, seria extremamente difícil dada a elevação da bola e a orientação corporal de Di María. Perante um enquadramento privilegiado com a baliza, para fazê-lo rapidamente e evitar a intercepção adversária, o remate teria que ser de pé direito. Foi o que sucedeu, e numa acção rara do argentino, acabou por revelar que o seu pé não dominante não é inábil.

Mas o mais importante, é percebermos a importância da lateralidade, neste caso, da funcionabilidade dos dois pés, e mais que isso, que eventualmente o não dominante atinja um nível similar ao dominante. Até porque, e regressando ao exemplo, mesmo para um destro o remate naquela situação apresentava um nível de dificuldade elevado.

“Da análise dos resultados destes estudos emergem duas ideias: que a capacidade de utilização dos dois pés, com semelhante proficiência, aumenta a qualidade de desempenho do jogador, e ainda que o aumento de proficiência do pé não preferido resulta de uma exercitação direcionada para esse efeito. Todavia a qualidade técnica de um jogador não pode ser analisada de uma forma isolada e descontextualizada do jogo, pois, é aí que se encontram as adversidades e variabilidades no espaço e no tempo que permitem ao jogador melhorar a sua performance (Garganta, 2006).”

(Edgar Cambão, 2014)

Franz Beckenbauer

“Num terraço em Lisboa, Franz Beckenbauer faz o milésimo discurso da sua vida. “Eu amava Lisboa antes mesmo de ter estado aqui,” revela o alemão mais celebrado da atualidade com aquele tom sereno de canto bávaro, “porque aos vinte anos li toda a obra de Erich Maria Remarque, algumas delas várias vezes, e amei A Noite em Lisboa.” Até mesmo os observadores mais experientes de Franz ficam surpreendidos. Poucas pessoas leram algum dos romances de Remarque além de Nada de Novo no Front, e, de qualquer forma, esperava-se que Beckenbauer produzisse um hino suave a Portugal. O Kaiser encantou mais uma audiência.”

(Simon Kuper, 2011)

Franz Beckenbauer, também conhecido pela alcunha “Der Kaiser” (O Imperador), teve uma carreira brilhante como jogador e treinador, tornando-se uma figura lendária no Futebol e irónica do Desporto, reverenciado pelas suas qualidades excecionais como jogador, em particular pela sua revolucionária visão táctica que deixou uma marca duradoura no jogo de Futebol.

Como exemplo da lenda em que se tornou, quando alguém na “Rua” ou no Futebol de Formação de um clube se destacava como um Defesa-Central que procurava progredir com bola e contribuir na construção do jogo ofensivo da equipa, tendo sucesso ou não, era rapidamente baptizado de “Beckenbauer”. Portanto, de forma elogiosa ou irónica.

De acordo com (Simon Kuper, 2011), o Futebol da Alemanha “ainda moldado pela ética nazi, produzia principalmente Kämpfer, ou lutadores, como a equipa alemã que venceu o Campeonato do Mundo na lama de Berna em 1954”. O autor relata que “Beckenbauer é a fénix das cinzas da Alemanha Nazi. Concebido no inverno mais sombrio do país, nasceu numa Munique bombardeada em Setembro de 1945, a ‘Hora Zero’ da Alemanha. Seu pai trabalhava nos correios. Os Beckenbauer não comiam carne frequentemente. Franz trabalhava como agente de seguros e assinou um contrato semi-profissional com o Bayern de Munique, na época um clube local de dimensões modestas”. No Bayern rapidamente se destacou como um talentoso defensor. Ao longo da década de 1960, ajudou o Bayern a conquistar vários títulos, incluindo três campeonatos da Bundesliga e uma Taça das Taças, antiga competição da UEFA.

Como explica (Jonathan Wilson, 2016), Beckenbauer, tal como Netzer, foram produtos de um crescimento “da autonomia cultural” que naquele momento se vivenciou em vários países, entre os quais Alemanha e Holanda, e que segundo o autor “acabou conduzindo ao pluralismo de estilos de vida”, com o Futebol a fazer parte desse movimento cultural mais amplo. Também (Simon Kuper, 2011) explica a liderança dos contemporâneos Johan Cruyff e Franz Beckenbauer como “produtos do seu tempo”, tal como os “estudantes nas ruas de Paris em 1968”. Kuper descreve que “eles eram bebés do pós-guerra impacientes por assumir o poder. Os baby boomers queriam reinventar o mundo. Não se submetiam à deferência”. O autor acrescenta ainda que “Cruyff e Beckenbauer não assumiram apenas a responsabilidade pelos seus próprios desempenhos, mas também pelos de todos os outros. Eles eram treinadores em campo, apontando e dizendo constantemente aos colegas de equipa para onde se mover. Eles ajudavam os treinadores a escolher as equipas e a sua organização. Não se submetiam. Exigiam uma grande quota do sucesso no jogo”.

Porém, regressando à comparação com o Alemão Günter Netzer, que detinha um pensamento político de esquerda, (Jonathan Wilson, 2016) acrescenta que embora este “fosse a figura abertamente mais rebelde, especialmente em termos de estilo de cabelo e modo de se vestir, Beckenbauer era quem tinha a vida pessoal mais turbulenta. A sua imagem, no entanto, graças a seu apoio público ao partido conservador CSU — e ao fato de jogar no Bayern — era percebida como mais convencional”. Kuper reforça que fora do campo, Franz “personificava a ambiciosa República Federal jovem e orientada para o dinheiro. Nunca foi um hippie ou de esquerda, Beckenbauer era um burguês instintivo”. Mais tarde, como dirigente, foi mesmo criticado pela esquerda alemã e até internacional pelo receio de vir a presidir à UEFA e dar maior protecção aos grandes clubes europeus.

Como jogador, Beckenbauer personificou a elegância e a inteligência dentro de campo. A sua versatilidade era notável, destacando-se tanto na defesa quanto no meio-campo, uma qualidade que o tornou verdadeiramente excecional. Dotado de uma leitura e interpretação do jogo extraordinárias, Beckenbauer não era apenas um defensor sólido, mas também um construtor de jogo magistral. Distinguia-se pela qualidade dos seus passes. Ora longos, ora curtos, mas normalmente, verticais. A sua capacidade de ler as situações, antecipar o pensamento  adversário e iniciar jogadas ofensivas fez dele um jogador completo.

Contudo, foi na sua abordagem funcional e posicional que Beckenbauer deixou a sua grande marca. Como jogador do Bayern de Munique e da seleção alemã, ele desafiou as convenções sobre um Defesa-Central. Em vez de se limitar a uma função puramente defensiva, Beckenbauer frequentemente progredia para o meio-campo, actuando como um médio disfarçado de líbero, influenciado o Futebol Alemão e até internacional nas décadas seguintes. Para (Jonathan Wilson, 2016), o alemão “foi tão essencial para o desenvolvimento da Alemanha Ocidental quanto Cruyff tinha sido para a Holanda. Ele actuou como líbero pelo Bayern desde o final dos anos 1970, encorajado por Čajkovski, que crescera num ambiente de valorização dos defesas centrais que sabiam jogar (não é coincidência que o primeiro grande líbero do Ajax, Velibor Vasović, tenha sido produzido pela mesma cultura)”. Posteriormente, na Alemanha, Lothar Matthäus, Matthias Sammer, Thomas Hässler, Olaf Thon seguiram-lhe as pisadas nessa função, enquanto Gaetano Scirea, Franco Baresi e Ronald Koeman são uns dos grandes destaques a nível internacional pelas mesmas razões. Hoje, o jogo do John Stones no Manchester City de Guardiola apresenta semelhanças interessantes.

A sua carreira atingiu o auge na década de 70, quando capitaneou a seleção alemã ocidental na vitória do Campeonato do Mundo de 1974, disputado em casa. A liderança e a abordagem táctica revolucionária de Beckenbauer foi fundamental para o sucesso da Alemanha Ocidental nesse Campeonato do Mundo, onde não apenas conquistaram o título, mas a par do outro finalista, a Holanda capitaneada por John Cruyff, redefiniram também os padrões que o jogo ia vivenciando até à data. Nesse dia, o duelo entre Alemanha e Holanda, e particularmente entre Beckenbauer e Cruyff, foi dos mais icónicos que o Futebol protagonizou.

A sua qualidade a organizar o momento defensivo, na construção do futebol ofensivo da equipa e até mesmo a finalizar destacou-o como um dos maiores líderes da história do Futebol. Além do sucesso internacional, Beckenbauer continuou a brilhar a nível de clubes. Transferiu-se para o New York Cosmos na Liga Norte-Americana de Futebol (NASL), onde inclusive acabou por jogar com Cruyff, clube pelo qual adicionou mais troféus à sua colecção.

Após o fim da sua carreira como jogador, Beckenbauer embarcou num também bem-sucedido papel de treinador. Comandou o Bayern de Munique e a seleção Alemã, levando-a à final do Campeonato do Mundo de 1986, derrotada pela Argentina de Maradona e posteriormente à vitória no Campeonato do Mundo de 1990, no qual a Alemanha terminou a prova invicta. De acordo com (Simon Kuper, 2011), “naquela noite em Roma, enquanto os seus jogadores ficavam loucos, Beckenbauer passeava sozinho pelo campo, a medalha de ouro ao redor do pescoço, olhando ao seu redor como alguém que passeia o seu cão. Mais tarde, explicou que estava a dizer adeus ao futebol”. Contudo, o autor expõe que afinal “foi mais um Auf Wiedersehen: até logo. Logo voltou na sua terceira encarnação como político do futebol. Sozinho entre os antigos grandes do futebol, ele nasceu para o papel. (…) Apesar de ser alemão, Beckenbauer é querido em todo o mundo”. Entre outras papéis, tornou-se presidente do Bayern de Munique e envolveu-se de forma importante na organização do Campeonato do Mundo da Alemanha em 2006.

Para percebermos a dimensão da figura em que Beckenbauer se tornou, (Simon Kuper, 2011) explica que na Alemanha deixou de precisar de “se aliar ao establishment. É o establishment que tenta se aliar a ele. Todos os políticos alemães tentam associar-se ao Kaiser. Quando Beckenbauer visitava o seu antigo fã Gerhard Schröder na chancelaria, e Schröder abria uma garrafa de vinho tinto, ficava claro qual dos dois homens precisava mais do encontro. Quando Schröder implementou uma grande reforma fiscal, o comediante alemão Harald Schmidt brincou: “E a maior surpresa é: sem a ajuda de Franz Beckenbauer!””.

Beckenbauer trouxe uma mentalidade inovadora para o jogo, introduzindo conceitos tácticos que influenciaram posteriores gerações de jogadores e treinadores, subindo a fasquia ao futebol moderno. Este legado transcende a sua carreira como jogador, destacando-se como uma das mentes mais brilhantes e influentes do desporto.

“Ele sempre, naquela época e posteriormente, tomou cuidado em se dissociar das deficiências do futebol alemão pós-Kaiserzeit. Dias antes da final, conversando com amigos, disse em voz alta os nomes de vários dos seus jogadores e deu uma gargalhada. “O que foi tão engraçado?” perguntaram-lhe. “Pensem só,” disse Beckenbauer, “em um dia ou dois esses rapazes poderiam ser campeões do mundo!” Eles não foram: perderam para a Argentina. “Felizmente, porque se tivéssemos ganho, teria sido uma derrota para o futebol”, escreveu Beckenbauer mais tarde.”

(Simon Kuper, 2011)

O erro de Tsimikas e o conhecimento do jogo e liderança de Virgil van Dijk

A situação de Criação surge por duas tentativas sucessivas de intercepção falhadas pelos médios do Liverpool. Pelo menos Endo, dado o insucesso do companheiro, deveria ter garantido contenção e protegido o espaço à frente dos Defesas-Centrais. Não foi a sua decisão e abriu oportunidade para que o adversário, através de um passe vertical, ficasse em situação de ataque rápido, e Criação, perante a última linha do Liverpool. Mas não é sobre essa situação que nos desejamos focar. É para o posterior erro de Tsimikas e a liderança de van Dijk.

Perante a condução do jogador Crystal Palace a última linha do Liverpool, bem, contém, baixa e mantém-se alinhada. Podia no entanto baixar e retirar profundidade mais rapidamente para minimizar o espaço entre si o seu Guarda-Redes. Por outro lado, Quansah, o 78 do Liverpool, deveria ter deixado a contenção ao portador para van Dijk, pois era este que se posicionava no corredor central e assim ficaria com cobertura à sua direita e esquerda.

Mas o maior erro é de Tsimikas. Bem num primeiro momento, porque perante o espaço ainda existente na profundidade acompanha Odsonne, de forma a controlar a desmarcação de ruptura do jogador do Palace, até porque é um movimento pelo lado cego de van Dijk. Contudo, uma vez que o último passe não saiu, até porque a contenção foi eficaz, o grego deveria ter quebrado essa acção mais cedo e regressado rapidamente ao alinhamento com van Dijk, que era nesta situação, a referência para tal.

Tsimikas não só não o fez como tardou a perceber o que tinha que fazer, permitindo uma situação de eventual progressão, finalização, último passe ou cruzamento a Jordan Ayew e obrigando a última linha a posicionar-se já no interior da grande-área, o que possibilitou uma maior aproximação do adversário à sua baliza.

De elogiar Virgil van Dijk, pela sua interpretação e liderança na situação, que por duas vezes solicita a Tsimikas que passe para a sua frente e garanta contenção a Ayew. Podemos ir mais longe falar em liderança Específica. Porque estamos perante uma liderança táctica. E não uma qualquer. A de van Dijk, que supomos estar alinhada com a de Jürgen Klopp.

Querem matar o Futebol! A história e a irracionalidade sobre a regra mais importante do jogo.

“Ok temos de jogar bem. Mas o que é jogar bem ou jogar mal? Para mim, sempre foi uma questão de distância (entre jogadores)!”

(Johan Cruyff, 2014)

Será o título demasiado dramático? Acabar com o jogo de Futebol tal como o conhecemos, é de facto o que está em causa. Se preferirem uma visão um pouco mais simpática, e à imagem de um clássico filme de ficção, a mudança em causa implicaria transformá-lo numa horrível “criatura” híbrida.

A regra do fora-de-jogo é provavelmente a mais complexa, controversa e que mais debate tem suscitado no Futebol desde a sua introdução em 1863.  Torna-se, em primeiro lugar, fundamental perceber todo o seu enquadramento para a podermos discutir. Tanto que o autor e antigo selecionador Brasileiro e posteriormente jornalista (João Saldanha, 1968) defendeu que a discussão do jogo, nomeadamente o seu treino, táctica e preparação dependeu de “quatro épocas marcantes:

  1. Antes da primeira lei do fora-de-jogo;
  2. Depois do aparecimento desta lei;
  3. O surgimento da segunda lei do fora-de-jogo;
  4. O surgimento da medicina desportiva e da preparação física dos jogadores”.

Antes da introdução da regra, (João Saldanha, 1968) descreve que apenas havia jogadores que corriam ou ficavam parados dentro do campo, sem posições definidas. O futebol era feio e esteve a ponto de sucumbir como jogo ou competição porque não tinha graça. Não adiantava ser um bom jogador, que soubesse driblar e dominar a bola, porque um perna-de-pau qualquer, comodamente encostado perto a uma das balizas, esperava a bola chegar e fazia o golo que dava tanto trabalho ao outro que era bom jogador. O facto de não existir “offside” levava a que um grupinho ficasse perto de uma baliza e outro lá do outro lado também esperando a bola”. Segundo a (Wilkipédia, 2023) “o jogo ficava sem emoção, ao mesmo tempo deixando um vazio no campo”. 

Assim, mesmo nesta fase da história do jogo, transparece então já existir uma sensibilidade e racionalidade sobre o mesmo e a sua evolução. Permitido pelo regulamento desse tempo dada a ausência da regra do fora-de-jogo, os jogadores encontravam oportunidades para finalizar com enorme facilidade. Jogava-se em demasiado espaço e desse modo estávamos perante um jogo diferente, “estranho” e até…. sublinhe-se… menos “emocionante”.  Disputava-se portanto, um jogo caótico que provocava a anarquia e onde a sua dimensão colectiva era assoberbada pelas relações individuais ou no máximo, grupais. Dadas algumas vozes de personalidades históricas no jogo que se têm levantado nos últimos anos contra a regra do fora-de-jogo defendendo mesmo até a abolição da regra, tal cenário caótico descrito atrás resultante dessa eventual decisão foi também referido em 2017 num artigo da JornalismoPortoNet, projecto da Universidade do Porto.

Por outro lado, ao contrário do que por vezes se supõe, sendo o golo raro no Futebol ao invés da grande maioria dos outros desportos colectivos, isso torna-o mais apetecível e mais desejado. E sendo mais difícil de obter, será consequentemente resultado de uma maior necessidade de qualidade individual e colectiva das equipas para o obterem. E deste modo, e não menos importante, maior motivo de celebração e felicidade. Ou seja, traz uma maior paixão ao jogo, facto que é comprovado com a quantidade de adeptos, de sentimentos e de emoções que provoca. Comer todos os dias uma determinada iguaria tenderá a torná-la banal.

Voltando à história do jogo, perante o cenário caótico descrito, o fora-de-jogo foi criado. A (Wilkipédia, 2023) descreve que em 1863 a primeira regra do fora-de-jogo dizia “que um atacante, para não estar em posição de fora-de-jogo, teria que ter, pelo menos quatro jogadores à sua frente”. A introdução da regra provocou às equipas uma maior necessidade de organização. De acordo com o website (História do Futebol), “com essa nova lei, as equipas obrigaram-se a adoptar tácticas relacionadas com posicionamento dos jogadores em campo, visto que o jogo não podia ser mais jogado de qualquer maneira. O sistema táctico começou a ser utilizada pelas equipas ingleses Nottingham Forest e Blackburn Rovers. O sistema era o 2-3-5 e tinha as posições de avançados, médios e defensores”. Deste modo, cada posição / função foi-se também especializando e conhecido determinada nomenclatura. Por exemplo, (João Saldanha, 1968), descreve o “”back” direito, esquerdo; “half” direito, “center-half”, etc.”.

Mas rapidamente se percebeu que a regra trazia outros problemas. Neste sentido, segundo a mesma fonte, “em 1866, vem a primeira alteração: a quantidade de jogadores à frente do atacante passava de quatro para três. Em 1907, vem a segunda alteração na regra: a infração só poderia ser sinalizada se o jogador estiver na outra metade do campo”.

Ainda assim, a regra estava longe da perfeição. Naturalmente, e como sempre, as equipas exploraram ao milímetro tudo o que a lei permitiria. Quem defendia partia a equipa e definia para um dos defensores uma missão especial, ao qual os brasileiras chamaram de “beque-avança” (os defensores eram, em inglês, backs). Segundo (João Saldanha, 1968), um seria o “”beque-espera” e “beque-avança””. Este jogador, como o próprio nome indica, avançaria no momento certo para provocar o fora-de-jogo ao deixar apenas um defensor mais o guarda-redes no seu meio-campo. Por outro lado, segundo vários autores, estes dois defensores, normalmente um com maior papel de marcação e o outro como líbero, seriam suficientes para anular as outras situações ofensivas que escapavam ao fora-de-jogo. Tal é referido pelo mesmo autor ao descrever que “dois beques sabidos paravam todo o ataque adversário”. Saldanha ainda acrescenta que “o ataque tentou defender-se desta artimanha e formava em linha porque a lei também dizia que se o atacante estivesse atrás da linha da bola não estava fora-de-jogo. Foi por isto, inclusive, que os atacantes ficaram sendo chamados de jogadores da “linha”. Mas a artimanha dos beques levava a melhor e enfeiava o jogo”. Como consequência, de acordo com (Rodrigo Vergara, 2016), os jogadores concentravam-se no meio-campo e os jogos acabavam sem finalizações, a não ser na marcação de faltas”.

O brasileiro (João Saldanha, 1968) foi então mais longe e sustentou que tal cenário era era uma contrariedade ao que há de mais puro no futebol – e o que mais deve ser defendido: o talento. Sempre o talento, que é o que desenvolve o futebol e apaixona a multidão. Por esta imposição, a lei teve novamente de ser modificada fazendo surgir a mais importante etapa do futebol”. Assim, segundo o (História do Futebol), quem estudava o jogo compreendeu a falha e foi promovida uma alteração à regra em 1925. A partir desse momento para que um atacante recebesse a bola de forma legal no meio-campo adversário seriam necessários apenas dois defensores entre si e a baliza adversária. A (Wilkipédia, 2023) expõe que deste modo “desafogou-se o meio-campo, já que provocar o fora-de-jogo com um só jogador ficou arriscado e a defesa foi recuada. Por conta disso, os jogos acabaram ficando mais movimentados e a quantidade de golos aumentou vertiginosamente. Como exemplo, a temporada 1924 / 1925 da Football League registrou 4700 golos em 1848 partidas. A temporada seguinte (a primeira após a alteração na regra), para a mesma quantidade de partidas, foram marcados 6373 golos (aumento de 35,6%)”.

Segundo (João Saldanha, 1968), a partir desse momento, “tudo teve de ser modificado, pelo menos onde a lei foi imediatamente compreendida”. Ainda do ponto de vista táctico, o autor (Rodrigo Vergara, 2016) descreve que o meio-campo passou a “lugar de craques. É ali que, trocando passes ou driblando, os bons jogadores avançam com a bola sob controle até o destino final: um remate à distância ou penetração de um atacante por trás da defesa até ao golo. Era do que brasileiros e latino-americanos precisavam”. O autor sustenta ainda que essas culturas de jogo “sempre preferiram carregar a bola e a possibilidade de jogar dessa maneira marcou uma supremacia. Coincidência ou não, o futebol brasileiro como o conhecemos só apareceu depois de 1925. Até então, a a Selecção brasileira só havia ganho um campeonato sul-americano, em 1919. O primeiro reconhecimento mundial veio com o terceiro lugar, em 1938, na Copa da França”. Consequentemente, estruturalmente as equipas também mudaram. O website (História do Futebol) explica ainda que “houve a necessidade de três defesas pelo menos, porque a nova condição do fora-de-jogo permitia que o atacante enfrentasse até um defensor e o guarda-redes. Aumentou a emoção e as oportunidades de golo e evidenciou o talento dos jogadores. Os sistemas tácticos também foram aperfeiçoadas e surgiram outros (…): o famoso WM: o 4-2-4, o 4-3-3, o 5-2-3, etc.“. O autor (João Saldanha, 1968) acrescenta que “aqueles dois espertalhões agora tinham também saber jogar à bola. Não bastava o artifício de um deles adiantar-se. Para deter o ataque era preciso que os três beques se adiantassem ao mesmo tempo, e deixassem apenas o goleiro entre o atacante que iria receber a bola, para colocá-lo em fora-de-jogo. Mas essa era uma manobra perigosíssima. Antes era feita por um só. Agora teria de ser feita por três, numa fração de segundos. Um que ficasse parado e tudo iria água abaixo”.

Como estes factos sucederam há um século atrás, numa sociedade sempre com pressa de viver, em que o presente já se torna um passado longínquo, infelizmente torna-se natural que essa memória se tenha perdido, e que os menos conscientes para a dinâmica do jogo não consigam percepcionar e antecipar o que seria o jogo sem esta lei. Que para nós e tantos outros, se tornou fundamental para o Futebol ser o fenómeno tão amado que é hoje.

Mas a ignorância sobre a regra não conhece tempo. Segundo a (Wilkipédia, 2023), mesmo no momento da sua instituição, já se levantavam vozes contra a regra pois “atrapalharia o espectáculo do futebol”, até porque “os defesas têm justamente a função de defender o adversário na sua própria área”. Ora… noutra perspectiva, será esse o caminho que o Futebol tem percorrido? O pensamento individual a sobrepor-se ao colectivo? O pensamento atomista e mecânico sobrepondo-se ao complexo? Com excepções pontuais dada essa mesma natureza complexa do jogo, todas as variáveis que influenciam o rendimento de uma equipa e ainda o sub-rendimento dos seus adversários, se recordarmos a história das últimas décadas, foram as equipas que abordaram o jogo de forma mais colectiva e complexa que alcançaram mais sucessos e principalmente, de forma continuada. Acreditamos que essa não será só uma das chaves do sucesso no jogo, mas também numa visão mais ampla… também da espécie humana, pois como disse Valdano, “a vida é um desporto de equipa”.

Recentemente, Marco Van Basten, lendário ex-futebolista mas sem grande sucesso no cargo de treinador, foi um dos que defendeu a abolição da regra, num momento, pasme-se, em que era director para o desenvolvimento técnico da FIFA. O que podemos retirar do seu discurso é que comprovou de forma clara que uma coisa é a esfera do saber-fazer, e outra mais profunda, do saber-sobre-o-saber-fazer, tal como abordámos noutro artigo nessa altura. Agora… treinadores que tiveram mais sucesso e que estiveram durante muito tempo tecnicamente ligados ao jogo é que nos causam estranheza como não conseguem antecipar as consequências do que defendem.

É certo que Arsène Wenger (agora também diretor técnico da FIFA!) não propôs o mesmo que Van Basten, mas o que defende terá algumas consequências idênticas à total abolição da regra. A jornalista (Isabel Dantas, 2023) cita o técnico francês:

“Com o VAR a detetar infrações mínimas, beneficiar o atacante em caso de dúvida desapareceu – e isso tem uma razão de ser.”

Sim, tinha. A falibilidade do ser humano, neste caso do árbitro auxiliar. E isso deveria ser algo considerado natural por um ser humano que deveria compreender e abraçar a sua imperfeição. Contudo, numa sociedade dominada pela competitividade, individualismo e egocentrismo, apenas o outro falha. Ou pior. Falha porque vários exemplos de personagens com muito maior responsabilidade social “erram” de forma consciente e como tal, se um árbitro erra e prejudica a equipa, é “óbvio” que tal também tem de suceder de forma deliberada. Mas esta será uma profunda e longa discussão que não desejamos continuar aqui. Contudo, por outro lado, é uma posição legítima defender a abolição total do erro arbitral no jogo de Futebol. Mas não será com esta medida que tal irá suceder. Apenas será modificar as suas consequências. Para quem defende a ausência do erro, bastará ser só um bocadinho mais paciente, pois tendencialmente a tecnologia dará essa resposta no futuro.

“Queremos uma regra que seja justa. Se um jogador está três centímetros fora de jogo na construção de uma jogada e muitas coisas acontecem até ser marcado um golo, é justo anular esse golo?”

Sim… parece-nos… óbvio. Na perspectiva micro e apenas nalguns exemplos, a leitura, o último passe, escondê-lo, o seu timing, a execução perfeita de quem assiste, por outro lado e noutros exemplos, a noção do comportamento dos defensores adversários, a desmarcação, a recepção que é realizada em simultâneo com a leitura do comportamento do Guarda-Redes adversário de forma a decidir rapidamente a finalização, são tão importantes como o que Wenger refere que acontecerá antes. E se o último passe for realizado directamente pelo Guarda-Redes? É menos justo anular esse golo porque não houve “assim tanta coisa” a acontecer antes? É a quantidade de coisas que torna a situação mais ou menos justa? Já vimos, por exemplo, Ederson Moraes a conseguir tais proezas.

E só estamos a olhar para a questão do pondo de vista de quem erra e fica fora-de-jogo. Porque… quem defende, e que de forma também complexa garante comportamentos individuais, sectoriais, inter-sectoriais e colectivos como a leitura, o subir e o retirar profundidade sem perder de vista a bola, quando dar mais largura, quando concentrar, quando cobrir, quando conter e quando pressionar, a coordenação com a restante última linha, a orientação dos apoios, a decisão de quando acompanhar a desmarcação de ruptura adversária e / ou quando voltar a alinhar para procurar colocar um ou mais adversários em fora-de-jogo, apenas nalguns exemplos, não têm igualmente mérito? Se o realiza de forma eficaz, não será de forma igualmente brilhante? E fundamentalmente… isto não é também jogar… bem… futebol? Como tantas vezes se diz… defender também é uma arte. Sejamos francos. Wenger foi um extraordinário treinador que revolucionou o futebol inglês e internacional. Mas aqui fica patente as razões da sua queda, tantas vezes expressas no jogo das suas equipas. A desvalorização de sub-momentos defensivos em relação aos ofensivos.

“Se um marcador está dois centímetros fora de jogo porque tem ombros mais largos do que o adversário, teve realmente a vantagem do fora de jogo para marcar?”

Arsène, o futebol é de todos… e para todos. E esse jogador, para chegar a esse nível também terá imensas qualidades e / ou vantagens. Não existe a perfeição nem saberemos o que isso é. O que sempre sucedeu, desde o alto rendimento até à “rua”, inclusive pela “selecção natural”, é o encobrimento ou desenvolvimento das fraquezas de cada um no jogo. Individual e colectivamente. Se tem ombros mais largos terá, por exemplo, que se posicionar mais atrás e de forma óptima para atacar o espaço em profundidade, terá que conhecer melhor o jogo e antecipar mais rapidamente a situação, a intenção e o timing do companheiro que realiza o passe, terá que conhecer melhor as desmarcações circulares, por onde as realizar e ser melhor a acelerar e na velocidade de deslocamento. A própria recepção também será decisiva para não perder a vantagem obtida em relação ao adversário. Mas ombros mais largos também são uma vantagem noutras situações, como nos duelos, para proteger a bola em situação de apoio frontal, até no plano do detalhe como é o caso da integração numa barreira. Esses centímetros podem fazer a diferença. Se chegarmos à conclusão que são só desvantagens e que o treino de qualidade não está a ajudar, ou estará então na função errada, ou não terá qualidade para o nível do jogo em que se encontra. Mas este argumento não servirá também para o opositor directo que o atacante defronta nessa desmarcação? Nesse caso, ombros mais largos, característica até mais tradicional nos defesas, também poderá colocar um adversário em jogo por centímetros…

“Acho que todos concordamos que não é o caso.”

Não caro Arsène. Nem todos. E diremos até que se compreenderem, pensarem… bem… no jogo e anteciparem o que é provável que suceda e explicarem isso a quem não o consiga fazer, desconfiamos que a maioria rejeitará tal proposta.

“É por isso que estamos a testar aquilo a que chamamos ‘regra da luz do dia’ para o fora-de-jogo, o que significa que teria de haver um determinado espaço entre os jogadores para que uma posição fosse considerada fora de jogo.”

Nesta linha de pensamento, se existem problemas e discussões sobre escassos centímetros em jogo ou fora-de-jogo, mudar a regra desta forma não manterá a questão, só que em vez da zona mais adiantada do atacante, a discussão passaria para os seus segmentos corporais mais recuados? Então isso não manterá a questão sobre a precisão da avaliação e sobre o timing / frame no qual a bola sai do pé do atacante que realiza o passe?

“Isto seria também uma evolução.”

Terminamos os comentários às declarações de Wenger, refutando, para nós, a mais importante. Tal não seria uma evolução. Seria sim, regressão. Regressão táctica aos primórdios do Futebol que descrevemos no início do texto. Isto porque a possibilidade do atacante estar à frente do último defensor, mesmo que por alguns centímetros, torna-se uma enorme vantagem para o último passe, e desta forma isto traria receio aos defensores em se posicionarem mais alto e até para manterem a última linha alinhada. Estar centímetros adiantado é o suficiente para ganhar vantagem, não só espacial, como também para usar o corpo para proteger a posição ganha e impedir o defensor de recuperar para o espaço entre o atacante com bola e a sua baliza, primeira condição da contenção. E nesta situação também o dissuade de tentar alguma intercepção ou desarme, pois uma potencial falta, provavelmente dará direito a expulsão. Perante este cenário, a tendência seria os defensores baixarem e defenderem junto da sua baliza e com isto perderem também a capacidade de pressionar alto no campo e de serem “ofensivas” sem bola. E como um princípio fundamental do jogo passa por procurar “criar superioridade numérica”, a equipa sem bola, quer defendendo colectivamente (zona), quer individualmente (homem) procuraria baixar outros jogadores para esse espaço, formando-se aglomerados de jogadores pelo campo todo. Sem fora-de-jogo ou com esta nova regra do fora-de-jogo, o mais provável seria assistirmos à regressão do Futebol aos seus primórdios.

No fundo a discussão não é sobre melhorar o jogo ou as suas regras. É sobre filosofia e crenças, ainda por cima… confusas. Mais precisamente sobre a prevalência do Futebol “ofensivo” sobre o “defensivo”. Uma vez mais, defender bem (uma obrigação no jogo para quem o quer vencer) não implicará obrigatoriamente defender mais, quer isso represente mais tempo, espaço ou número. Mas, defender bem, até poderá significar atacar melhor. Tal como atacar mais, em tempo, espaço ou número, não significará que se ataque com qualidade. Ah… e Arsène: pode-se “atacar”, defendendo. Inclusive até como algumas vezes as suas equipas no Arsenal nos prensenteavam com os sufocantes pressings a que submetiam os adversários. Não era no sub-momento defensivo Impedir a construção, nomeadamente no pressing, que as suas equipas revelavam graves problemas defensivos. Portanto, considerando a relatividade de “espectáculo” e da “estética” do jogo, a alteração proposta, afinal não “acabaria por favorecer mais o futebol de ataque e, consequentemente, o espectáculo”.

Por outro lado, aqueles que, dentro do campo, sentiram a evolução do jogo e o conseguiram racionalizar tornam-se preciosos para que se perceba o que está realmente em causa. Um desses exemplos é o ex-internacional brasileiro Tostão que, citado por (Rodrigo Vergara, 2016), aponta que o futebol perderia a graça”. Justificando, à imagem do artigo de 2017, que “no meio-campo, em vez de dribles geniais, veríamos poucos atletas disputando bolas perdidas. O futebol ficaria parecido com o basquetebol: jogadas concentradas sob os cestos e lances decididos em detalhes”. Citado pelo mesmo autor, o jornalista Armando Nogueira vai mais longe e defende mesmo que “isso mataria o futebol”.

Como (Vítor Frade, 2017) sustenta, “a regra do fora de jogo não é “uma”. É “a” lei fundamental do futebol. “Espero que a revolta dos treinadores seja suficiente para evidenciar que isto é uma aberração. Neste sentido: passa a ser outra coisa””. Deste modo, a questão à volta do fora-de-jogo não se torna apenas uma questão sobre as regras do jogo. É muito mais do que isso. É não só uma dimensão do DNA do jogo para ele ser o que hoje é, como também levanta questões mais amplas na nossa sociedade sobre a diferença entre o pensamento individualista e o pensamento colectivo. 

Quer no futebol, quer na sociedade em geral, chegamos à conclusão que, neste momento, os historiadores têm um papel “decorativo” e o seu trabalho não é valorizado. A hipótese alternativa não é melhor porque revela uma falta de inteligência absurda. A todos os níveis estamos na iminência de repetir erros do passado. Perante isto, recordamos o poema que Vítor Frade escreveu sobre o tema, já com 7 anos, mas ainda tão actual…

“Não foi Trump ser eleito
Que me trouxe dor ao peito,
Foram as condições a jeito…
Cruyff que diria
De van Basten ou até de Guardiola
Sobre os ‘devaneios-porcaria’
A infecionarem-lhe a tola?
Porquê Cruyff a medida?
Quase só ele foi ‘extraterrestre’
Como jogador
E treinador,
E no entender o jogo está o teste!”

(Vítor Frade, 2017)