Competência do treinador [Subscrição Anual]

“A sorte é quando a competência encontra a oportunidade.”

(Elmer Letterman)

 

 

Publicamos um novo tema. Desta vez publicamos sobre a Competência do Treinador. Por vezes algo pouco claro e abstracto, aqui procuraremos identificar o que de facto traz competência a um Treinador de Futebol.

O tema Competência do Treinador, no nosso trabalho, situa-se em:

Este tema é constituído pelos seguintes capítulos:

  1. A sorte na competência ou… a competência na sorte?
  2. Uma missão concreta, porém… desafiadora
  3. Compreender a tão aclamada… competência
  4. As qualidades que alicerçam a competência
  5. A competência enquanto um todo complexo
  6. A competência, o rendimento e o resultado
  7. A competência e a comunicação

Deixamos alguns excertos do tema Competência do Treinador.

Perante tal complexidade do fenómeno, engana-se redondamente aquele que pensa que a função do treinador de Futebol é básica e simples, como por vezes assistimos nos meios de comunicação social. Em determinada fase da evolução do jogo, estava mesmo difundida a ideia errada de que o treinador era apenas uma mera peça na “engrenagem” da equipa, dependendo o seu trabalho de forma quase exclusiva da qualidade dos seus jogadores, e que podia facilmente ser substituído por outro seu par. Os autores (Jordi Urbea, et al., 2012), descrevem que “Pep Guardiola e o Barça, e Mourinho e o Real Madrid deram importância ao que representou Helenio Herrera relativamente à forma de influenciar e revolucionar o mundo dos bancos de suplentes. Não foram os únicos, mas a sua projecção mediática ajudou a que hoje já não se olhe para um técnico como uma pessoa que fala em público e coloca onze jogadores em campo. Não. Agora entendemos que os mesmos jogadores alcançam resultados diferentes com treinadores diferentes. Teria o Barcelona ganho seis títulos na mesma época sem Guardiola? Teria o FC Porto sido capaz de ganhar a Liga dos Campeões sem Mourinho? Teria a Espanha ganho o Mundial sem Vicente del Bosque? Ou o Europeu sem Luis Aragonés? Não, seguramente que não”. Assim, ao longo de várias décadas, acentuando-se nos últimos anos, assistimos a lideranças técnicas de enorme sucesso que transformaram equipas, até aí sem sem grandes resultados desportivos, em equipas históricas, sublinhando assim a importância do treinador no Futebol.

(…)

Neste sentido, os autores (Maria Brandão, et al., 2009) referem que “alguns autores (Brandão & Valdés, 2005) complementam, afirmando que treinar desportistas requer um planeamento meticuloso, criativo, reflexivo, com uma filosofia sólida, amor pelo desporto e ser capaz de conhecer as diferentes características psicológicas e comportamentais dos membros do grupo. Em suma, o treinador é o ponto de equilíbrio entre dois tipos de unidades, a organização ou clube a qual deve cumprir as suas exigências em termos de produção e rendimento e, os atletas, os quais precisa de influenciar e motivar, assegurando-se de que as suas necessidades e aspirações são atingidas e de que estão satisfeitos com a sua participação na equipa ou organização (Cruz & Gomes, 1996). Deste ponto de vista, fica claro, que é preciso que o treinador ou líder seja sensível, não só às exigências da tarefa, mas também às pessoas envolvidas”. Os mesmos autores, acrescentam ainda que “estudos realizados por pesquisadores da The Ohio State University, nos Estados Unidos da América, sobre o comportamento do líder bem-sucedido perante o seu comportamento, apontam que os líderes mais eficientes são aqueles que propiciam a manutenção e realização dos objetivos comuns de sua equipa de trabalho nas duas dimensões comportamentais de liderança: execução de tarefas e relações sociais (Simões, 1994; Simões et al., 1993)”. O treinador Gérard Houllier em (UEFA.com, 2012), explica que “para nos tornarmos médicos temos que tirar o respectivo curso. Para se ser um professor é preciso treinar. Para se ser engenheiro é preciso treinar. Ser treinador é um trabalho à parte. É preciso treinar e gerir a nossa equipa e também é preciso treinar o staff técnico que está por detrás da equipa, o staff técnico e o staff médico, por vezes até a equipa administrativa ou de análise de jogos. Um treinador é um gestor, um líder e um treinador no terreno de jogo”.

(…)

Um jornalista não identificado, aponta ao autor (Nuno Pinho, 2009), existirem três dimensões que me parecem vitais:

  • conhecimento do jogo nas múltiplas acepções,
  • o domínio do treino em vista ao modo mais eficaz de reproduzir as suas consequências no jogo e
  • capacidade para liderar, na qual tem lugar decisivo a capacidade de comunicar (para dentro e fora do grupo).

Esta é uma visão na qual nos revemos, não só pelo conteúdo de cada dimensão, mas antes ainda pelo próprio conceito “dimensão“. Procurando ir mais fundo, no domínio da função do Treinador, portanto no domínio da sua competência, podemos então destacar três grandes áreas. Uma composta pelo auto-conhecimento e domínio de si próprio em usufruto das «relações humanas» que estabelece com a equipa e com o seu meio envolvente, as quais se constituem nas suas relações de Liderança. Outra, composta pelo Conhecimento do Jogo que possui, a sua sistemática, história e contexto cultural. Todo este conhecimento para convergir numa Ideia de Jogo rica, que traga à equipa organização, mas que simultaneamente não a torne mecânica e incapaz de dar resposta à aleatoriedade e caoticidade do jogo. Por outro lado, uma Ideia, que tenha também em conta a sua adaptação ao tal “espaço” / contexto e “tempo” / evolução do jogo. Por último, uma outra composta pelo conhecimento e desenvolvimento de uma Metodologia, portanto, uma forma rentável de trabalhar nas sessões de treino, para que a equipa e todas as suas sub-estruturas, adquiram a Ideia / Organização / forma de jogar. Tudo isto, para que um derradeiro objectivo se concretize: “jogar bem”, e que o mesmo se manifeste com regularidade. Assim, em concordância com estas ideias, enquadramos:

  • As relações humanas no contexto da gestão de Equipas, Empresas e outras organizações similares, na dimensão: Liderança;
  • A forma como, uma equipa técnica, transmite ideias à equipa e desenvolve todo o trabalho técnico no clube, na dimensão: Metodologia;
  • O conhecimento da modalidade, dos seus contextos culturais e fundamentalmente do próprio jogo. Conhecimento esse que consubstancie uma organização teórica do jogo para a equipa, ou seja, uma concepção táctica-estratégica que procure aproximar a equipa do sucesso, na dimensão: Conhecimento do Jogo.

(…)

“(…) a competência do treinador exprime-se pela capacidade de encontrar uma forma racional de organização do treino numa situação real e traduzi-la num programa concreto (Verchoshanskij, 2001c).”

(Jorge Braz, 2006)

(…)

Dimensões da intervenção do treinador e Modelo de Jogo.

(…)

Assim sendo, torna-se importante clarificar que a competência é algo mais, ou melhor, anterior ao resultado desportivo. E que rendimento pode não significar resultado. Não só o resultado do processo de um treinador é naturalmente dependente do contexto, ou seja, dependente da qualidade dos jogadores e da estrutura envolvente, como também é influenciado por condições externas ao processo, praticamente impossíveis de controlar pelo Treinador. O melhor exemplo será a qualidade dos adversários. Ninguém compete sozinho. Por outro lado, o próprio resultado é relativo. Diferentes equipas e mesmo clubes, terão certamente objectivos mais ou menos diferentes entre si. Não existem duas realidades exactamente iguais.

(…)

“[Um bom treinador] é em primeiro lugar, um gestor de conhecimento. Tem de se dizer isto, porque nós vivemos na sociedade do conhecimento. Uma pessoa que saiba organizar e organizar-se. Se sabe que vai treinar pessoas e não objectos, deve organizar-se mais para dirigir do que para comandar. Quem dirige põe os outros a pensar com ele, quem comanda normalmente não ouve os outros e quem ouve os outros aprende muito com eles. O treinador é especialista em humanidade.”

(Manuel Sérgio, 2017)

O quinto momento do jogo? Quantidade não significa qualidade. E ainda… o exemplo do Futsal.

“(…) não será o instante após os lances de bola parada o momento de maior desorganização e instabilidade táctica nos jogos?”

(Filipe de Sá, 2012)

Diferentes visões e formas de pensar levam a diferentes interpretações da realidade, e consequentemente… do jogo de Futebol. Nada de novo. Perfeitamente normal e saudável porque potencialmente são colocadas questões e o debate surge. No “final do dia”, uma das melhores formas de promover evolução.

Deste modo, diferentes formas de entender o jogo conceberam diferentes modelos e sistematizações do mesmo. Uma das questões emergentes surge sobre o enquadramento das situações de bola parada. Nos respectivos quatro Momentos do Jogo? Ou serão elas, por si só, um quinto momento?

Em 2017 publicámos uma proposta que as integravam nos quatro Momentos do Jogo. Não por mero gosto pessoal, mas por coerência com determinada linha de pensamento. Um livre ofensivo, por exemplo, pode ser marcado rapidamente ainda em Transição Ofensiva quando o adversário ainda não recuperou a sua Organização Defensiva possibilitando a equipa que dele beneficia, contra-atacar. Mas pode também ser executado em Organização Ofensiva, caso a equipa defensora tenha recuperado a sua Organização Defensiva. Aprofundando este caso, o mesmo pode ainda estar enquadrado num sub-momento de Construção caso a situação não permita um último passe ou cruzamento para outro atacante (com interessante potencial de sucesso), num sub-momento de Criação caso exista essa possibilidade, ou de Finalização quando a situação permita o remate à baliza. No entanto, este enquadramento parece não ser justificação suficiente para integrar as situações de bola parada nos quatro Momentos do Jogo. Pode-se argumentar , por exemplo, que um quinto momento também possa ser subdividido dessa forma. Torna a perspectiva mais confusa e complicada (não confundir com complexa), mas pode.

A grande justificação para as situações de bola parada fazerem parte dos quatro Momentos do Jogo está na realidade, essa sim… complexa, do jogo. Ora, se um dos princípios basilares do pensamento complexo passa por uma visão holística do objecto de estudo, e que ao invés, a sua separação em partes fá-lo perder propriedades, então, se as situações de bola parada são na mesma… jogo, separá-las do restante jogo levará a disfunções, desarticulações e potenciais erros por desenquadramento do jogar da equipa nas necessidades reais desses momentos. Maior quantidade de Momentos do Jogo não significa maior qualidade da ideia que dele se tem.

“À medida que você tem o domínio da “totalidade” das coisas, passam todas essas coisas a ser preocupação para si!”

Vítor Frade citado por (Xavier Tamarit, 2013)

Por diversas vezes trouxemos o Princípio da Articulação de Sentido que se manifesta de múltiplas perspectivas no jogo e no seu treino. Neste caso referimo-nos à articulação de sentido entre os diferentes Momentos do Jogo. Hoje é praticamente unânime entre treinadores a fundamental importância da articulação entre os momentos ofensivos e defensivos, ou seja, a importância de se preparar a perda da bola quando se está a atacar e preparar o ganho da mesma enquanto se defende. Então será que as situações de bola parada também não devem contemplar esse provável futuro imediato? Certamente que sim e hoje, praticamente todos os treinadores, têm essa preocupação.

Sendo assim, deverão fazer parte de um dos quatro Momentos do Jogo, porque por exemplo, no caso de perda ou ganho da bola, a equipa tem seguidamente outro momento diferente do jogo para resolver. Desse modo, pode e deve, começar a resolvê-lo durante a bola parada. Por exemplo, através de determinados posicionamentos de alguns jogadores. A visão do quinto momento, é no fundo outra visão segmentada, analítica e artificial do jogo que se distancia da natureza do todo que o mesmo contempla.

“E estes equilíbrios passam por quando nós estamos a atacar num lance de bola parada, deixamos um ou dois jogadores fora da área para tentar criar superioridade numérica em função dos jogadores que estão na frente, isto significa que a equipa quer estar equilibrada, não só dos jogadores que estão dentro mas também nos espaços a preencher, porque nós quando temos a bola e quando vamos marcar um canto, podem acontecer algumas coisas… Pode acontecer golo evidentemente, mas também podemos perder a posse de bola, e nós temos que estar preparados para essa perda da bola. E esses equilíbrios, neste caso no processo ofensivo e no equilíbrio de transição defensiva são fundamentais.”

Carlos Carvalhal citado por (Pedro Bessa, 2009)

O segundo golo da República da Coreia contra Portugal começa precisamente na falta de consciência para esta articulação entre um momento de Organização Ofensiva, especificamente um canto ofensivo, com o momento seguinte de Transição Defensiva. Não temos acesso à Ideia nem ao Plano de Jogo, especialmente às bolas paradas, portanto não podemos nem é nosso objectivo apurar responsabilidades, muito menos individuais. Mas sim reforçar a fundamental importância de uma visão macro e pensamento complexo sobre o jogo, neste caso, quer ao nível da articulação de princípios / comportamentos, mas por outro lado, também ao nível do seu detalhe.

Num momento inicial, havia na nossa opinião, um equilíbrio defensivo razoável para defender uma eventual perda ou segunda bola proveniente do cruzamento. Cancelo mais perto da bola, William ao meio e Dalot mais atrás junto ao grande círculo, podendo-se questionar o seu afastamento dos companheiros por não haver na sua zona nenhum coreano e por assim perder a relação de cobertura aos companheiros mais próximos da bola. E havia ainda Bernardo, do lado contrário também fora da grande-área. Todos para apenas dois coreanos, muito baixos até. Son perto da bola e Hwang Hee-chan, que viria a marcar o golo, perto da marca de grande penalidade. Mas como não nos cansamos de repetir, a quantidade não significa qualidade. Neste situação, qualidade comportamental, mais especificamente, posicional.

Equilíbrio defensivo no canto para Portugal.

O problema é que Cancelo deslocou-se para junto da bola para possibilitar a marcação de um canto curto e os companheiros não ajustaram o seu posicionamento para rectificarem o equilíbrio defensivo e garantirem não só cobertura ofensiva / defensiva à zona da bola, como ocupar o espaço fora da grande área onde uma segunda bola proveniente de uma intercepção dos defensores teria mais probabilidade de surgir dada a orientação corporal dos mesmos na defesa do pontapé de canto. William ter-se deslocado para a zona onde anteriormente se encontrava Cancelo seria a solução mais lógica, com Bernardo a aproximar-se mais do eixo central do campo. Arriscando mais, outra alternativa seria aproximar Dalot, ocupando o espaço deixado livre por Cancelo.

Nenhuma das soluções, ou outra, sucedeu para garantir o equilíbrio defensivo. Surgiu a tal segunda bola naquele espaço e Son teve a possibilidade de receber enquadrado e conduzir o contra-ataque. Ou seja, por erros posicionais, não tivemos comportamentos fundamentais do primeiro sub-momento da transição defensiva, como pressionar imediatamente a bola, garantir contenção ao adversário com bola e cobertura defensiva à eventual contenção.

Depois, e evitando ir ao plano do detalhe, após a Recuperação Defensiva, podemos analisar um terceiro momento da Transição Defensiva. A Defesa do Contra-Ataque adversário. Ainda na Recuperação Defensiva, com Son em condução numa situação de 1×1 contra Dalot, o português, bem, recuou em contenção e temporizou, possibilitando a recuperação defensiva de mais companheiros. E desta forma permitiria também assegurar a cobertura defensiva do seu Guarda-Redes. No geral, neste Sub-Momento, o objectivo passa por conquistar uma relação numérica mais confortável para posteriormente resolver a situação. E tal objectivo foi conseguido. O problema, novamente, é que a quantidade não significa qualidade. E se o entrosamento e as relações comportamentais no campo não estiverem bem claras, mais jogadores em determinada situação, podem mesmo significar menos qualidade dada a relação / interferência que as partes fazem entre si, nesse todo circunstancial. O todo não é sempre mais que a soma das partes. O todo, é sim, diferente da soma das partes.

No Sub-Momento da Defesa do Contra-Ataque, em que os defensores devem travar e obrigar o atacante com bola a uma decisão, gerou-se confusão. Dalot, Palhinha (que podia ter decidido falta táctica antes) e William procuram garantir a contenção e eventual desarme. Tal gerou indefinição entre os três permitindo espaço e consequente, tempo, para Son, no timing certo, realizar o último passe para Hwang, que, perseguido por Bernardo, entretanto se juntou ao contra-ataque garantindo uma solução de ruptura para beneficiar do espaço entre os defensores e o Guarda-Redes português. O qual, perante a condição de Son, a sua linguagem corporal e a eminência de desmarcação de ruptura de Hwang, parece-nos muito distante dos companheiros.

Situação de 2×4+GR bem resolvida pelos coreanos, mas evidentemente mal pelos portugueses. Dada a natureza de oposição / cooperação do jogo será sempre assim em todas as situações? Provavelmente. Porém, sempre em doses diferentes de responsabilidade entre atacantes e defensores, tendo em conta o conhecimento do jogo que detêm e o entrosamento que manifestam.

Em situações similares, aumentar a probabilidade de êxito defensivo seria manter o mesmo jogador em contenção para não permitir o tal espaço e tempo ao atacante com bola. E os restantes defensores que consigam recuperar defensivamente garantirem uma linha de cobertura ao companheiro. Neste caso, com a bola mais próxima do corredor lateral, Palhinha, William e posteriormente Bernardo deviam estar em linha de cobertura por dentro. Caso o adversário com bola se situasse mais perto do eixo central do campo, a linha de cobertura deveria garantir cobertura a ambos os lados do defensor em contenção. Outros comportamentos adicionais a assegurar passariam pela linha de cobertura / última linha travar na linha limite da grande-área com a contenção à sua frente para forçar a decisão do atacante com bola, e não no melhor timing para si. Por outro lado, o Guarda-Redes assegurando uma maior agressividade sobre o espaço à sua frente, garantiria assim uma segunda cobertura defensiva, neste caso à última linha, de forma a antecipar o potencial último passe adversário. E mesmo que não conseguisse a intercepção, reduziria em muito o espaço e tempo de decisão e finalização ao atacante em ruptura. No plano do detalhe poderíamos falar em apoios, distâncias, indicadores de pressão para desarme, etc., mas ficamo-nos pelo plano dos grandes princípios.

Naturalmente, este conhecimento e entrosamento é alcançado mais rapidamente com treino. Treino, que escasseia num contexto de Selecção Nacional. Mas perguntamos, generalizando… mesmo no contexto dos clubes treina-se o suficiente ou sequer se treinam estas situações? No Futsal são comportamentos que se treinam ao detalhe e até à “exaustão”. É factual que nesse jogo são situações que sucedem em muito maior volume do que no Futebol, porém, os resultados são também mais dilatados. É possível que no Futebol, uma equipa seja apenas submetida uma única vez ao Sub-Momento de Defesa do Contra-Ataque ao longo de um jogo inteiro, e sem qualquer previsão da relação numérica aí encontrada. Porém, se a conseguir resolver com sucesso, poderá fazer toda a diferença no resultado final como sucedeu no República da Coreia x Portugal. Uma vez mais… quantidade não significa qualidade.

“Defender com poucos é uma arte, implica treino, coordenação e princípios, mas fundamentalmente todos perceberem o que deve ser feito, de forma a que quem chega mais rápido, seja ou não “defesa”, saiba o que está a fazer e o posicionamento correto a ocupar, consoante a bola, o colega e o adversário!”

(Ricardo Galeiras, 2018)

Formação e experiência do Treinador de Futebol [Subscrição Anual]

Publicamos um novo tema para subscrições Saber Sobre o Saber Treinar. Como sub-tema de Liderança / Qualidades do líder, desenvolvemos o pensamento sobre a formação e experiência do Treinador de Futebol. Que perfil para determinado contexto? E uma discussão recorrente: o que se torna mais importante, a experiência enquanto jogador ou a formação académica?

Capítulos:

  1. A escolha do perfil do treinador
  2. A experiência como jogador
  3. O conflito
  4. A academia e a competência
  5. Os cursos de treinadores
  6. No final do dia… a competência

“Supomos também necessário, assumir, que é importante ultrapassar a habitual desvalorização do conhecimento do senso comum “dos-do-terreno”, quando se hierarquiza ao nível do domínio científico sobre futebol. Convirá ainda, pensamos, não identificar o pretenso alto nível da hierarquia com fidelidade do saber académico, e o outro com “empirismos”, se estamos empenhados nas questões do conhecimento do futebol. O “pensar” não me parece que seja, atributo de alguma classe particular…”

(Vítor Frade, 1990)

O “Aursnes” de Schrödinger. Defender a atacar.

“(…) a consciência de que a expressão tática assume uma importância capital nos jogos desportivos, fez com que, a identificação de regularidades reveladas pelos jogadores e pelas equipas, no quadro das acções colectivas, tivesse despontado enquanto nova tendência de investigação (Gréhaigne, 1989; Lloret, 1994, citado por Garganta, 2001; Hernandez Mendo, 1996, citado por Garganta, 2001; Garganta, 1997). Neste sentido, a maioria dos analistas procuram detectar e interpretar a permanência e / ou ausência de traços comportamentais na variabilidade de acçoes de jogo (McGarry & Franks, 1996, citados por Garganta, 2001).”

(Gil, 2012)

Após o jogo contra o PSG, os elogios ao Benfica de Roger Schmidt foram alargados, em particular à sua estratégia para o jogo, nomeadamente a escolha de Fredrik Aursnes para a função de Médio-Esquerdo. Porém, muitos de nós temos a noção que se o Benfica perdesse, criticas haveriam surgido, porque teria existido medo dos franceses, porque o jogador não teria características para a função, que lhe faltariam argumentos ofensivos para o papel em causa e como tal não iria apresentar o rendimento necessário à função. No entanto, “jogar no Totobola à segunda-feira” é sempre fácil. O sucesso de Rúben Amorim na aposta em Antonio Adán para o jogo no Santa Clara após a infelicidade do espanhol no jogo em Marselha, e em contraposição a situação de Ricardo Esgaio após o jogo contra os franceses em Lisboa, podem ser outros exemplos.

Para quem está de fora do processo, perceber o impacto real que as decisões da equipa técnica terão no resultado de qualquer jogo será sempre um exercício inatingível, tal como o paradoxo do Gato de Schrödinger. Até o observador “abrir a caixa”, ou seja, até ao apito e resultado final, para o espectador o “gato pode estar vivo e morto”, ou seja, o sucesso de qualquer decisão pode ou não acontecer. Um fenómeno complexo e não determinístico como o Futebol trará sempre essa incerteza. Caso contrário não existiriam casas de apostas, e mais importante, as pessoas não sentiriam a atracção que sentem pelo jogo. Sublinhamos… jogo.

À partida e mesmo à posteriori, várias análises referiram o que eventualmente emergiria como mais evidente. Sendo a função original de Aursnes, Médio-Centro e um jogador com maior foco em princípios de cobertura, equilíbrio e concentração, seria expectável defender que ele viria aportar maior qualidade defensiva à equipa, por exemplo, no fecho dos espaços, na agressividade defensiva, no cumprimento das coberturas e compensações, na protecção ao colega de corredor e aos dois médios-centro. Porém, o próprio, em declarações no final do jogo, acrescentou outra perspectiva ao seu papel no jogo. Que o mesmo teria o objectivo de ter um peso ofensivo fundamental, principalmente pela forma como poderia gerir a bola e dar critério à posse do Benfica. Não só como forma de atacar, mas também de defender.

O pensamento reflecte um princípio fundamental da realidade, e como tal, extensível ao jogo de Futebol. O princípio que Vítor Frade denominou como Inteireza Inquebrantável”. Neste caso a inquebrantável relação do todo – jogo de futebol – traduzida nos seus respectivos momentos e sub-momentos. Tal relação deverá ter por base uma visão complexa do jogo de forma a que este seja pensado com uma articulação de sentido, como o próprio Frade e também Jorge Castelo sustentam. Para (Jorge Castelo, 1996) “deriva da concordância organizativa entre o método ofensivo e defensivo e aplicado pela própria equipa. Com efeito, é necessário que os pressupostos fundamentais de um dos métodos não ponha em risco de forma irredutível a aplicação dos pressupostos de eficácia do outro. Neste sentido, a equipa deverá jogar num bloco homogéneo e compacto não só na aplicação isolada de cada um dos métodos pré-estabelecidos, mas também na transição de um para o outro método por forma que não haja quebra na continuidade do processo ofensivo ou defensivo”. Na mesma linha de pensamento surge (Julian Tobar, 2013) sustentando que a articulação de sentido torna-se “um imperativo para o sucesso de uma equipa, visto que se perdermos de vista o “todo” (leia-se o jogar) que se pretende, desarticulando uma “parte” das demais, certamente isso refletir-se-á no jogar da equipa. Portanto o treinador ao modelar o seu jogar deverá ter em conta justamente isso, a interligação e a congruência de tudo para o “todo””. Ainda Tobar, estabelecendo uma comparação e citando “Conde (2010), seria possível dizer que a organização defensiva, a organização ofensiva e as transições são como as rodas de um carro: devem rodar simultaneamente”.

Deste modo, perante uma equipa com jogadores incríveis com bola, retirar-lhes a mesma, seria potencialmente de facto uma boa estratégia para os defender. Para mais quando muitas vezes essa equipa defende com apenas GR+8 e até GR+7 atrás da linha da bola, com uma última linha de 5 jogadores dificultando a pressão e recuperação da bola à segunda linha de apenas 2 médios e ainda quando os que ficam à frente da linha da bola têm pouca disponibilidade para o momento defensivo, nem mesmo para o fecho das coberturas ofensivas do adversário, o que consequentemente permitirá que este circule a bola por trás conseguindo assim tirar com alguma facilidade a bola de zonas de pressão. Juntando-se a não imperativa necessidade do Benfica em vencer o jogo e podendo assim dar maior critério à sua posse no sentido de a manter, arriscando menos a progressão e nos sub-momentos de criação, a escolha de Aursnes, foi deste ponto de vista, uma ideia de facto interessante.

Importará dizer que nem a equipa técnica conseguirá pré-determinar se o “gato está vivo ou morto no interior da caixa”, ou seja, se a opção tomada irá ou não resultar até o jogo de facto se consumar. No entanto, tendo em conta o seu conhecimento e experiência, nomeadamente a específica relativa à equipa, aos jogadores, às suas características, à sua mentalidade, ao seu momento, à forma como treinam, como estarão as suas vidas pessoais, etc., será com certeza a mesma, quem estará mais perto de se aproximar da predição do resultado da “experiência”. Contando que, surgirão sempre imponderáveis, e irão errar e tomar opções que não irão resultar. Pois recordamos que… estamos perante um acontecimento não determinístico.

Finalizando, o interessante para nós não foi se o “gato viveu ou morreu”, mas sim a lógica da intencionalidade de Roger Schmidt e o que de facto Aursnes provocou ao jogo do Benfica, e em contraposição ao jogo do PSG. Claro que se o jogo se voltasse a repetir, as condições iniciais seriam irrepetíveis e o resultado (do desempenho) individual de Aursnes e colectivo, poderiam ser drásticamente diferentes. Mas interessando-nos encontrar lógicas, e se possível padrões, podemos então ganhar experiência para problemas similares no futuro, tendo sempre a consciência, como sublinhado, que nada se repetirá integralmente. Tendo por base esta consciência, por outro lado encontrar padrões e reforçar a sua bagagem ao nível do Conhecimento do Jogo deverá ser o papel do treinador e dos que queiram analisar o jogo e o desempenho das equipas de forma séria e honesta.

“No nosso entendimento, o jogo de Futebol é fluído na passagem do processo ofensivo para o defensivo e vice-versa, requisitando uma organização de jogo unitária, articulada em função do «todo» que se deseja, pelo que se possa afirmar que “… não há nada mais construído que o jogar. O jogar não é um fenómeno natural, mas construído” (Frade, 2002, in Amieiro, 2004:115). Para uma análise do jogo sem que lhe seja destruída a sua organização dinâmica indissociável, consideramos necessário que se entenda que apesar de serem antagónicos, processo ofensivo e defensivo estão em íntima relação, já que, tal como a luz e a sombra, o preto e o branco, também esses dois processos só podem ser conhecidos um em função do outro (Teodorescu, 1984; Bayer, 1994; Queiroz, 1986; Castelo, 1994; Garganta, 1996).”

(José Laranjeira, 2009)

“Faltam 30 metros ao futebol português”. De organização e confiança.

“O povo português por vezes se reduz… Reduz a capacidade que realmente tem. Nós dentro da área do futebol, temos muita capacidade. Temos capacidade de improvisar, temos conhecimento, somos competitivos e temos capacidade para liderar. Portugal tem muita qualidade e, muitas vezes, somos nós portugueses quem faz de nós próprios mais pequenos. Nós, treinadores portugueses, jogadores e não só, somos muito melhores do que, em geral, pensamos.“

(Paulo Sousa)

O tema não é novo. Importa declarar que o pensamento não se inscreve em mais uma cruzada em nome de um nacionalismo bacoco. Não aceitar que os seres humanos, independentemente da sua localização geográfica, credos, morfologia, etc., etc., têm mais em comum do que diferenças, representa um passo atrás na nossa evolução. Porém, tal como nas outras espécies, existirão sempre diferenças culturais dentro das mesmas, que promovem qualidades e problemas a um determinado grupo de indivíduos.

O Futebol não é excepção. O autor (José Neto, 2012) declara precisamente isso ao defender que “cada estilo de jogo é produto das idiossincrasias em que se envolveu. A preservação dos traços identitários de cada local são fundamentais para que o Futebol mantenha as suas características genuínas, e, definidoras dos seus “futebóis”. (…) Podemos, por isso, caracterizar por exemplo, as diferentes formas de jogar como decorrentes de um determinado contexto social, cultural, dum tipo de sociedade que lhe dá suporte. (…) a dinâmica imprimida pelas formas de jogar não podem ser separadas do viver das sociedades que lhe estão associadas”. Também José Mourinho sustenta que “Futebol é Futebol. Mas as diferenças culturais são importantes. Não há dois futebóis iguais. O talento na América do Sul nasce todos os dias, mas a organização Táctica e a intensidade do jogo são muito mais altas na Europa. Pelo clima, pela personalidade, pela cultura, pelos árbitros. Há tantos factores que condicionam e fazem o Futebol diferente em todo o mundo”. Falamos então da importantíssima diversidade. Voltando ao plano geral, uma qualidade indiscutível para a sobrevivência das espécies.

Por outro lado, se vamos dando destaque ao tema de forma contínua é porque sentimos que o mesmo é realmente importante, e que consequentemente se torna fundamental convencer aqueles que ainda não o estão. Nomeadamente quem decide e investe. Até porque como diz Paulo Sousa, um dos traços culturais do povo português é a fragilidade da nossa auto-confiança, a facilidade com que nos reduzimos e a forma como facilmente nos deslumbramos com caminhos para o sucesso aparentemente mais fáceis. Aparentemente.

Constituição das equipas em jogos com Benfica, FC Porto, Sporting e Braga hà cerca de 10, 15 anos atrás.

Noutra modalidade, o Rugby, mas trazendo-nos à memória  episódios da Selecção Nacional de Futebol durante o século passado, Sérgio Figueiredo citado por (Carlos Filipe Mendonça, 2006), defende que “(…) os portugueses não sabem ganhar. Não sabem ganhar, porque não acreditam e cedo viram as costas à luta. Ou seja, antes de Tomaz Morais tomar conta da equipa nacional, o nosso rugby perdia quase sempre por uma questão de temperamento. É verdade que os portugueses são uns derrotistas natos. Uns pessimistas compulsivos; e convocam esse pessimismo tanto para as questões mais essenciais, como para as circunstâncias mais simples do dia-a-dia”. O próprio Tomaz Morais, citado pelo mesmo autor declara que Portugal “não cresce por culpa do individualismo, da inveja e do pensamento negativo de quem nos lidera”. Isabel Vaz, em (Luís Lourenço, 2010) reforça, descrevendo que “não gostamos de vencedores, fomos educados a venerar a mediania e a nivelar por baixo como sinal de democracia”.

Apesar de alguns feitos pontuais, no Futebol, o resultado desta forma de pensar e liderar levou-nos, ao nível das selecções e dos clubes, ao insucesso colectivo durante décadas. Mas do ponto de vista individual, fomos sempre produzindo talento, quer por “geração espontânea” quer por fruto de investimento e ocasionais trabalhos de qualidade. O que reforça a ideia de que o talento… esteve sempre presente. Deste modo, talvez estejamos mesmo perante o tema mais importante do nosso futebol e porque não, da nossa sociedade em geral. A nossa incrível capacidade de gerar talento e a forma como acreditamos nele, o potenciamos e rentabilizamos.

Mas o que fundamenta esse talento? A resposta irá sempre ser discutível, relativa e até subjectiva. Porém, é interessante a ideia de Agostinho da Silva, de que “a principal matéria-prima do povo português torna-se aquilo que tem entre as orelhas”. Tal sustentará não só o reconhecimento actual do jogador português como um “produto” de qualidade, como também do próprio treinador português e numa perspetiva mais lata, dos muitos portugueses que proliferam no topo das mais diversas áreas, quer em Portugal, quer no estrangeiro.

Assim, o talento como algo construído pela interacção da cultura com as vivências, “armazenado” na relação corpo-mente, é uma ideia sustentada pelo estudo e trabalho de diversos autores como Daniel Coyle, Matthew Syed, Geoffrey Colvin, Anders Ericsson, Robert Pool, entre tantos outros. Durante muitos anos defendeu-se uma “apetência genética” para o Futebol. Contudo, o jogo de qualidade, ao qual hoje é-lhe inclusive reconhecida a fundamental importância do cérebro, não pré-existe ao homem. O jogo é uma construção cultural humana, assim, nem na mais transgressora ideia epigenética o Futebol estará inscrito nos nossos genes. O próprio (Leon Teodorescu, 1984), referência fundamental no desenvolvimento do pensamento sobre os Jogos Desportivos Colectivos, defendeu que “o desporto é um fenómeno social. O desporto é uma criação do homem, que apareceu e se desenvolveu simultaneamente com a civilização. O conhecimento e a prática do desporto constituem actos de cultura”. Noutro exemplo, os 580 milhões de norte-americanos têm produzido pouco talento no Futebol em comparação com outras regiões e países mais pequenos. Será que têm falta de genética para o Futebol? Geneticamente, divergiram assim tanto, em tão poucos séculos dos europeus que colonizaram a região? Ao invés, na América do Sul, desenvolveu-se uma carga genética incrivelmente superior? Ou simplesmente… não será tudo resultado de predisposição cultural?

Por outro lado, à luz do tradicional dualismo corpo-mente, o qual temos vindo a rebater ao longo do tempo, isolando então a inteligência como factor decisivo na produção de talento, o psicólogo (Eduardo Sá, 2016) explica que “não há crianças “burras”! Eu sei que há termos ásperos, como este, para todos nós. Mas é importante que sejamos claros: tirando raríssimas exceções, de crianças com quadros genéticos ou neurológicos muito graves (e que são, realmente, raríssimas!) não há crianças que nasçam “burras” como, desde sempre, se foi imaginando ou formulando. Recordo que algumas das crianças consideradas assim, que viveram a escola de forma penosa, com resultados catastróficos e com experiências humanas humilhantes, se transformaram em grandes empreendedores, grandes empresários e pessoas cuja singularidade trouxe, realmente, mais-valias ao mundo”.

 

 

Assim, de acordo com o espanhol (Laureano Ruiz, 2014) “o jogador de futebol “faz-se”. Levei essa ideia para o Barça e que confusão que se gerou. Eles acreditavam que o jogador de futebol nasce. Quase todas as pessoas do futebol ainda hoje pensam o mesmo. Olha, eu já perguntei aos jogadores de futebol: quantas horas na sua infância, por dia, você se dedicou ao futebol? As respostas dos antigos variavam de 6 a 8 e os atuais nunca menos de 4. E Maradona e Messi me deram a mesma resposta: “Quantas horas? Tudo!!””.

Segundo (Reuters, 2020), “o caso de amor de Maradona com o futebol ficou claro desde o início. Presenteado com a primeira bola de futebol quando criança, ele dormiu com ela debaixo do braço”. O testemunho do próprio Diego confirma o relato. O argentino, citado por (Leandro Stein, 2020), descreve que “tudo o que eu fazia, cada passo que dava, tinha a ver com isso, com a bola. Se Tota me mandava buscar algo, eu levava qualquer coisa que se parecesse com uma bola para ir jogando com o pé: podia ser uma laranja, bolinhas de papel ou trapos. Assim subia as escadas da ponte, pulando em uma perna e chutando o que fosse com a canhota. Assim ia até ao colégio. As pessoas cruzavam comigo e me olhavam, não entendiam nada. Os que me conheciam já não se surpreendiam”. Também Lionel Messi, de acordo com (Wikipédia, 2022), “desde criança demonstrava grande apego à bola, a ponto de negar-se a ir às compras com a família quando não lhe deixavam levar alguma bola. (…) Quando completou sete anos, ingressou então nas divisões menores do clube do coração, o Newell’s Old Boys. Ainda assim, não se contentava em jogar na Lepra, jogando regularmente futebol na rua da casa ao lado dos irmãos mais velhos Matías e Rodrigo Messi e dos primos maternos Emanuel e Maxi Biancucchi Lionel àquela altura conseguia jogar contra adversários de dezoito anos”.

“Jogávamos sempre à volta da minha casa, em “Las Siete Canchitas”. Era um descampado enorme com vários campos. Uns tinham balizas e outros não. “Las Siete Canchitas” era como um desses centros desportivos com relva sintética e tudo! Não tinha relva nem sintéticos, mas era para nós uma maravilha. Era de terra, de terra bem pura. Quando começávamos a correr, levantava-se tanto pó que parecia que estávamos a jogar em Wembley e com neblina.”

(Diego Maradona, 2001) citado por (Hélder Fonseca & Júlio Garganta, 2006)

Mais tarde, após ter-se apaixonado pela bola, de milhares de horas de relação com ela e de jogos com outras crianças nas “Siete Canchitas”, Maradona foi prestar provas ao Argentinos Juniors. O técnico responsável pela sua avaliação, Francis Cornejo citado por (Leandro Stein, 2020), recorda o momento explicando que “dizem que pelo menos uma vez na vida todos os homens assistem a um milagre, mas a maioria não se dá conta disso. Eu, sim. O meu aconteceu numa tarde de um sábado de março de 1969 sobre a grama molhada do Parque Saavedra quando um garoto baixinho, que me disse que tinha oito anos — e eu não botei fé — fez maravilhas com a bola. Coisas que eu nunca vi ninguém fazer. Tem uma que nunca vou esquecer porque fecho os olhos e continuo vendo como se fosse ontem. Ontem, eu disse? Não, ontem, não. É como se estivesse vendo agora mesmo. Quando a bola chega a um jogador vindo alta no ar, o que ele faz é baixá-la com o pé e depois a deixa cair no chão, então ele chuta ou passa. Isso é o que todos fazem. Mas aquele menino, não, aquele menino fez outra coisa; dominou-a com a canhota no ar e, sem a deixar tocar no chão e com o pé ainda no ar, voltou a pegá-la para dar um chapeuzinho num adversário e disparar rumo à baliza contrária”.

Diego Maradona e companheiros nos primeiros passos no Argentinos Juniors.

Novamente Laureano Ruiz, reforça que “acreditar que o futebolista nasce ensinado é um grande erro, não acontece nem com os grandes craques. Cruyff é um bom exemplo; quem o viu jogar com aquela facilidade assombrosa de facilitar as coisas mais difíceis, achava que ele nasceu jogador. Não acredite, Johan teve a sorte de nascer ao lado do campo do Ajax e a sua mãe era funcionária do clube”.

“A psicologia da aprendizagem ensina que o conhecimento, ou movimento, uma vez aprendido fica armazenado no neocórtex sob forma de engrama (impressão deixada nos centros nervosos pelos acontecimentos vivenciados, activa ou passivamente, pelo indivíduo), que consiste num determinado padrão de ligação entre os neurónios. O engrama, que é sempre utilizado, fica cada vez mais “nítido” e “forte”, ao passo que aquele que não é utilizado, enfraquece e pode até extinguir-se. Se um gesto desportivo for repetido com constância, o seu engrama ficará tão forte ao ponto de permitir a execução do gesto de forma reflexa, através de uma rápida comparação entre as reacções neuromusculares e o engrama. Este aspecto está ligado a mielinização das fibras nervosas e à velocidade de condução dos impulsos, e à caracterização dos tipos de movimentos.”

(Alcino Rodrigues, 2017)

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Deste modo, o talento para determinada área não pré-existe, no máximo existirá uma predisposição na qual se torna extremamente difícil distinguir a genética da influência cultural. Portanto, o talento é também uma construção. No fundo, podemos-nos aproximar de uma ideia de que resulta de muitas horas de prática deliberada de qualidade (pode e deve ser muitas vezes em regime de autonomia e auto-descoberta como o contexto que as brincadeiras individuais de relação com bola e os jogos e futebol de “rua” proporcionam), em cima de uma decisiva motivação intrínseca à qual se podem juntar outras, extrínsecas. Esse talento torna-se então uma apetência, digamos, em bruto, para determinada actividade. A partir daí pode ser esculpida e transformada em qualidade individual e principalmente coletiva no caso dos desportos colectivos, o que necessitará depois de treino “organizado” de qualidade e da figura do treinador, assim, de um conhecimento e experiência mais aprofundadas na área.

 

 

Então o que nos diferencia culturalmente do resto do mundo? O que possibilita que um país com muito menos população que a maioria, com baixos índices de prática desportiva, subsistentes problemas no sistema desportivo, pouco investimento, um sistema educativo caducado e problemas sociais, tenha subido ao patamar dos melhores? Um pensamento divergente, criatividade, capacidade de improvisação e momentos de coragem invulgares, alicerçados por um passado cultural de conquistas, aventuras, “descobertas”, muitas vezes através de meios e estratégias que inventámos porque não dispúnhamos do que outros possuíam. No Futebol em particular: uma enorme paixão pelo jogo e consequentemente muitas horas de prática, de estudo, de discussão, etc., etc.. Como disse Kobe Bryant, paixão tal, que se transforma muitas vezes em obsessão, com os consequentes potenciais perigos acoplados.

 

“É difícil de acreditar! Eusébio, Luís Figo, Cristiano Ronaldo e eu conquistámos prémios de topo e talvez Fernando Santos seja o próximo. Benfica e FC Porto venceram títulos europeus e Portugal conquistou o Europeu. Um pequeno País com vista para o Atlântico, é incrível! Talvez o segredo seja a nossa paixão.”

(José Mourinho, 2017)

Juntando revoluções metodológicas e de liderança idealizadas e postas em prática por cá, passados cerca de 10 a 15 anos do início do impacto das Academias de Benfica, FC Porto e mais recentemente do Braga, que se juntaram ao trabalho anterior desenvolvido pelo Sporting em Alcochete, a solidificação do papel importantíssimo das equipas B, a criação das equipas de Sub23 e o exemplo e desafio que Benfica, Sporting, Porto e Braga também trouxeram aos demais clubes, catapultou a produção de talento em Portugal a um nível nunca visto antes. No entanto, ainda subsistem problemas e desafios. Talvez o principal seja convencer muitos dirigentes que, mesmo assim, ainda não acreditam no talento do jogador português, ou, não têm paciência para esperar por algo que leva o seu tempo. Como disse Leonardo Da Vinci, existem “três tipos de pessoas: as que vêem, as que vêem quando lhes é mostrado, e as que não vêem”. Restará perceber se não vêem porque não conseguem mesmo, ou porque não querem…

Segundo (Wellington Moreira,2012) “o talento é mais facilmente identificado nas empresas que estão em franco crescimento. Aquelas que se encontram estagnadas ou que avançam a passos lentos não fornecem condições de desenvolvimento nem exigem padrões superiores de desempenho para seus colaboradores com elevado potencial. Resultado: além de nivelarem todos os membros da equipa para baixo, não conseguem atrair os melhores”. Assim, o autor conclui que “pesquisas apontam que grande parte dos talentosos brilha quando sua competência encontra o contexto adequado, isto é, suas conquistas são decorrentes de uma cultura organizacional apaixonante, que confere autonomia, estimula a criatividade das pessoas e ainda patrocina um bom clima de trabalho”. Hoje crescemos, principalmente no plano técnico, em organização, qualidade metodológica, qualidade relacional e pensamento colectivo. Isso trouxe sucessos colectivos e individuais, e esse sucesso trouxe exemplos inspiradores, “desbravou caminho” e fez com que as gerações seguintes acreditassem ser possível atingir esse nível, portanto, fez crescer a auto-confiança. E a partir daqui, em cima do que já produzíamos no passado, vamos tendo ciclos de retroalimentação, cada vez de maior sucesso.

Tanto que hoje vivemos sucessos regulares ao nível de todas as selecções, temos ainda uma incrível dificuldade de escolha dada a incrível abundância de jogadores para as mesmas, “vendemos” jogadores para o estrangeiro a valores tremendos (haverá alguma indústria em Portugal em patamar semelhante?) e somos reconhecidos e admirados pela nossa qualidade no jogo e no Futebol de Formação pelos melhores treinadores do mundo. Curiosamente, desenvolveu-se um sucesso paralelo no Futsal e Futebol de Praia…

 

 

Dando também como exemplo a Liga Inglesa pela sua reconhecida competitividade, qualidade e exigência na contratação de estrangeiros, no virar do século, época 2000/2001, José Domingues e Abel Xavier eram os únicos Portugueses a jogar na Premier League, posicionando-se no 40º desse ranking. É factual que esse número oscilou para mais nos anos antes e depois, mas sempre muito longe dos 23 jogadores actuais, que representam o 5º lugar do ranking, apenas atrás de Inglaterra, Brasil, França e Espanha, países de muito maior dimensão, prática desportiva e consequente capacidade de recrutamento.

 

Constituição das equipas no jogo Wolverhampton x Manchester City em Setembro de 2022.

Se há cerca de 10, 15 anos atrás tínhamos jogos entre Benfica, Sporting, Porto e Braga com 5 portugueses nos dois onzes iniciais das equipas, hoje temos um jogo da Premier League com o dobro dos portugueses.

 

“(Um futebol que tem Ronaldo, Figo, Ricardo Carvalho ou Rui Costa) é milagre, mas também fruto de alguma coisa. É o milagre da criatividade dos portugueses, da cultura dos portugueses. Hoje sei que há pouca rua, mas são os frutos do nosso futebol de rua, da aprendizagem espontânea, da aprendizagem sem o adulto a estragar. Sem essa cultura teremos muitos jogadores como a Noruega ou a Dinamarca, aqueles futebolistas de laboratório, com processos muitos lineares. Mas sem o futebol que nos apaixona, da imprevisibilidade. De fazer as coisas que os outros não são capazes de fazer.”

(Silveira Ramos, 2017)

A apropriação cultural a Fernando Chalana

“Emular al ídolo es a lo que juegan millones de niños cada día en el mundo entero. (…) Cada vez que estos ídolos se asoman a la televisión con su instrumento (un balón, una raqueta o un coche), se convierten en maestros de miles de niños que los miran con los ojos llenos de admiración.”

(Jorge Valdano, 2014)

Partiu Fernando Chalana. Partiu um dos grandes. É vulgar dizer que o património do Futebol fica mais pobre, mas isso não é bem verdade. O património fica. Pelos seus feitos, pela sua história, nas lendas que criou comprovadas pelos relatos das testemunhas que o viram jogar e pelos arquivos dos jornais e televisão. E pelo homem que foi. No fundo, toda a sua qualidade, manifestada na sua relação com a bola, lateralidade e recursos técnicos, que num todo composto também pela sua enorme humanidade, inteligência táctica e criatividade invulgares, consumavam a tal genialidade que todos lhe reconhecem.

Tal qualidade garantia-lhe uma fantástica eficiência nas suas acções, parecendo tornar simples, o complexo. Eficiência essa que lhe garantia uma regular eficácia que mescladas com uma estética inconfundível e apaixonante tal qual a sua paixão pelo jogo, colocavam-no no panteão dos grandes do Futebol. Do Futebol português, mas também do Futebol mundial. Chalana tornou-se então património. Tornou-se, cultura.

Cultura, que muitas crianças do seu tempo procuravam imitar. No meu tempo, “éramos” na nossa “rua”… Luís Figo, Rui Costa, Paulo Sousa, João Vieira Pinto, Fernando Couto, Maradona, Van Basten, Baresi, Romário, Roberto Baggio, Matthäus, Redondo, Batistuta, Ronaldo “Fenómeno”, etc., etc.. Imitávamos consciente ou inconscientemente as suas acções, os seus comportamentos, até o mais ínfimo detalhe. Porém, provavelmente nessa geração, talvez tenha sido o fabuloso Paulo Futre o mais adorado e a maior vítima de “apropriação cultural”… Pelo menos em Portugal. O seu drible, muitas vezes através de uma ginga e gestualidade desconcertantes, nomeadamente através da peculiar forma como movimentava os braços de forma enganar os adversários, mas também as suas mudanças de velocidade, os seus remates inesperados, muitas vezes até de “trivela”, eram vistos em qualquer espaço aproveitado para campo de futebol. Fosse no baldio, no ringue da escola, no ringue do bairro ou no corredor lá de casa. Porém, até o incrível Futre também se “apropriou culturalmente”.

“Tenho muitas jogadas dele na cabeça. Ainda hoje não sabemos como ele fazia para fintar, um, dois, às vezes três jogadores, só com a cintura, sem tocar na bola. Acho que muitos dos meus movimentos de braços – uma grande virtude minha, quando jogava, vêm também daquele movimento de cintura, sem tocar a bola. Eu tentava imita-lo de qualquer maneira. Quis ser como ele durante toda a minha infância, e depois na minha adolescência. Era único, a minha referência. Eu treinava muito mais do que outros jogadores jovens porque queria chegar perto deste génio, queria ser profissional e chegar perto do nível dele. Mas nunca cheguei, nunca cheguei porque era impossível.”

(Paulo Futre, 2018)

Torna-se fundamental dizer que se engana redondamente aquele que pensa que as mais recentes distorções sobre a “apropriação cultural” são produto de um só “grupo” social. Esse não só é um pensamento falacioso como está ao mesmo nível do objecto da crítica. A estupidez não escolhe raças, países, clubes, partidos ou credos. A história humana comprova-o.

Enganam-se também as opiniões que dizem levianamente que o Futebol é apenas um jogo. O Futebol é intemporal e o enorme impacto social que produz tornam-no muito mais do que apenas um jogo. Paralelamente ao enorme espectáculo que se tornou, é um incrível veículo de transmissão de valores. Reproduz a uma escala mais pequena a essência do ser humano e a sua necessidade em cooperar, ser solidário e competir. De forma saudável, respeitando os outros e primeiramente, a si mesmo e a sua humanidade. Desta forma, manifestando a sua necessidade de viver em sociedade.

O jogo de futebol ensina-nos a não segregar, separar e a respeitar o outro. O outro indivíduo, o “outro”, equipa. Seja pela raça, cor da pele, morfologia, estética, religião, partido político, características técnicas, forma de jogar, etc., etc. Como é habitual dizer-se… “lá dentro são todos iguais”. Acrescentamos… são todos iguais nos valores e justiça perante o jogo, porém com individualidades e ideias colectivas diferentes. A riqueza cultural e diversidade no jogar são qualidades decisivas para vencer. Tal qual, num plano mais macro, são fundamentais para a espécie humana ter subsistido até hoje.

Estas diferenças e diversidade… fazem portanto parte de uma riqueza cultural incrível, que consubstancia outra dimensão fenomenal do jogo, à imagem da sociedade em geral. Uma riqueza que não cresceu isolada, mas sim fruto da difusão, interacção e socialização dos diferentes povos e culturas. Conseguimos, por exemplo, imaginar a riqueza do jogador brasileiro sem a mistura cultural e genética do povo nativo da América do Sul, com as qualidades dos Africanos, Europeus e até Asiáticos? Conseguimos imaginar um golo de grande penalidade ser anulado porque não seria permitido copiar a ideia de Antonín Panenka? Ou o golo na jogada do pontapé de saída do PSG no último jogo? Pelo menos Bournemouth, Eibar, PSG em Sub19 e Real Madrid, estes últimos contra o próprio PSG… com maior ou menor sucesso, fizeram exactamente o mesmo. E ainda a impossibilidade da existência do Barcelona de Guardiola, porque se inspirou em Johan Cruyff, que por sua vez “bebeu” conhecimento em Rinus Michels, que originalmente sofreu influências de Jack Reynolds, entre outros? O próprio Futebol. Não se sabe exactamente o seu ponto de origem tendo em conta as suas inúmeras raízes culturais, mas tendo em conta que foram os britânicos a regulamentá-lo, todos os países inclusive Portugal, realizaram então, a determinado momento, uma apropriação cultural. Imaginamo-nos então sem Futebol? E regressando ao início… Futre não teria sido… o grande Futre.

A cultura é sem dúvida dos bens mais preciosos que podemos ter e que no fundo também nos distingue enquanto seres humanos. Por outro lado, tal como a uma equipa, ninguém consegue, culturalmente, copiar outro indivíduo de forma integral. No máximo, acrescenta a si, transforma a sua identidade e contribui para a diversidade e riqueza cultural da espécie. Sendo por transmissão, ou por “apropriação”. No final do dia, “somos todos simplesmente um” como confessou Justin Britt-Gibson para o Washington Post (Wikipédia, 2022) a propósito do tema, e como defendemos no artigo anterior.

“Foi a minha referência, a minha inspiração, o meu ídolo. Dificilmente estava aqui, a falar neste momento, se não fosse o Chalana. Ele teve muito que ver com a carreira que fiz. Eu tentava imita-lo, era eu jogador do Sporting com 11 anos. Já ia ao Estádio da Luz, para o terceiro anel. Eu não ia ver o Benfica, ia ver este pequeno grande génio.“

(Paulo Futre, 2022)

10 ideias / exercícios para desenvolver a Organização Ofensiva em geral

“(…) em primeiro lugar temos que perceber em que nível nos encontramos. É decisivo percebermos o que é a cultura individual dos jogadores em termos do jogo, é fundamental perceber as qualidades dos jogadores e perceber isso em função do que se pretende. Se pretendemos que haja sucesso em termos do que fazemos no treino e queremos que isso se constitua como uma aprendizagem em termos de cultura de jogo, em termos de comportamentos colectivos é necessário que se compreenda esta evolução em termos de complexidade. Isto é decisivo, mas também é decisivo fazer uma avaliação do que é a nossa equipa, os nossos jogadores e do que é o conhecimento do jogo por parte da equipa e portanto a antecipação é tão mais facilitada quanto maior for a cultura de jogo da equipa.”

Rui Faria citado por (Carlos Campos, 2007)

Na sequência da publicação do tema Organização Ofensiva, adicionamos 10 ideias ou exercícios para desenvolver ou avaliar o momento de Organização Ofensiva de uma forma geral. Recordamos que, mais importante do que serem identificados como exercícios, devem ser entendidos como ideias para serem usadas na totalidade ou parcialmente de forma a estarem adequadas à especificidade, necessidades e / ou planeamento, de cada contexto colectivo ou individual da responsabilidade de cada treinador.

Sendo exercícios gerais do ponto de vista ofensivo, podem desde logo proporcionar objectivos avaliativos do nível de jogo ofensivo colectivo, sectorial e individual. Por outro lado, importa também sublinhar que se desenvolvemos o tema Organização Ofensiva, para já de uma forma geral, portanto, procurando não ir assim à especificidade de cada sub-momento (Construção, Criação ou Finalização) ou a outros princípios / comportamentos em particular, o alvo procurado torna-se assim, também ele, geral. Aparentemente pode parecer um objectivo fácil para o treinador, mas na realidade não o é. Se excluirmos a exercitação sob forma de jogo formal, seja ela intra equipa, seja recorrendo a adversários externos (o enquadramento mais específico para recriar a realidade competitiva), a criação de outras formas para atingir este objectivo mais generalista, no fundo formas que garantam uma grande complexidade comportamental no momento ofensivo, torna-se um desafio à simplicidade.

Explicando um pouco melhor a ideia, a partir do momento em que, através do exercício de treino, manipulamos significativamente o jogo, seja pelas suas regras, espaço, tempo ou número de jogadores, isso vai levar o exercício a determinada especificidade comportamental, afastando-o assim de comportamentos gerais. Portanto, em situações gerais, mais abertas, livres de constrangimentos, logo, induzidas por exercícios mais simples tendo em conta as suas regras, teremos então mais comportamentos, para não dizer a totalidade do jogo. Sendo assim, uma maior riqueza comportamental trazida por um exercício mais simples traduzirá uma situação de jogo mais rica e complexa. Então, se condicionar um exercício para obter determinada propensão comportamental revela-se um desafio, manter o jogo numa dimensão mais geral, também o é.

Assim, as ideias apresentadas procuram cumprir esse desafio. Já excluindo a variável tempo, mas condicionando o sistema competitivo, o resultado, o número de jogadores, a forma de reinício e o espaço de jogo, procurámos criar formas jogadas que proporcionassem o momento de Organização Ofensiva numa máxima totalidade. Importa referir que manipular o espaço e o número de jogadores de forma considerável irá aproximar as situações de determinados sub-momentos do jogo, contudo, serão mantidos comportamentos ofensivos gerais e será esse o grande objectivo deste trabalho.

Disponibilizamos um dos exercícios de forma gratuita, o Exercício 148 | Jogo colectivo com vantagem máxima de um golo. A ideia, condicionando o resultado do jogo ao não permitir às equipas uma vantagem maior do que de um golo, será estimular o critério com bola, levando-a a decidir em que momentos deve aumentar a agressividade sobre a baliza adversária, em relação a outros, que pela vantagem obtida no resultado, necessita de conservar a bola e diminuir o risco de perda de mesma. Isto não significa que defendamos que a partir da vantagem as equipas não devem procurar mais golos e uma vantagem maior, mas sim, que se torna decisivo melhorar o critério com bola na globalidade do jogo. Por outro lado, sendo a situação disputada em vários jogos, o tempo de jogo de cada um será mais reduzido, permitindo assim recriar a ideia de um jogo que está perto do final e de que a equipa procura garantir mais posse de bola que o adversário para evitar que este crie oportunidades de finalização. Evidentemente que contendo este risco de condicionar o jogo ofensivo para uma menor agressividade com bola após vantagem, o exercício deve, à imagem de todos os outros, ser doseado, tendo em conta um planeamento geral, ou a necessidade de jogo de determinada equipa.

“O treino desportivo não é apenas um problema de escolha de exercícios (o que fazer), é também e principalmente um problema de doseamento (quando e quanto treinar).”

(Monge da Silva)

Exercício 144

Exercício 145 Exercício 146

Exercício 147

Exercício 148

Exercício 149

Exercício 150

Exercício 151

Exercício 152

Exercício 153

 

Organização Ofensiva [Subscrição Anual]

Publicamos o tema Organização Ofensiva. Importa transmitir que esta publicação, à imagem de outras futuras direcionadas para os outros três momentos de jogo, trará nesta primeira abordagem uma perspectiva eminentemente macro. Trata-se porém, de um tema muito vasto e com tanto potencial para explorar ao nível do detalhe, o que irá suceder no futuro. Deste modo, antecipamos, que a partir deste tema, traremos outros, sub-dividindo-o para esse efeito, nos seus três sub-momentos e a partir daí, a uma escala ainda mais micro, em princípios e sub-princípios.

Contudo, a abordagem que aqui fazemos, ainda que uma “fotografia” ao quadro geral do momento de Organização Ofensiva, tendo em conta o potencial do tema, acabou por necessariamente se tornar extensa e, na nossa opinião, um passo fundamental para compreender não só o momento em si, mas também o jogo no seu todo.

O tema Organização Ofensiva encontra-se enquadrado em:

Por outro lado este tema será constituído pelos seguintes capítulos:

  1. Enquadramento
  2. Um jogo “descerebrado”
  3. Desconstruir e compreender o momento de Organização Ofensiva
  4. Jogar… ofensivamente… “bem”
  5. A dinâmica – tempo, espaço, número e… qualidade
  6. Defender começa quando se ataca e… atacar… começa quando se defende
  7. Traços de qualidade ofensiva
  8. Máxima variabilidade para… máxima adaptabilidade
  9. Situações de bola parada ofensivas

Deixamos alguns excertos do tema Organização Ofensiva. Dada a extensão do tema, partilhamos aqui um pouco mais do que o habitual.

“Sem a bola, não podes vencer.”

(Johan Cruyff)

Parece-nos claro que a grande atracção que o Futebol traz aos seus entusiastas provém de acções elementares do jogo como o drible, o passe que rompe linhas, o último passe que coloca o atacante na cara do guarda-redes adversário, ou aquele seu “descendente”… o cruzamento perfeito que descobre um atacante livre para finalizar. Mas também a difícil recepção, o detalhe técnico invulgar, a simulação que engana toda a equipa adversária, a ideia divergente que ninguém esperava e trouxe sucesso à jogada, etc., etc… Ou ainda por outras um pouco mais complexas como a combinação, mobilidade e permutas entre jogadores, e até do ponto de vista colectivo, a dinâmica que algumas estruturas das equipas trazem ao espectador, jornalista e técnico, tal qual um bando de aves a voar numa sincronia perfeita. Porém, acima de tudo isto, claramente que se posicionam a finalização e o golo. Estes momentos são sem dúvida o epicentro do jogo de Futebol.

O denominador comum entre todas estas acções, manifesta-se em serem as que se enquadram no jogo ofensivo das equipas, independentemente se depois, em função de cada contexto de jogo, sucedam em Transição Ofensiva ou Organização Ofensiva. Por outro lado, sendo verdade que se tem assistido ao longo da evolução do jogo a uma crescente “espectacularidade”, mediatização e valorização das acções realizadas nos momentos defensivos, é no entanto, sem grande dúvida, o ataque e a expectativa em relação à forma como os jogadores dão uso à bola, os comportamentos que ainda promovem a maior atracção à maioria dos apaixonados pelo jogo.

(…)

Uma ausência de critério e intencionalidade, o tal jogo “descerebrado” transmite uma ideia de navegação à deriva que só por acidente, trará o sucesso desejado. Sucesso esse que perante tal enquadramento, será muito provavelmente pontual. Com naturalidade, esta era uma característica do jogo das equipas nos primórdios do Futebol, até que as experiências e a reflexão de jogadores e treinadores fizeram-no evoluir para o nível actual. Hoje, no jogo de nível superior, a grande maioria das equipas mostram intencionalidades e ideias, independentemente, depois, da sua maior ou menor qualidade. Que sublinhamos… qualidade essa… ditada pela regularidade da eficácia que tais ideias potenciam, em interacção com a qualidade individual dos jogadores. É sobre essas ideias que nos debruçamos, procurando a provável utopia do melhor caminho para chegar a um sucesso… regular. Mantendo também, sempre a consciência que tal caminho estará sempre em permanente construção e evolução.

(…)

Neste sentido, (José Laranjeira, 2009) conclui que assim é imperioso tornar o processo ofensivo mais objectivo e concretizador, conduzindo à criação de um maior número de oportunidades de golo e correspondente concretização“. Com um pensamento praticamente idêntico, (Pedro Bessa, 2009) também sublinha que “para todos que pretendem ver um Jogo revestido de qualidade e de espectacularidade, existe a necessidade de tornar o processo ofensivo mais objectivo e concretizador, para que se criem mais oportunidades de golo e se atinja uma maior eficácia em jogo (Luhtanen, 1993, cit. por Pereira, 2008)”. No mesmo sentido surge ainda (Pedro Barbosa, 2009), defendendo que perante “a raridade existente de golos num jogo, é provavelmente essencial que as equipas para ter sucesso, necessitem de possuir um processo ofensivo eficaz e eficiente (Yamanaka et al. 1988; Szwarc, 2007)”. Para tal, (José Laranjeira, 2009) acredita que só através da criação de desequilíbrios, por comportamentos individuais e colectivos, se consegue provocar surpresa no adversário“.

Se foi uma realidade, que a determinado momento do jogo a evolução da organização defensiva das equipas se sobrepôs ao investimento na organização ofensiva, por outro lado, como abordamos atrás, tem havido uma confusão entre eficácia, eficiência e estética. Muitas análises e avaliações do jogo, tendo em conta determinados contextos culturais, preferências pessoais e atracção por determinada estética de jogo, que muitas vezes, até está desfasada das próprias regras do jogo, tem levado a que determinadas ideias sejam defendidas e difundidas, mesmo estando pouco relacionadas com a eficiência, consequentemente com a eficácia, e portanto, com o sucesso. Porém, devemos compreender que tal realidade faz parte da evolução natural do jogo, tal como sucedeu, numa perspectiva mais macro, com a espécie humana. Torna-se então fundamental entender o jogo, os potenciais caminhos que geram aproximações à obtenção de sucesso no mesmo, e o consequente trajecto da sua evolução.

(…)

Mais tarde, procurando caracterizar de forma mais específica o momento ofensivo, no qual a equipa já se encontra organizada coletivamente para atacar, no estudo que realizou, (Júlio Garganta, 1997) defende que “no plano da organização ofensiva das equipas de Futebol, não obstante a natureza aleatória e diversificada das acções de jogo, é possível detectar vias e formas preferenciais de acção dos jogadores, expressas na forma como se comportam algumas variáveis e do modo como elas se agrupam para interagir. Ou seja, embora não exista um determinismo absoluto, a análise das sequências de jogo permite apurar regularidades e variações exibidas pelas equipas que exprimem uma lógica observável“. Deste modo, torna-se importante procurar “mapear” o jogo para que seja mais fácil a sua leitura, interpretação, análise, e posterior investimento no trabalho sobre determinadas “regiões” do mesmo.

(…)

Perante estas ideias propomos três sub-momentos para o momento de Organização Ofensiva: a Construção, a Criação e a Finalização com a seguinte lógica:

  1. Construção: quando ambas as equipas se encontram dentro da sua organização para atacar e defender e quando a bola se encontra fora do bloco da equipa que defende.
  2. Criação: quando a equipa que ataca consegue penetrar no bloco da equipa que defende e surge perante a última linha adversária ou a última linha e mais um médio em contenção. A excepção é quando a equipa que ataca procura um jogo mais directo, de ataque à profundidade, ou seja, de passe directo para o espaço entre a última linha de quem defende e o seu Guarda-Redes, o que acaba por se configurar como uma situação de último passe, independentemente do grau de dificuldade superior da acção. Neste sub-momento, integram-se também todas as situações de bola parada ofensivas que poderão permitir um último passe ou cruzamento e finalização. Devemos referir que compreendemos as opiniões que distinguem as situações de bola parada como um quinto momento do jogo, porém a nossa interpretação é que, independentemente do jogo estar parado ou em movimento, se uma equipa está organizada para defender essas situações e a outra para atacar, então estarão dentro da sua Organização Defensiva e Organização Ofensiva, respectivamente.
  3. Finalização: todas as acções que visam o momento final de ataque à baliza adversária, portanto, a acção individual ofensiva de remate, independentemente da superfície corporal envolvida. Aqui também se integram as situações de bola parada ofensivas que poderão permitir um remate directo à baliza. Importa ainda referir que a finalização pode até surgir quando a equipa que ataca tem pela frente todo o bloco adversário ou parte do mesmo. Contudo, se quem ataca conseguiu chegar ao remate, esses momentos de organização defensiva adversários falharam de alguma forma.

Organização Ofensiva – Sub-momentos do jogo.

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Regressando a uma perspectiva macro do jogo, na opinião de (Lobo, 2007), citado por (Rodrigo Almeida, 2009), “uma das virtudes das Equipas que jogam bem é a capacidade de criar oportunidade de golo através de jogadas elaboradas”. No entanto, o mesmo autor, recorredo a (Castelo, 1994), também adverte que “há formas de organização incompletas sendo caracterizadas por todas as formas de processo ofensivo que não chegaram a zonas predominantes de finalização”. Por outro lado, (Júlio Garganta, 1997) refere que “Sledziewski & Ksionda (1983a) chamam também à atenção para situações que ocorrem durante um jogo de Futebol, nas quais uma equipa, encontrando-se momentaneamente em posse da bola, não manifesta a intenção de finalizar, nem de se aproximar da baliza adversária. Estes casos surgem, frequentemente, quando uma equipa pretende jogar para manter um resultado que lhe é favorável“. Assim, (Jorge Castelo, 1996) acrescenta que a equipa que “está em posse de bola, para além de poder concretizar o objectivo do jogo – o golo, poderá igualmente:

  • Controlar o ritmo específico do jogo, pois, em função do resultado (numérico) momentâneo é que se poderão contrapor acções técnico-tácticas que acelerem ou diminuam este ritmo;
  • Surpreender a equipa adversária através de mudanças contínuas de orientação das acções técnico-tácticas e atempadamente fazer uma ocupação racional do espaço de jogo em função dos objectivos tácticos da equipa;
  • Obrigar os adversários a passarem por longos períodos sem a posse da bola, levando-os a entrar em crise de raciocínio táctico e, consequentemente, a expô-los a respostas tácticas erradas em função das situações de jogo;
  • Recuperar fisicamente com o mínimo de risco.”

No vídeo, a Croácia decide utilizar a posse e circulação da bola para defender a vantagem nos minutos finais do jogo. Jorge Castelo acrescenta então, que “as equipas ao encontrarem-se em posse de bola, não significa que realizem qualquer acção ofensiva, verificando-se que a finalidade destas situações se resume à “perda de tempo”, “jogar para manter o resultado” ou “quebrar o ritmo ofensivo do adversário””.

No entanto, o autor, adverte que a posse da bola não é um fim em si e torna-se utópico, se não for conscientemente considerada como o primeiro passo indispensável no processo ofensivo, sendo condição “sine qua non” para a concretização dos seus objectivos fundamentais: a progressão / finalização e a manutenção da posse da bola“. Na mesma linha de pensamento surge (Faria, 2003) citado por (Abílio Ramos, 2005) ao defender que “é importante ter a posse de bola se ela tiver um objectivo claro como, por exemplo, atacar. Posse de bola por si só não tem significado absolutamente nenhum se não tiver um objectivo claro“. Também (José Pedro Loureiro, 2022) explica que “um dos exemplos mais recorrentes no futebol de hoje em dia é a posse de bola inconsequente: “muitas vezes, observa-se que a equipa (principalmente no início da fase ofensiva) fica empenhada em passar a bola, sem manifestar qualquer intenção de ataque à baliza adversária” (Araújo & Volossovitch, 2005). Ou seja, a ação de passar a bola enquanto fim, e não enquanto meio, viola o conceito de representatividade da tarefa. Fosse eu um apostador obsessivo e arriscaria todas as minhas fichas como o tiki-taka simplesmente aconteceu (emergiu), não se treinou (propriamente com esse intuito)!”

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Porém, fundamentalmente as equipas têm de procurar um jogo de qualidade… ou seja… um “jogar bem“. Para tal, o traço principal desse jogo deverá ser o sucesso regular, tendo-se naturalmente em conta o contexto. Deste modo não há sucesso regular sem eficácia… regular. Uma eficácia regular só se atinge fazendo mais vezes bem as coisas, portanto, ao nível do posicionamento, decisão e execução. Falamos assim, da procura da eficiência. No domínio particular da Organização Ofensiva das equipas, o autor (Pedro Barbosa, 2009) sustenta então que as equipas terão que arranjar mecanismos e formas de atingir mais vezes a baliza adversária e se possível com grande eficácia. Esta situação solicita aos investigadores em Futebol a capacidade das suas análises abrangerem, não apenas, os momentos do golo, mas também a análise de todas as oportunidades criadas, de forma a tentar objectivar-se esse mesmo golo (Garganta, 1999; Yiannakos & Armatas, 2006)”.

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Assim, (Rodrigo Almeida, 2009) chama a atenção para que a Objectividade subjacente salientada como uma Intencionalidade não pode ser confundida com “jogo directo”. Objectividade tem duas vias de acordo com o termo, a primeira via é a objectividade do jogo, i.e., destinar-se à baliza [o que leva a muitos ao jogo frenético e directo], jogo vertical, onde o meio campo assume um papel fundamental na recuperação das segundas bolas e no aproveitamento destas em espaços mais profundos (Pedro Sousa, 2009), a segunda via é a objectividade circunstancial, ou seja, ser objectivo, ser oportunista, não perder o momento porém acima de tudo ser experto, não perdendo o foco do principal sabendo que para onde ir e o que fazer. Camacho (2003a; cit. por Amieiro, 2005, p.60) colmata esta opinião ao referir que é preciso «saber-se jogar Futebol». E saber jogar bem não é só dominar a bola, driblar, chutar e marcar um golo. “Saber jogar é perceber o que a Equipa precisa em cada momento do jogo…”“. Na mesma linha, (Pedro Bouças, 2014) defende então que não pode existir um dualismo entre o jogo directo e indirecto. Dando um exemplo, para o autor, ser da boa tomada de decisão não é ser de posse ou de contra-ataque. É ser de posse quando o adversário está organizado e o espaço escasseia e é ser de contra-ataque quando há espaço e situação numérica para tal“. Na mesma linha de pensamento, também relacionando os momentos de Transição Ofensiva e Organização Ofensiva, (Tiago Margarido, 2015) sustenta que “quando não for possível aproveitar a desorganização posicional do adversário devemos ter a capacidade de realizar uma rápida circulação de bola e trocas posicionais eficazes com vista a criar uma forte dinâmica ofensiva de modo a desorganizar a equipa adversária e a criar situações de finalização”.

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Estas ideias sobre a Organização Ofensiva das equipas reflectem uma enorme importância no pensamento relativamente à dimensão espaço. Deste modo, surgem de alguma forma influenciadas por Johan Cruyff e os seus mentores, que apontavam o espaço como elemento decisivo no jogo. O autor (Winner, 2000), descreve que Barry Hulshoff, companheiro de equipa de Cruyff na selecção holandesa de 1970, realatava que discutiam espaço o tempo todo. Cruyff falava muito sobre para onde os jogadores deveriam correr, onde deveriam permanecer e para onde não se deveriam mover. Sempre com a intenção de criar espaço e utilizar esse espaço“. Também o jogador espanhol (Juan Mata, 2016), citado por (Wikiquote, 2018), confessa que considera Cruyff “o pai ideológico do Futebol. Aquele que procura imitar em campo e aquele com quem procuro aprender quando, como espectador, assisto a um jogo. A inteligência na gestão da bola e dos espaços, a importância do talento sobre o físico e o entendimento do Futebol enquanto jogo de equipa, são conceitos que definitivamente eu abracei“.

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A propósito do trabalho marcante de Helenio Herrera no Inter de Milão, e de acordo com (Ignacio Benedetti, 2021), quando lhe perguntavam pelo trabalho dos seus discípulos, ou pelo trabalho dos treinadores que procuravam replicar as suas ideias, o treinador franco-argentino declarava que não os entendia porque apenas haviam tentado copiar “as formas de defender, e não as formas de atacar a partir da forma como se defendia“. De acordo com o autor, este pensamento revela basear-se em aspectos “geográficos“, que se podem isolar, “como defende aquela equipa ou como ataca a outra equipa, porque nos deixamos levar pelas etiquetas. Este é um treinador defensivo e este é um treinador ofensivo”. Porém segundo o mesmo autor na realidade, os grandes treinadores não conceberam o jogo de forma isolada, de forma separada”, mas segundo uma visão global do jogo e da forma como o sentem. Reforçando a ideia, Benedetti acrescenta que “as equipas “defensivas” de Mourinho fizeram uma quantidade impressionante de golos. As equipas “defensivas” de Helenio Herrera fizeram um enorme número de golos. As equipas “ultra-ofensivas” de Guardiola foram equipas que evitaram que os seus adversários pudessem chegar à sua baliza. É aqui que o futebol se torna apaixonante porque nos leva a essa rebeldia de pensar e não nos deixar levar pela imediatez do dos meios de comunicação e de todos os que se querem postular como analistas do jogo, mas que na realidade apenas o pensam de forma superficial. O Futebol é um todo“.

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Para (Vítor Frade, 2013), torna-se então fundamental compreender que “o que nos distingue das outras espécies é de facto… e nós chegamos a esta espécie e chegamos a ser o que somos pela criatividade. Contrariamente ao que se pensa, é a autoengendração que assegura que nós possamos superar as dificuldades, isto num sentido individual. O que acontece por isso, em termos de grupo, hoje fala-se na inteligência de massas, ou não sei o quê, ou da inteligência enxame, mas é de facto uma necessidade imprescindível, mesmo aí, a criatividade. Eu costumo dar uma metáfora que é assim: eles estão perante um tema, mas quem faz a redacção são eles e a redacção é condizente com o contexto, e com o momento, com a capacidade momentânea e muitas coisas, mas essa é deles! E essa muitas das vezes é à la long, e na continuidade da causalidade excepcional repercute-se numa melhoria, na melhoria da coordenação, da organização da própria equipa. Uma condição da existência das pessoas é serem criativas!“.

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Também citado por (Pedro Bessa, 2009), outro treinador português, José Gomes, afirma que estas situações de jogo “podem ser aproveitados para tornar determinado momento de transição de uma ou de outra forma” (Anexo III)”. Assim, no pensamento do treinador, as situações de bola parada sãomomentos de jogo que são ofensivos e defensivos e que estão incluídos nestes” (Anexo III)”. Portanto, de acordo com (Pedro Bessa, 2009) para José Gomes, tal como de Carlos Carvalhal, as situações de bola parada estão incluídas “nos momentos ofensivos e defensivos, como todos os outros momentos destas fases, não fazendo sentido falar em momento alternativo de jogo”. Contudo, importa perceber que estas situações não estão apenas incluídas nos momentos de Organização. Como é facilmente entendível, por exemplo, um livre, lançamento lateral e até canto ou mesmo pontapé de baliza, nos quais a equipa que defende ainda não recuperou a sua Organização Defensiva, estará então no sub-momento Recuperação Defensiva da Transição Defensiva e quem ataca estará em condições de explorar o sub-momento contra-ataque da Transição Ofensiva. Se efectivamente o fará já será depois uma decisão a tomar.

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“(…) não existe treinador que no seu íntimo não pretenda ser o “deus de Laplace” – conseguir prever com uma certeza infinitésimal a evolução do jogo, controlar esse sistema multivariável. Por isso, talvez ele preferisse substituir a variabilidade pela estereotipia na expectativa de que as atitudes dos seus jogadores fossem previstas e articuladas com a máxima certeza, de que as propriedades topológicas do movimento que eles manifestam fossem as menos variáveis. Ele deve, no entanto, aperceber-se que a máxima estereotipia, correspondendo à mínima variabilidade, corresponde, também, à mínima adaptabilidade…”

P. Cunha e Silva (1995) citado por (Júlio Garganta, 1997)

 

A juventude não está na quantidade… está na qualidade

“O valor das coisas não está no tempo em que duram, mas na intensidade com que acontecem. É por isso que existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”

Fernando Pessoa citado por (Romano, 2007)

É inegável que tempo traz consigo potencial para o ser humano se tornar mais conhecedor, mais complexo, mais competente, em qualquer que seja a área. Isto porque, por norma, mais tempo, eventualmente maior número de experiências e eventualmente maior conhecimento. Mas nem sempre. Algumas vezes tempo não traduz maior número de experiências e outras vezes essas experiências não são capitalizadas em ganhos e conhecimento. Acontece que por vezes o ser humano aprende algo e depois repete sem critério e auto-renovação, talvez porque o sistema social em que vive, lhe impõe pressa, rotina, mecanização, e não lhe torna fácil essa necessidade fundamental de auto-renovação. É mais um exemplo de que mais do que quantidade, interessa-nos a… qualidade. No caso, a qualidade da nossa acção sobre sobre o nosso tempo e as nossas experiências.

Isto para falarmos de Mateus Galiano. Quase nos 38 anos, com mais de 500 jogos como sénior, manifesta a juventude de um adolescente. Porque continua a capitalizar todas as experiências que usufrui, sendo um claro exemplo de que o jogador, espelhando o exemplo do homem em geral, está permanentemente em formação. E acima de tudo porque demonstra uma paixão genuína pelo jogo e dessa forma, naturalmente isso hierarquiza todas as outras coisas menos importantes na sua vida, permitindo-lhe apresentar uma motivação, alegria, “frescura” e disponibilidade incríveis. Para quem tem a felicidade de conviver com Mateus, testemunha o exemplo que é, e que sabendo-se a velha máxima de que o todo é maior que a soma das partes, aprende também que o todo ganha uma força maior quando há uma parte incrível.

No passado Sábado, após marcar, numa final, o golo com que todos sonhávamos quando éramos crianças, que ajudou a abrir caminho para um título de campeão nacional, o apetite de Mateus por mais felicidade, é fenomenal. Há algum tempo, em conversa com amigos, dizia que ao contrário do que muitas vezes se diz, o tempo não é o bem mais precioso. É a felicidade. Mateus é um exemplo incrível dessa ideia.

“A principal razão que me mantém assim, é o amor e a paixão enorme que tenho em jogar Futebol”.

(Mateus Galiano, 2022)