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Um contra-ataque 3×2+GR

“A sorte está nos detalhes.”

(Jorge Maciel, 2017)

Entre as muitas situações de jogo que se passaram no passado fim-de-semana, destacamos esta, que ocorreu no jogo entre Wolverhampton e Newcastle. Trata-se de uma situação de contra-ataque 3×2+GR, portanto, na nossa sistematização do jogo, situa-se no momento Transição Ofensiva, sub-momento Contra-Ataque. A pertinência da mesma prende-se com a elevada taxa de insucesso com que esta situação é resolvida no jogo, e simultâneamente, com o potencial que possui para que a equipa crie uma extremamente favorável oportunidade de finalização.

Trazendo a realidade do Futsal, na generalidade, o contra-ataque 3×2+GR, é uma situação que é resolvida de forma muito mais eficiente, e consequentemente, mais eficazmente. A explicação parece-nos simples: há conhecimento para a resolver e é-lhe dada muita relevância no treino. E provavelmente, é-lhe dada essa importância porque existe uma consciência dos treinadores que a situação se repete muitas vezes ao longo do jogo. No Futebol, ao invés, não é uma situação frequente. Porém, se por norma, nos jogos de Futsal sucedem mais golos que nos de Futebol, então, no caso do Futebol, uma boa resolução de apenas uma situação, pode-se tornar decisiva no desfecho de um jogo. Foi muito provavelmente, o que se passou neste jogo.

Este é mais um exemplo da enorme complexidade do jogo de Futebol. Mais número (jogadores), mais espaço, mais tempo, tornam-no rico em diferentes situações de jogo, que elevam o caos, e consequentemente a sua aleatoriedade. Pegando no exemplo da situação de contra-ataque que trazemos neste artigo, se num jogo de Futsal de GR+4×4+GR, o contra-ataque já assume muitas configurações diferentes, um jogo de GR+10×10+GR irá exponenciar a variabilidade desta situação. Assim sendo, o seu treino torna-se também muitíssimo mais complexo. No entanto, e pensando de forma geral, a capacidade de adaptabilidade e o limite ao desgaste são similares para ambos os desportos, porque o homem que o joga é o mesmo. Torna-se portanto decisivo para o treinador, não só o conhecimento do jogo e do treino, mas também a selecção de conteúdos e a sua dose, para que de facto se crie a adaptação mais favorável ao melhor desempenho.

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  1. No primeiro momento em que o vídeo pára, identificamos oportunidade para Diogo Jota acelerar a condução e fixar um dos dois defensores. Optando pelo mais próximo do eixo central do campo, permitiria mais espaço e melhor enquadramento de finalização ao companheiro de equipa à sua esquerda. Fixando este defensor, Jota deveria, simulando um drible, a finalização ou a condução de penetração entre os dois defensores, provocar o defensor de forma a que este trocasse os apoios e assim surgisse a oportunidade para realizar o último passe para as suas costas, deixando-o em enormes dificuldades para recuperar e garantir contenção ao segundo atacante. Este ficaria assim, numa condição privilegiada para finalizar com sucesso.
  2. Precipitando o passe para o companheiro à sua esquerda, possibilidade que o defensor trocasse facilmente a contenção para Dendoncker, Diogo Jota toma depois uma segunda decisão muito boa, que acabaria por corrigir a primeira, através de uma desmarcação circular pelas costas do companheiro, garantindo-lhe assim, uma solução de último passe fácil que colocaria Jota num enquadramento muito favorável de finalização. “Bastava” que para isso, Dendoncker temporizasse, permitindo que o companheiro completasse o movimento, e ao mesmo tempo que fixasse o defensor. Ao contrário, o belga optou por um passe longo para Raúl Jiménez, de mais difícil execução e recepção, e que simultaneamente permitiria tempo, não só para que os dois defensores ajustassem a contenção / cobertura, como por outro lado, para que mais defensores recuperassem defensivamente, perdendo-se assim uma situação, de número e espaço, altamente favorável.

O treinador português Paulo Fonseca, entrevistado por (Rosmaninho, 2015) descreve o seu antigo treinador Jorge Jesus como extremamente exigente e preocupado com o detalhe, sendo as desmarcações um bom exemplo. Paulo Fonseca refere que Jesus faz o jogador pensar, o quando, o como e onde é que tem de receber a bola, para onde é que se tem de movimentar, em que momento, em que timing, e isso faz toda a diferença em certos momentos do jogo. Eu acho que a identificação deste detalhe não está ao alcance de todos”. Está patente que o conhecimento do jogo evoluiu abruptamente nos últimos anos. O autor (Romano, 2007), aludindo-se a um pensamento com mais de 15 anos, refere que “Queiroz (2003a) indica que, nos níveis de maior exigência, o treino evolui ao nível da complexidade e da especificidade do detalhe”. Na mesma linha de pensamento surge (Esteves, 2010), descrevendo que “quanto maior o nível de exigência, menor é a diferenciação qualitativa, e mais importância assume o elemento «detalhe»”. Também (Mourinho, 2010), descreve que “quando estamos a trabalhar algum exercício, estamos a trabalhar todas as vertentes. O mínimo detalhe entra no mínimo exercício, mesmo que possa parecer um exercício simples”. Porém, o autor (Campos, 2008) ressalva que a riqueza que deve surgir no detalhe deve ter sempre como pano de fundo os princípios de jogo“. Torna-se, portanto, cada vez mais importante dominar o detalhe, no enquadramento específico de um Modelo de Jogo, e fazê-lo emergir no treino, rentabilizando ao máximo cada sessão.

“O jogo de qualidade tem demasiado jogo (detalhe, imprevisibilidade) para ser ciência mas é demasiado científico (organizado) para ser só jogo.”

(Frade, 2003) citado por (Romano, 2007)

João Félix… o mago da intensidade II

Escrevíamos num artigo publicado em Setembro de 2018, que “em tempos comentámos que Félix fazia lembrar Cruijff na gestualidade, no drible, na pausa, na provocação quando fixa o adversário. De facto… mas não só. Cingindo-nos apenas a exemplos do Futebol Português, lembra-nos Aimar, Rui Costa, Deco ou Pedro Barbosa. Entre tantas coisas fantásticas em comum, destacamos uma. A pausa. Quando o jogo a pede. A tal que muda por completo a definição de intensidade no Futebol… a tal intensidade táctica… a tal intensidade específica do jogo. A tal que significa fazer bem e no tempo certo e não obrigatoriamente muito e depressa. Na forma como constrói, mas também como cria. O próprio drible é muito na essência da pausa, da mudança, da descontinuidade na execução que provoca e perturba emocionalmente o adversário”. O prodígio português trouxe-nos mais um momento delicioso… repleto de… intensidade.

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“(…) o futebol é como a música: a música que é toda do mesmo ritmo a gente não ouve durante muito tempo. O futebol precisa de nuances, tem tempos, tem timings, tem momentos, tem espaços que é preciso utilizar e criar.”

(Miguel Cardoso, 2018)

Boa e má decisão…

…ao contrário do que a bancada pedia.

Num primeiro momento André Carrillo parece temporizar, aguardando soluções de passe dos companheiros mais avançados, dada a distância dos mesmos, mas provavelmente também pela presença de três adversários que lhe podiam realizar oposição caso optasse pela condução. A sua decisão revelou-se de qualidade, pois conseguiu continuar a progressão do contra-ataque pelo corredor central, num passe vertical para Mitroglou. Tudo isto perante a impaciência da bancada que lhe pedia para acelerar em condução, na sempre presente vertigem pela velocidade descontextualizada. Perdeu 3 segundos de deslocamento, mas ganhou uma melhor situação de ataque à baliza adversária. Ironicamente, o pedido foi satisfeito logo a seguir por Sálvio, que acaba por perder a bola…

Ainda recentemente, o Pedro Bouças escrevia aqui que “demasiadas são as vezes, em que porque o essencial é invisível ao olhos, que o talento escapa. Os melhores também terão a sua cota parte de responsabilidade. Porque percebem mais rápido o jogo e entendem a sua superioridade intelectual, sentem-se eternamente injustiçados e deixam de arregaçar as mangas. O mundo não os percebe e conspira. E o talento entrega-se”.

Intensidade no Futebol IV

Tal é profundidade do pensamento analítico na nossa cultura que é extremamente difícil a compreensão do paradigma da complexidade. A intensidade específica do jogo de Futebol é um bom exemplo, e como tal temos recorrido a este tema com insistência.

Hoje trazemos uma acção individual ofensiva, mais concretamente um drible. Não analisando a decisão de o efectuar, olhamos para acção concreta que acabou por resultar em sucesso, uma vez que provocou uma falta adversária numa situação de 1×2 e posteriormente de 1×3. Na perspectiva tradicional, ser intenso aqui significava acelerar, ininterruptamente, a execução e o deslocamento. A acção que que se mostrou eficaz perante uma situação desfavorável, para além de mudanças de direcção, implicou também temporizar, acelerar, temporizar, e novamente acelerar. No fundo na perspectiva complexa da intensidade, a específica do jogo de futebol, fazer bem, no tempo certo.

Intensidade no Futebol III

Regressamos ao tema intensidade. Tema que futuramente será de novo publicado no novo website. Os exemplos da visão que defendemos da intensidade sucedem-se em quase todos os jogos, no entanto quando temos exemplos dos melhores, estes ganham para nós toda a pertinência. Uma visão que como tudo o resto é específica deste jogo. Deste modo, a intensidade no atletismo da corrida de 100m é algo completamente diferente da intensidade que o jogo de futebol exige. Assim, como já referido no passado, existe actualmente uma forte tendência para interpretar a intensidade do ponto de vista físico ou psicológico. Respetivamente, expressa pela quantidade e velocidade de execução ou pela agressividade mental. Para nós estas interpretações, à imagem do que sucedeu no passado com toda a metodologia do treino, ideia hoje vulgarmente aceite, estão descontextualizadas. A intensidade no futebol tem que ser táctica. Logo, trata-se de decidir a melhor acção perante as circunstâncias. Mesmo que esta decisão implique travar ou abrandar, portanto, do ponto de vista da execução, fazer menos naquele instante.

Desta forma Iniesta e Messi mostram-nos que agir rápido nem sempre é o melhor caminho. O que também é diferente de ler e interpretar rapidamente o jogo e decidir bem o que fazer antes de todos os outros, e isto sim é a intensidade no futebol. Iniesta e Messi demonstram aqui que temporizar, atrair, fixar e depois soltar ou finalizar, foram melhores soluções do que acelerar em condução ou acelerar na finalização, na vertigem da intensidade física ou psicológica.

 

Qualidade de execução ou de decisão? E a Intensidade.

Este golo marcado por Nicolás Gaitán levanta uma questão colocada muitas vezes quando se procura identificar e descrever a qualidade de um determinado jogador. Nesta e em situações similares, foi prontamente elogiada a “qualidade técnica” do argentino, portanto a sua qualidade de execução.

Em primeiro lugar é fundamental entender, que tal como noutro qualquer fenómeno complexo a relação entre táctica e técnica, ou seja, entre decisão e execução, é permanente e interactiva. Elas não existem separadas na acção de jogo, e afirmá-lo é incorrer no mesmo erro epistemológico que dividiu o treino nos diferentes “factores”, é no fundo também errar como Descartes, quando postulou o dualismo corpo / mente. Assim, um jogador que apresenta qualidade, deve-a às duas dimensões e sua interacção. Importa ainda acrescentar que são qualidades estruturadas também pelas dimensões físicas e mentais do indivíduo em causa. Porém, em algumas acções é perceptível a prevalência de uma delas no seu sucesso.

Neste caso, é fácil perceber que Nicolás Gaitán não protagonizou nenhuma acção técnica de difícil execução. Recebe de forma orientada para a baliza com um pequeno toque, e perante a oposição de dois defensores e do guarda-redes dá mais quatro pequenos toques, tirando todos do caminho, finalizando no 6º toque, num “passe” para a baliza. Talvez as acções técnicas mais complexas tenham sido a simulação na recepção e uma pequena simulação de finalização no meio da acção. Aqui, o que fez a diferença foi o timing de cada toque na bola e de cada gesto motor, portanto, as sucessivas decisões perante o envolvimento. Segundo (Bouças, 2012), jogadores fortes na tomada de decisão são, por exemplo, “jogadores que não se precipitam” e que sabem definir com exactidão o timing das suas acções, e que percebem os momentos em que devem segurar e esperar, ou progredir e investir”.

Recordando um texto da autora e treinadora Marisa Gomes de 2011, “as relações e interAcções dos jogadores têm lugar num instante que é vital. A passagem contínua e invariável do tempo faz com que cada instante tenha uma singularidade que comporta em si a dinâmica que podemos fazer do tempo. Obviamente que falamos da temporalidade do tempo, aquela que nos permite fazer dele uma arte. O tempo de jogo refere-se ao tempo regulamentar. A temporalidade refere-se àquilo que queremos fazer com o decorrer do mesmo”. Segundo a autora, “ter capacidade para interagir tendo em conta as circunstâncias é que torna os seus intervenientes artistas. Sobretudo se isso convergir para aquilo que se pretende. Adequar as escolhas é aquilo que se reconhece nos melhores jogadores e nas melhores equipas. Aceder a essa capacidade exige um trabalho dirigido, concentrado e objectivo para aquilo que se pretende. Deste modo vamos sentindo que as escolhas se fazem nos instantes apesar de serem projectadas por aquilo que foram as vivências anteriores. Então, jogar é manusear os instantes preenchendo-os com um sentido, através das intencionalidades que se expressam nos movimentos. De forma espontânea, os melhores adoram jogar para o poder fazer. Antecipam, simulam, escondem, provocam e Sobredeterminam o seguimento das circunstâncias. A qualidade do tempo ganha assim UM sentido que não se desenvolve sempre do mesmo modo. Concorrer para a qualidade fundamental dos jogadores é educá-los desde muito cedo para isso. Desde quando? Desde sempre!”.

Johan Cruyff, citado por (Grove, 2015) terá defendido que “técnica não é conseguir dar 1000 toques na bola. Com treino qualquer um consegue fazer isso. Depois poderá trabalhar no circo. Técnica é passar a bola ao primeiro toque, com a velocidade certa, e para o pé certo do companheiro de equipa.” Apenas preferimos qualidade individual” ao invés de “técnica” e trocamos“ao primeiro toque”, por no momento certo“…

Esta reflexão leva-nos a uma segunda questão, a qual está hoje na “moda”: a Intensidade. A mesma foi sempre associada à qualidade das acções, porém tem sido também, insistentemente associada ao rápido deslocamento, à velocidade de execução, ao pressing, à agressividade física, etc., portando uma Intensidade alicerçada na visão física do jogo. Contudo, se o pensamento complexo leva-nos a uma interpretação e visão multidimensional do jogo e do treino, por arrasto, conceitos como a Intensidade necessitam também de uma nova abordagem, igualmente multidimensional.

Na situação aqui ilustrada, impondo a tal “intensidade físico-técnica”, Gaitán precipitaria a sua acção para uma rápida finalização ou drible, não descobrindo, como o fez, a melhor decisão. Decisão essa que incluiu temporizações em que simplesmente não executou, mas que aumentou a probabilidade de êxito na conclusão da acção. Portanto, não ter agido, naquele envolvimento, revelou-se melhor do que fazer muito ou do que fazer rápido. Deste modo, mantendo a Intensidade associada à qualidade das acções, porém enquadrando-a numa visão complexa do rendimento, Intensidade poderá ser nalguns casos, não se deslocar e executar? Sim, se ao contrário de fazer muito e depressa, for entendida como fazer o necessário para fazer bem.

Iremos em breve, abordar de forma mais profunda a Intensidade.

“Temporizar é muito importante. Para mim é funtamental. Decidir bem.”

(Vítor Pereira, 2014)