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A estupidez precoce

Um bom artigo sobre o Futebol de Rua, que desde já aconselhamos a ler, levantou-nos algumas questões. O autor, Carlos Almeida, interroga-se:

“não estaremos nós a promover a «especialização precoce»? A especialização precoce é definida como o início prematuro: (i) no desporto, sobretudo, num só desporto; (ii) na prática/treino formal de alta intensidade; (iii) em contextos de elevada competitividade. Quem quiser colocar em causa esta constatação, que assista a um torneio de Petizes (Sub-7) ou Traquinas (Sub-9) e observe, criteriosamente, os comportamentos de treinadores, de pais e do público em geral. É o envolvimento típico de um jogo de seniores. Chegámos ao ridículo de ouvir o árbitro ser vaiado antes de o jogo começar, para não mencionarmos episódios de discussão entre treinadores ou de pancadaria entre pais.”

Na nossa perspectiva, a questão é outra e não reside na esfera da especialização precoce.

Se pensarmos objectivamente no ponto (i), as próprias crianças procuram desde muito cedo a prática desportiva e nenhuma criança pratica uma só actividade, um só desporto. As suas experiências são por norma ecléticas e multilaterais. Assim, o primeiro problema coloca-se da interpretação que temos de desporto. O mesmo não tem necessariamente de ter contornos formais nem estar dependente ou influenciado por adultos. Dada a natureza humana, a criança explora, experimenta e interage, com tudo o que lhe suscita curiosidade. Assim, estamos perante um universo vastíssimo, o qual contém inúmeras actividades físicas, psico-motoras, outras apenas mentais, etc.. Se entretanto, dedica mais tempo a uma dessas actividades, isso não pode ser considerado errado, é simplesmente uma natural preferência pessoal. Errado é serem-lhe retirados, pela sociedade, tempo e espaço para todas as outras actividades e experiências, nomeadamente as na rua e nos recreios, e em contexto de auto-descoberta.

Hoje falava com um amigo, professor de Expressão Motora, que desabafava que os seus miúdos estão cada vez mais difíceis de gerir, pois quando confrontados com algum espaço para darem expressão ao seu potencial motor, à sua necessidade de jogar e mesmo a alguma liberdade, surge uma “catarse” difícil de controlar. É verdade que nem sempre bem, mas a Expressão Motora e a Educação Física, dentro do sistema de ensino sempre procuraram combater um problema grave e crescente que os adultos estão a impor às crianças. Mas a verdade é que travam uma luta inglória. Num artigo publicado no passado, trazíamos um vídeo com entrevistas a prisioneiros, que tendo em conta as suas vivências, pensavam na vida das crianças de hoje. No passado fim-de-semana, um dos oradores do I Congresso Internacional da Periodização Táctica, voltou a  puxar o assunto. Recuperamo-lo, pois nunca é demais sublinhar o problema.

Simultaneamente, errado é ainda a criança ser empurrada, como imposição social, para uma escola de futebol ou de outra qualquer modalidade, onde a prática analítica, mecânica e altamente directiva não lhe permite descobrir e resolver os problemas que os jogos lhe traz, castrando-lhe a autonomia, mas acima de tudo, não lhe proporcionando o essencial… a satisfação. No fundo, como se não chegassem todas as outras imposições dos adultos, este conceito de “desporto” surge como mais outra imposição, muitas vezes motivado por razões preocupantes, como a falta de tempo para os filhos, ou um desejo dos pais para desde cedo tornarem o filho num futuro desportista profissional.

Quanto ao segundo ponto (ii), dada a nossa perspectiva de intensidade, já amplamente difundida, a mesma não se torna prejudicial à criança. Antes pelo contrário. Porque simplesmente a intensidade que idealizamos, à luz do pensamento complexo, refutando o pensamento cartesiano e portanto não separando decisão de execução, será fazer bem, no tempo certo. Sendo assim, é no fundo o que a criança procura em todas as actividades que explora: torna-se melhor, evoluindo respeitando as suas qualidades, interesses, fadiga, timings… Na perspectiva convencional de intensidade, na qual o que importa é fazer tudo rápido, de forma agressiva, mecânica, despejada de consciência e inteligência, é claro que a mesma é prejudicial para a criança. E vamos mais longe… também o é para o adulto.

“Habituámo-nos ao instantâneo. Temos comida instantânea, fotos instantâneas e café instantâneo, e agora começamos também a esperar êxito instantâneo.”

(Wein, 2004)

O ponto (iii) reflecte tudo o resto. E a questão coloca-se, se estamos perante a competição que por exemplo os jogos na Rua traziam à criança, altamente benéficos e arriscamos mesmo a dizer, necessários ao seu desenvolvimento, ou se estamos perante a péssima competição dos adultos protagonizada em muitos contextos profissionais e amadores, da qual o autor Carlos Almeida dá vários exemplos. Essa mesma “competição” que é importada pelos adultos, todos os fins-de-semana, para o desporto infanto-juvenil.

Portanto, o problema não se situa numa eventual especialização precoce, um chavão também inventado pelos adultos para catalogarem as suas asneiras. O verdadeiro problema é a transferência de muita estupidez dos adultos para a vida das crianças. Assim, podemos, com objectividade, explicar que o problema é a imposição do adulto à criança de uma… estupidez precoce.

“Um estudo, realizado em Inglaterra, revelou que os taxistas desenvolvem muitos mais novos neurónios que os motoristas de autocarro.”

Vítor Frade, 2017 – I Congresso Internacional de Periodização Táctica

O jogo como ciência, e as crianças como cientistas

Se atendermos à definição de ciência no “sentido restrito”, a qual “refere-se ao sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico bem como ao corpo organizado de conhecimento conseguido através de tais pesquisas”, expresso na (Wikipédia, 2017), então a frase que intitula o artigo deve ler-se no sentido figurado. Isto claro, se também entendermos o método científico pela visão clássica de Descartes e Newton. Obviamente que o futebol tem uma margem reduzida de pesquisa em laboratório e de comprovação teórica através destes pressupostos. Esse foi um dos erros que o pensamento analítico e mecanicista introduziu no jogo, no seu treino e na sua liderança, concretizado por exemplo em ideias de jogo que privilegiam a resolução individual, na Periodização Física, na excessiva importância dada à estatística, em lideranças que separavam a equipa em partes, dando mais importância a determinados elementos entendidos como mais valiosos, em detrimento de outros.

No entanto, segundo a mesma fonte, a ciência (do latim scientia, traduzido por “conhecimento”) refere-se a qualquer conhecimento ou prática sistemáticos“. Assim, nesta interpretação mais lata, pode surgir o futebol, pelo conhecimento que emerge da prática sistemática dos seus intervenientes. Neste enquadramento, e na perspectiva técnica, o treinador português (Jesus, 2015), explica que criou e desenvolveu uma metodologia com a sua equipa técnica ao longo dos anos que treinou. Jorge Jesus ressalva que não sendo uma ciência exacta”, criaram “uma ideia, uma ideia de treino, uma ideia de jogo, trouxemos muitas coisas novas para o Futebol”, e remata “o Futebol tem ciência, e ela começa no treino”.

“As pessoas riram-se muito quando Jesus disse que tinha inventado uma ciência, fartaram-se de rir disso, e é uma estupidez porque uma ciência é um corpo organizado de conhecimentos, e portanto o que o Jorge Jesus fez foi isso de facto. Ele tem, provavelmente até tomou apontamentos e armazenou, um conjunto sistematizado de conhecimentos sobre uma determinada matéria e que põe em prática com óptimos resultados, coisa que boa parte dos cientistas não se pode gabar.”

Ricardo Araújo Pereira

Na mesma linha de pensamento, Jorge Maciel, acrescenta que treinar tem muito de Ciência, mas não menos de Arte, e é a articulação bem conseguida entre estes dois planos que permite o sucesso”. O mesmo autor refere ainda que é uma ciência que se encontra “na esteira do pensamento sistémico e como tal coloca a ênfase nas relações, na qualidade e nos padrões, sem refutar na sua evolução a intuição, mostrando assim que tal como treino, também a Ciência de qualidade requer Arte“. Manuel Sérgio defende ainda que “o futebol “é uma ciência, tem de ser estudado e praticado como uma ciência humana, porque são homens e cada ciência humana estuda o homem à sua maneira“.

“Passado meio-século, a nossa visão da natureza mudou radicalmente. Onde a ciência clássica falava de equilíbrio e de estabilidade, vemos agora flutuações, instabilidades, processos evolutivos. E isto a todos os níveis, desde a cosmologia à biologia, passando pela química.”

Prefácio do livro de Prigogine e Dilip Kondepudi, editado pelo Instituto Piaget, Termodinâmica – dos motores térmicos às Estruturas Dissipativas, citado por (Sérgio, 2016)

Se mudarmos ligeiramente a perspectiva, podemos ir mais longe e interrogarmo-nos se o jogador não poderá assumir o papel do tradicional investigador e o jogo, o seu laboratório. Porque no fundo é, em primeiro lugar, ele que experimenta, ele que erra, ele que aprende, ele que evolui, ele que constrói um corpo de conhecimento, mesmo que este surja predominantemente no domínio do saber fazer. E desta forma também nos interrogamos se, assim, o jogo também não se torna numa ciência que se desenvolve nos pés, ou melhor, na cabeça de quem o joga.

Este pensamento conduz-nos a outro problema no contexto do Futebol de Formação. O papel do adulto enquanto condicionador das experiências que a criança obtém através do jogo. Isto, claro, partindo do pressuposto que o treino para o adulto é jogo. Cada vez vai ganhando mais força a ideia da importância do Futebol de Rua, das suas características singulares, e da prática sistemática que este promove. Da forma como esse contexto, desprovido de adultos, liberto da pressão que o erro significa para os mesmos, leva a criança a ser o “cientista”, experimentando, aprendendo o jogo com este como o professor, proporcionando-lhe evolução, fazendo emergir o talento e até conhecimento. Em conversa com um amigo e treinador de futebol de formação, ele relatava que “engraçado foi os miúdos dizerem que o melhor jogador do jogo de sub-14 era o… mais pequeno da equipa deles!!! Até eles sabem que o tamanho conta pouco quando a qualidade é muita!” Portanto, é constantemente o adulto, baseando-se em lugares comuns, em experiências castradoras, no pensamento analítico que o domina fruto do paradigma educativo e social vigente em que cresceu, que acaba por deseducar futebolisticamente a criança, castrando-lhe pelo caminho, a criatividade e o pensamento divergenteComo esse treinador referia… “o problema das crianças é… tornarem-se adultos”.

“Antigamente, sobravam tempo, espaço e oportunidades para as crianças jogarem longe das regras dos adultos. Nesses espaços não havia limite de toques ou caminhos proibidos. Muito menos caminhos obrigatórios.”

Paulo Sousa citado por (Amieiro, 2009)

“Não se remata de bico!”

Não se remata de bico!” ou “Não se passa de trivela!” eram, e ainda são, exemplos de frases ouvidas no futebol de “formação”. Da bancada, e mais grave, da boca de alguns treinadores. Mais uma expressão do pensamento redutor, que em determinado momento da evolução do jogo quis passar a mensagem que apenas algumas acções individuais seriam úteis, conduziam o jogo para um mecanicismo estéril. Acções que saíam “fora da caixa” seriam condenadas e catalogadas como excessos e traços de jogadores inconsequentes. Assim, para aqueles que ambicionavam chegar ao futebol profissional e tinham essa oportunidade, ou desenvolviam estes recursos durante o seu percurso no jogo informal ou estavam condenados a serem os “operários” da equipa.

Portanto, em auto-descoberta tal como sucedia na rua, o jogo ensinava-nos outra coisa. Que qualquer acção podia ser útil e tudo dependia da sua adequação ao contexto e à situação. Se Romário não tivesse experimentado, sentido o jogo e criado o seu jogar na liberdade que a rua lhe permitia, provavelmente não tinha desenvolvido o seu remate tão característico e eficaz.

“A bola rolava expontaneamente pelas ruas da Vila da Penha, em campos improvisados ou nas «quadras» de futebol de sala. Cada porta era uma baliza, cada duas pedras marcavam o lugar de outra. Bolas improvisadas, joelhos rasgados, faltas na escola, a infância de Romário foi igual à de tantos rapazes brasileiros, que nasceram antes ou depois dele.”

(João Pedro Silveira, 2011)

“Não tem padrão

a precisão,

o exacto

depende de cada acto,

na semelhança da configuração

a dimensão técnica está no padrão,

configurando a variabilidade

que como execução

só o exacto da precisão

acerta com complexidade.”

(Frade, 2014)

Francisco Silveira Ramos

Para os menos conhecedores do futebol português e da evolução metodológica vivenciada, o professor Francisco Silveira Ramos é sem dúvida uma figura incontornável do jogo. Durante os anos 90 e princípio do século XXI, momento em que o treino era determinado pela dimensão física, no qual quem pensava “fora da caixa” era hostilizado pelo pensamento vigente, Silveira Ramos foi um dos poucos, que com coragem, assumiu que a preocupação central do treino deveria ser o cérebro e a decisão táctica. Defendendo a “integração dos factores do rendimento”, a sua visão diferia de forma abissal do “treino integrado” muito típico no Futebol Espanhol, mas também com expressões no Futebol Português. Como sustentámos no tema de Saber Sobre o Saber Treinar, “O treino integrado e sintético” tinha na mesma como preocupação central a dimensão física, porém aqui camuflada por exercícios com bola e acções do jogo. Silveira Ramos não só anteviu outro rumo que hoje se concretiza, como formou muitos técnicos em cursos de treinadores e licenciaturas, e ainda ajudou a crescer, nas selecções jovens portuguesas alguns dos maiores talentos do futebol português. Finalmente, revelou ainda grandes preocupações com o Futebol de Formação e o desaparecimento do Futebol de Rua.

Assumimos que o professor Francisco Silveira Ramos foi decisivo na forma como hoje vemos o jogo e o treino e dos que mais nos inspiraram a criar este espaço. Apesar do facto passar despercebido à maioria da comunicação social, Portugal pode-se orgulhar em contar com alguns dos maiores pensadores deste jogo, que contribuíram para a tal ruptura de conhecimento que já descrevemos. E sem dúvida que Silveira Ramos é um deles. Deixamos várias ideias do professor num recente programa televisivo, que dado o conhecimento dos intervenientes e das ideias abordadas, fugiu à norma do panorama televisivo português.

O Treinador Português:

A dimensão estratégica:

O treinador de “formação”:

O jogo mecânico e a música:

A crescente riqueza comportamental de cada função e a repercursão na dimensão física:

A era das dinâmicas:

Jogo curto e apoiado:

Criatividade defensiva:

Individualização do treino:

“Cabe-nos encontrar as metodologias que permitam que o processo de treino se adapte a essa realidade, adaptando os praticantes às exigências da competição.

Francisco Silveira Ramos, 2003

Free the Kids

A propósito da apresentação de Sir Ken Robinson sobre a actual educação das crianças, que publicámos neste espaço:

www.sabersobreosabertreinar.com/2015/03/ensino-individualidade-criatividade.html

Uma recente campanha, baseada num estudo realizado em dez países, a mais de 12000 pais de crianças entre os 5 e os 12 anos, trouxe esta conclusão que reforça a visão de Robinson.

“O autor (Carvalhal, 2010), baseando-se em Sir Ken Robinson, explica que “existe a necessidade de construir um novo Paradigma educacional, centrado no descobrir e desenvolver as competências individuais de cada ser humano, criticando o paradigma vigente relativamente à educação e à forma como “produzimos” cada vez mais Tecnocratas. (…) Por aqui podemos aferir a importância de desenvolver os sentidos e de experimentar as sensações em contacto com o meio (perspectiva ecológica) de forma a testarmos todas as nossas capacidades fazendo do ensaio/erro uma autodescoberta. A individualidade é assim um conceito obrigatoriamente agregada à noção de criatividade: o que vivencio enquanto jogador potencia as minhas qualidades, exponenciando-as; faz com que codifique de determinada forma o significado do que vivi, determinando também a conexão que farei com episódios semelhantes no futuro. Em suma, a autodescoberta é resultado de UM percurso singular, percurso, esse que poderá exponenciar as minhas CAPACIDADES (únicas), através da minha INTELIGÊNCIA. Só esse processo bem singular e CONSCIENTE de autodescoberta me tornará um criativo ÚNICO E NÃO REPRODUTÍVEL. Por isso, Sir Ken Robinson referiu que “As comunidades humanas dependem de uma diversidade de talentos e não de uma ideia singular de capacidade. O mais importante dos nossos desafios é restabelecer a nossa noção de capacidade e inteligência”. A noção de capacidade e inteligência de cada um!”.

“Joguei à bola todos os dias da minha vida desde os três anos”.
Lionel Messi

Horst Wein

Faleceu Horst Wein, antigo seleccionador de Hóquei em campo, treinador de Futebol de Formação, formador de treinadores, e autor de várias obras dedicadas ao ensino do jogo, das quais destacamos “Fútbol a la medida del niño” publicado pela Federação Espanhola, “Developing Game Intelligence in Soccer“. Detentor de um impressionante currículo, destacamos porém, as ideias que procurava transmitir.

Em entrevista à revista DOZE em 2010 explicou que no Futebol “tudo começou quando me encontrava  a estagiar com a selecção de hóquei em campo, perto do Nou Camp, o estádio do Barcelona. Carlos Rexach – antigo jogador, treinador e director-técnico dos “blaugrana”, n.d.r. – viu os treinos, começámos a falar e acabei por estar uma semana a ensinar os meus métodos aos treinadores do clube.  Os meus livros são publicados pela Federação Espanhola há 20 anos. O antigo treinador de Xavi, actual jogador do Barcelona, reconheceu o meu trabalho e fiquei satisfeito quando me ligaram a contar que Guardiola tinha comprado os meus livros”. Wien na mesma entrevista, relatou ainda que ficou também muito feliz “quando Arrigo Sacchi – treinador de clubes como o AC Milan, n.d.r – recomendou o “Futebol a la medida del niño”, um dos meus livros, e isso é sinal que o meu trabalho é importante”.

Horst Wein.

Horst Wein.

Participou em várias acções de formação em Portugal, mas faz agora precisamente dez anos, que falou na Universidade Lusófona num seminário internacional dedicado ao treino de jovens futebolistas. Acoplado ao recém sucesso de José Mourinho, vivia-se um momento de ruptura na história do treino dos Desportos Colectivos no qual a essência da Periodização Táctica do professor Vítor Frade finalmente conquistava a confiança de  muitos treinadores e aspirantes à função. Paralelamente a Frade, vários autores como Wein, travavam a mesma batalha ideológica, na qual elegiam a decisão, a inteligência, consequentemente a táctica como dimensão estruturante do jogo e do treino dos desportos colectivos. No entanto, muitos agentes desportivos e até consagrados professores universitários, não perceberam naquele momento a mensagem do autor alemão, o que revelou o carácter transgressivo das suas ideias face ao paradigma vigente.

Modelo competitivo proposto por Horst Wein.

Modelo competitivo proposto por Horst Wein.

Horst Wein teve a particularidade de dedicar a sua obra à especificidade do Futebol de Formação. Entre muitas ideias centradas no desenvolvimento da inteligência táctica e da criatividade da criança, salientamos a defesa dos valores do Futebol de Rua, a sua proposta de progressão formativa e competitiva do jovem futebolista, o treino orientado para o jogo, a defesa do protagonismo do jogador no treino e no jogo e a apresentação de problemas e não de soluções pelos treinadores, ao que a Periodização Táctica chamou Descoberta Guiada. Neste enquadramento foi também o criador do jogo reduzido que denominou por Mini-Futebol, jogado originalmente em situação de 3×3 sobre 4 mini-balizas, o qual propunha maior contacto com a bola, permanente participação do jogador no centro de jogo e o consequente desenvolvimento da inteligência e lateralidade.

Jogo de Mini-Futebol proposto por Horst Wein.

Jogo de Mini-Futebol proposto por Horst Wein.

Passados dez anos, ideias que parecendo hoje óbvias para muitos, foram na realidade de uma importância tremenda pela ruptura que manifestaram e evolução que proporcionaram ao treino do Futebol. Outras ideias, aguardam no entanto, uma ainda maior mudança de mentalidades, nomeadamente ao nível de quem define a filosofia, organização geral e os modelos competitivos do Futebol de Formação. No fundo, orientadoras das prioridades no desenvolvimento da criança em geral, e no jovem futebolista em particular.

“No futebol, um grama de tecido cerebral pesa mais que cem gramas de músculo.”

Horst Wein

“O miúdo deve ser o maestro, o descobridor. Um bom professor deve ajudar os seus alunos a descobrir o que eles pretendem. O jogo é que deve ensinar-te: não o treinador.”

Horst Wein

“A natureza decreta que as crianças devem ser crianças antes de se tornarem adultos. Se tentarmos alterar esta ordem natural, elas vão chegar prematuramente a adultos, mas sem conteúdo nem força.”

Jean-Jacques Rousseau citado por Horst Wein

Ensino, Individualidade, Criatividade…

Antigamente, sobravam tempo, espaço e oportunidades para as crianças jogarem longe das regras dos adultos. Nesses espaços não havia limite de toques ou caminhos proibidos. Muito menos caminhos obrigatórios.

Paulo Sousa

Animação adaptada de uma palestra dada na RSA por Sir Ken Robinson.

“Jogar de forma destruturada, em espaço livre, com reduzida supervisão é o berço de qualquer criança. Para que a próxima geração cresça saudável, equilibrada e apta para beneficiar da sua educação, devemos assegurar que as crianças vão para a rua jogar”.

Sue Palmer, escritora e especialista em crianças, citada por (Cooper, 2007)

A Descoberta Guiada surge na mesma linha do método psicogenético, um ideal educativo criado por Lauro de Oliveira Lima, estruturado a partir das descobertas científicas de Piaget. Este método defende que “O professor não ensina; ajuda ao aluno a aprender”. Segundo (Bello, 1995), “professor deve deixar de lado sua postura de “professor-informador” para assumir a postura de “professor-orientador“, assim como um “técnico de Futebol”, que organiza a equipa em campo. A discussão entre todos é a didáctica fundamental”, e citando (Lima, 1972), “trabalho, deixando de ser manual para ser intelectual, deixando de ser individual para ser grupal, deixando de ser linha de produção (linear) para ser uma decisão (circular), transformar-se-á em discussão”. Assim sendo, o “indivíduo irá aprender através de actividades planeadas pelo professor como, por exemplo, pesquisas, leituras, passeios, etc., sempre orientados pelo professor. Atentando-se que estas actividades são sempre grupais para que todos possam educar a todos, construindo o conhecimento na interacção entre eles”. Bello fundamenta a necessidade deste método de ensino com a imprevisibilidade que o futuro nos traz, portanto há que preparar o indivíduo para resolver situações-problema. Bello explica através de um exemplo prático, citado pelo professor Lauro de Oliveira Lima: “as criança estavam utilizando o escorrega com perfeição, subindo pela escada e descendo pelo escorrega. O professor Lauro sugeriu que a professora estimulasse o inverso: subir pelo escorrega e descer pela escada. Com esta atitude a professora estará incentivando a criança a se superar, a sair daquele estágio em que se encontra para alcançar um outro nível de complexidade de desenvolvimento. Se as crianças estavam cumprindo a tarefa de subir pela escada e descer pelo escorrega com perfeição, elas estavam acomodadas naquele nível de desenvolvimento. Quando a professora sugere uma tarefa de complexidade superior ela está ajudando as crianças a assimilar um novo nível de equilíbrio”. Com este exemplo, Bello expõe que “a professora poderia “mostrar como se faz” para as crianças, o que não teria nenhum valor no esforço de conquista da nova aprendizagem a ser enfrentada pelos alunos. Portanto, a aula expositiva (conhecida no jargão pedagógico como “aula de salivação”) é incompatível com o esforço para inventar que deveria estar sendo empreendido pelos alunos. Para Lauro de Oliveira Lima todo desenvolvimento requer esforço para que se possa construir estruturas ou estratégias de comportamento cada vez mais complexas”. José Bello vai mais longe e sustenta que “a aula expositiva torna-se então quase um “anti-estímulo” à criatividade ou uma ofensa contra o aluno, já que pressupõe uma incapacidade de interpretação e leitura de mundo por parte dele. O surgimento do livro condenou a aula expositiva à morte”. O treinador (Mourinho, 2009), corroborando a aprendizagem através da dinâmica de grupo ao invés da aula expositiva, explica que, em conversa com ex-colegas universitários, “no outro dia, quando falámos lá no ISEF, chegámos à conclusão que aprendemos muito mais entre nós e nos intervalos entre as aulas”. Num programa televisivo não identificado, o psiquiatra português Daniel Sampaio reforça esta ideia através das mudanças sociais e tecnológicas das últimas décadas. Segundo Sampaio, até aos anos 80/90 as crianças cresciam perante fontes de informação limitadas e essencialmente expositivas como eram por exemplo, os poucos canais de televisão disponíveis. Após a revolução tecnológica que a Internet, os computadores, os tablets, os próprios telefones, a televisão por cabo e a sua enorme oferta trouxeram, as crianças tornaram a descoberta do conhecimento um processo de enorme interactividade. Porém, Daniel Sampaio explica que os métodos de ensino não acompanharam esta evolução e consequentemente tornou-se muito difícil manter crianças concentradas em aulas de uma ou duas horas nas quais o professor debita o conhecimento e o aluno interage e descobre pouco.

“O treinador é importantíssimo por todos os conhecimentos que poderá transmitir. Mas se fizer mal as coisas, será mais interessante juntar as crianças e deixá-las organizar a sua própria actividade. Verá que se dividirão por duas equipas e jogando descobrirão o caminho.”

(Bouças, 2013)