“Não se remata de bico!”

Não se remata de bico!” ou “Não se passa de trivela!” eram, e ainda são, exemplos de frases ouvidas no futebol de “formação”. Da bancada, e mais grave, da boca de alguns treinadores. Mais uma expressão do pensamento redutor, que em determinado momento da evolução do jogo quis passar a mensagem que apenas algumas acções individuais seriam úteis, conduziam o jogo para um mecanicismo estéril. Acções que saíam “fora da caixa” seriam condenadas e catalogadas como excessos e traços de jogadores inconsequentes. Assim, para aqueles que ambicionavam chegar ao futebol profissional e tinham essa oportunidade, ou desenvolviam estes recursos durante o seu percurso no jogo informal ou estavam condenados a serem os “operários” da equipa.

Portanto, em auto-descoberta tal como sucedia na rua, o jogo ensinava-nos outra coisa. Que qualquer acção podia ser útil e tudo dependia da sua adequação ao contexto e à situação. Se Romário não tivesse experimentado, sentido o jogo e criado o seu jogar na liberdade que a rua lhe permitia, provavelmente não tinha desenvolvido o seu remate tão característico e eficaz.

“A bola rolava expontaneamente pelas ruas da Vila da Penha, em campos improvisados ou nas «quadras» de futebol de sala. Cada porta era uma baliza, cada duas pedras marcavam o lugar de outra. Bolas improvisadas, joelhos rasgados, faltas na escola, a infância de Romário foi igual à de tantos rapazes brasileiros, que nasceram antes ou depois dele.”

(João Pedro Silveira, 2011)

“Não tem padrão

a precisão,

o exacto

depende de cada acto,

na semelhança da configuração

a dimensão técnica está no padrão,

configurando a variabilidade

que como execução

só o exacto da precisão

acerta com complexidade.”

(Frade, 2014)

Um copo meio vazio, ou demasiado cheio?

“Desmontar os absurdos que condicionam o nosso pensamento e nos acompanham, disfarçados de tópicos, preconceitos, ideais pré-concebidas, clichés, falsos paradigmas, lugares comuns e demais formas de pensamento não é tarefa fácil.”

Mateo, J; y Valle J. citados por (Moreno, 2009)

Já tocámos no assunto no passado, num artigo em que abordámos a fraca formação que o dirigente desportivo neste momento apresenta, tendo em conta o poder de decisão que carrega e subjacente responsabilidade. Porém, não é o único agente desportivo, que de uma forma geral, se apresenta nesta situação. No Futebol de Formação os pais, tendo em conta que a sua grande maioria são de áreas profissionais muito distintas, são com naturalidade outro exemplo. No Futebol Profissional, os agentes desportivos, juntam-se ao grupo. Salvaguardamos, claro, vários exemplos em todas estas funções, que começam a caminhar noutro sentido.

Colocamos ainda, num patamar idêntico ao dos dirigentes, pelo poder que manifestam e que pode até influenciar o desempenho das equipas, muitos jornalistas e “comentadores” desportivos. Profissionais, que para nós, deveriam fazer da investigação um dos seus grandes bastiões, apresentam tantas vezes um desconhecimento gritante do jogo, do treino e até da própria liderança. O argumento de apenas se deverem preocupar com o que a maioria dos espectadores procuram no jogo é deveras redutor. Na nossa opinião o jornalista e o “comentador” desportivo são, tal como os jogadores, treinadores, árbitros, etc., agentes que têm a oportunidade de mudar o jogo e a sua envolvência para melhor. Assim, desperdiçar essa condição é menosprezar a sua própria actividade e importância.

A situação já foi difundida amplamente, mas não podemos perder a oportunidade de elogiar treinadores como Luís Castro, que perante um contexto de tanta adversidade às ideias de qualidade (para nós aquelas que aproximam as equipas do sucesso), resistem, mantém-se corajosos e confiantes no seu pensamento. Luís Castro explicou claramente, a sua forma de pensar o jogo, justificando-a como forma de procurar garantir o tal trinómio estética-eficácia-eficiência, procurando portanto colocar a sua equipa mais perto do controlo do jogo e da vitória. O “pragmatismo” específico do Futebol é isto. Hoje insiste-se num pragmatismo abstracto, que ninguém sabe explicar exactamente o que é, a não ser no “ganhar”, e a verdade é que este pensamento também se estende a muitos outros treinadores. Mas nesta situação, a incompreensão do jornalista pelo discurso de Luís Castro é confrangedora.

Mas perante este cenário, se constatamos um baixo nível de conhecimento, transversal à maioria dos agentes desportivos, não estaremos então a ver a questão pela perspectiva errada?

Também. Porque por outro lado, é evidente a enorme a evolução que o jogo, o treino e a liderança das equipas registaram, resultado da qualidade que muitos treinadores portugueses hoje apresentam, colocando-os no top mundial. Simultaneamente, em todos os níveis do jogo muitos outros crescem, nas ideias e na experiência e preparam-se para mais uma vaga, quem sabe ainda melhor. Facto, valorizado ainda, pela menor dimensão do país, no número de praticantes e de equipas, comparativamente com muitos outros. Também não é assunto novo neste espaço, pois ainda noutro artigo recente, trazíamos o professor Silveira Ramos elogiando o treinador português, pelo seu conhecimento do jogo e pensamento estratégico. Hoje, em vários pontos do mundo o treinador português é visto como sinónimo de qualidade. Constitui-se como mais um “produto” português de enorme sucesso.

Perante isto, provavelmente foram os treinadores que evoluíram tremendamente, o que não teve paralelo nos outros agentes desportivos. Ou seja, não são os outros agentes que estão muito atrás, até porque o seu nível de conhecimento é idêntico noutros países, são é vários os treinadores portugueses que estão muito à frente…

“O treinador não é um resultado, mas é uma competência que tem de ser avaliada.”

(Lobo, 2014)

“Os treinadores não são bons porque ganham. Antes, ganham porque são bons.”

(Bouças, 2010)

Exercício gratuito

Publicamos mais um exercício gratuito: Saída de jogo do Guarda-Redes em “quem perde sai”

Desta vez trazemos um exercício cujo objectivo principal é o sub-momento de construção do momento ofensivo do jogo, especificamente a Saída de jogo do Guarda-Redes, a Construção pela primeira linha e a penetração da primeira linha de pressão adversária. Contudo, tem também uma preocupação com a articulação de sentido para o momento da Transição Defensiva e defesa da baliza após a perda da bola. O exercício aproxima-se de uma fase de consolidação, uma vez que tem um carácter competitivo muito acentuado, o que pode desfocalizar a aquisição destes comportamentos numa primeira fase de trabalho.

O exercício garante propensão aos comportamentos identificados, porém não condiciona para uma forma de jogar específica e sua consequente estrutura. É assim aberto ao modelo idealizado por cada treinador, permitindo diferentes formas de saída do Guarda-Redes, através de passe curto e médio, garantindo também espaço para diferentes ideias para ultrapassar a primeira linha de pressão e nesse seguimento chegar ao interior do bloco adversário, neste caso, a finalização nas balizas sobre o meio-campo. Por outro lado, no contra-exercício, a equipa que inicia o exercício a defender, pode, por sua iniciativa ou por determinação estratégica do treinador, posicionar-se num bloco médio junto ao meio-campo ou num bloco mais alto procurando desde logo condicionar o primeiro passe do Guarda-Redes. Desta forma, o exercício pode ser invertido nos seus objectivos, caso a preocupação seja o momento defensivo do jogo e o condicionamento da construção adversária, caso a mesma seja curta.

De acordo com (Manna, 2009), “sair jogando é dar prioridade ao passe desde o início da construção de jogo. O pontapé de baliza ou a participação dos defesas na construção ofensiva torna-se fundamental. Uma perda de bola na zona dos defesas centrais pode ser terrível. Todos evitam realizar o que Pep dá prioridade. Riscos que permitem, facilitar o ciclo de jogo, no qual Pep irá sempre tentar construir desde a sua baliza”. Guardiola sublinha que saindo a jogar bem, podemos chegar ao alvo jogando bem, ao contrário de um mau início de construção que torna tudo mais difícil e aleatório. E lembra que se o primeiro passe é bom, tudo é mais fácil a seguir.

“É de estética vazia

e o Futebol assim jaz…

Jogo directo nada cria

correm, correm, mas nenhum sabe o que faz.”

(Frade, 2014)

Francisco Silveira Ramos

Para os menos conhecedores do futebol português e da evolução metodológica vivenciada, o professor Francisco Silveira Ramos é sem dúvida uma figura incontornável do jogo. Durante os anos 90 e princípio do século XXI, momento em que o treino era determinado pela dimensão física, no qual quem pensava “fora da caixa” era hostilizado pelo pensamento vigente, Silveira Ramos foi um dos poucos, que com coragem, assumiu que a preocupação central do treino deveria ser o cérebro e a decisão táctica. Defendendo a “integração dos factores do rendimento”, a sua visão diferia de forma abissal do “treino integrado” muito típico no Futebol Espanhol, mas também com expressões no Futebol Português. Como sustentámos no tema de Saber Sobre o Saber Treinar, “O treino integrado e sintético” tinha na mesma como preocupação central a dimensão física, porém aqui camuflada por exercícios com bola e acções do jogo. Silveira Ramos não só anteviu outro rumo que hoje se concretiza, como formou muitos técnicos em cursos de treinadores e licenciaturas, e ainda ajudou a crescer, nas selecções jovens portuguesas alguns dos maiores talentos do futebol português. Finalmente, revelou ainda grandes preocupações com o Futebol de Formação e o desaparecimento do Futebol de Rua.

Assumimos que o professor Francisco Silveira Ramos foi decisivo na forma como hoje vemos o jogo e o treino e dos que mais nos inspiraram a criar este espaço. Apesar do facto passar despercebido à maioria da comunicação social, Portugal pode-se orgulhar em contar com alguns dos maiores pensadores deste jogo, que contribuíram para a tal ruptura de conhecimento que já descrevemos. E sem dúvida que Silveira Ramos é um deles. Deixamos várias ideias do professor num recente programa televisivo, que dado o conhecimento dos intervenientes e das ideias abordadas, fugiu à norma do panorama televisivo português.

O Treinador Português:

A dimensão estratégica:

O treinador de “formação”:

O jogo mecânico e a música:

A crescente riqueza comportamental de cada função e a repercursão na dimensão física:

A era das dinâmicas:

Jogo curto e apoiado:

Criatividade defensiva:

Individualização do treino:

“Cabe-nos encontrar as metodologias que permitam que o processo de treino se adapte a essa realidade, adaptando os praticantes às exigências da competição.

Francisco Silveira Ramos, 2003

Intensidade no Futebol IV

Tal é profundidade do pensamento analítico na nossa cultura que é extremamente difícil a compreensão do paradigma da complexidade. A intensidade específica do jogo de Futebol é um bom exemplo, e como tal temos recorrido a este tema com insistência.

Hoje trazemos uma acção individual ofensiva, mais concretamente um drible. Não analisando a decisão de o efectuar, olhamos para acção concreta que acabou por resultar em sucesso, uma vez que provocou uma falta adversária numa situação de 1×2 e posteriormente de 1×3. Na perspectiva tradicional, ser intenso aqui significava acelerar, ininterruptamente, a execução e o deslocamento. A acção que que se mostrou eficaz perante uma situação desfavorável, para além de mudanças de direcção, implicou também temporizar, acelerar, temporizar, e novamente acelerar. No fundo na perspectiva complexa da intensidade, a específica do jogo de futebol, fazer bem, no tempo certo.

O treino integrado e sintético

Sub-tema de História do treino de Futebol, situado entre Periodização Física no Futebol, e a A ruptura epistemológica, publicamos o O treino integrado e sintético. Referimos que apesar da adição de algumas citações mais recentes, grande parte destes textos sobre a história do treino do futebol foram redigidos há alguns anos. No entanto, na nossa opinião, não só continuam actuais, como trata-se de uma evolução que se estende muito além do futebol, e que ainda não foi compreendida por muitas pessoas.

Estrutura actual de Saber Sobre o Saber Treinar.

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Exercício gratuito

Publicamos mais um exercício gratuito: Construção em bloco médio e defesa de duas balizas

Trata-se de um exercício que procura dar propensão à organização ofensiva, especificamente num momento de construção mais perto do meio-campo adversário e perante uma equipa que se posiciona, no seu momento defensivo, num espaço médio ou baixo. A propensão ao objectivo é garantida não só pela forma como o exercício é reiniciado, como também pela ausência de pontapés de baliza ou cantos. Anular os lançamentos laterais garantirá uma ainda maior propensão. Por outro lado, ter que defender duas balizas sem Guarda-Redes, isto na progressão máxima do exercício, conduzirá a que a equipa que inicia o exercício em construção, dê maior segurança à sua posse e circulação de bola, de forma a evitar a sua perda e difícil defesa das duas balizas. Porém, quando isso suceder, a equipa terá que reagir colectivamente, com qualidade e determinação à perda da bola, evitando uma imediata finalização do adversário.

Deste modo, ao articular no objectivo dois momentos de jogo diferentes, o exercício cumpre o princípio metodológico da Periodização Táctica – a Articulação de Sentido.

Segundo (Maciel, 2011), a Articulação de Sentido, “trata-se de um conceito que vai precisamente ao encontro do cerne do pensamento sistémico. A ênfase no pensamento sistémico é colocada nas relações, o segredo está nas conexões. Ou seja, o sucesso do processo de treino tem a ver com isto, depende muito do modo como eu articulo as coisas, isto é, como as relaciono e partir daí teço a minha teia dinâmica. A Articulação de Sentido tem precisamente isto subjacente e tem a ver com a conexão coerente que se faz entre as partes implicadas no processo, e vale a nível da operacionalização dos Princípios Metodológicos e a nível da manifestação e vivenciação dos princípios de jogo. Portanto, a matriz conceptual para manifestar fluidez na sua concretização deve revelar internamente uma determinada articulação de sentido, que sendo coerente permite o emergir de uma realidade consistente, um Sentido, o nosso jogar, ou o sentido que queremos dar ao nosso jogar.”

Exercício gratuito

Publicamos mais um exercício gratuito: Duas situações de criação sobre linhas de finalização.

Desta vez trazemos um exercício colectivo, no nosso entender, principalmente direccionado para o sub-momento ofensivo de criação e para o sub-momento da transição defensiva: a reacção à perda da bola. No entanto, progredindo o exercício e solicitando que mais defensores joguem no seu meio-campo em organização defensiva, o exercício passará a dar foco também a construção. Por outro lado, com uma equipa técnica alargada, numa visão mais complexa do trabalho, poderemos também dar foco ao “contra-exercício” e portanto aos outros momentos: a organização defensiva e transição ofensiva.

Na forma como apresentamos cada exercício no website, não publicamos a classificação que atribuímos aos mesmos. Esta classificação tem para nós em conta critérios que consideramos decisivos, como são a aproximação que o exercício garante à realidade competitiva e a propensão que dá aos objectivos propostos. Isto para dizer que este exercício acaba por não garantir uma grande aproximação no momento de organização ofensiva, uma vez que lhe estão retirados alguns momentos de criação e a finalização. Um elemento fundamental do jogo não está presente: a baliza. Contudo, se é pretendido um foco maior e maior propensão a acções de criação antes da grande-área adversária, pode-se constituir como parte de um caminho. Simultaneamente permite espaço para o trabalho específico dos Guarda-Redes nas grandes-áreas, ou para outras estações de exercícios, como por exemplo de finalização de cruzamentos ou de marcação de pontapés de canto. Assim, uma vez mais emerge como decisivo no trabalho a determinação de um rumo… para nós o Modelo de Jogo Idealizado e os objectivos traçados para cada sessão. Depois, o conhecimento do jogo, a liderança, a criatividade do trabalho, entre outros aspectos, para garantirem uma máxima qualidade.

A ruptura epistemológica

Sub-tema de História do treino de Futebol, e na continuação da Periodização Física no Futebol, publicamos A ruptura epistemológica. Referimos que apesar da adição de algumas citações mais recentes, grande parte destes textos sobre a história do treino do futebol foram redigidos há alguns anos. No entanto, na nossa opinião, continuam actuais, e um tema que não está claro para muitas pessoas.

Estrutura actual de Saber Sobre o Saber Treinar.

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Um golo rico para análise

O golo que trazemos, será identificado por muitos como consequência de um contra-ataque. Compreensível para quem não assistiu ao início da situação, um lançamento lateral para o Manchester United, como comprova uma das repetições. Ou seja, não partiu de uma recuperação de bola, logo não estamos perante um contra-ataque. Estamos sim, na presença de uma situação de ataque rápido, que consiste em acelerar acções de progressão, portanto acções na sua maioria de sentido vertical do campo, perante espaço(s) existente(s). A confusão entre contra-ataque e ataque-rápido é um clássico na análise dos jogos, mas não é o assunto que trazemos hoje.

Neste caso a situação evidencia uma fraca organização defensiva de quem está a defender um lançamento lateral. Não há uma cobertura defensiva adequada ao defensor que pressiona a linha de passe para Wayne Rooney. Depois, a má abordagem do defensor e a qualidade individual do inglês apesar do seu desenquadramento com a baliza adversária, resolvem o 1×1, ficando este com espaço para conduzir e progredir.

Num primeiro momento, sem percebermos o início da situação, chamou-nos a atenção a decisão de Rooney após o seu enquadramento com a baliza adversária. O inglês encontra-se sem apoios próximos, percebe que um defensor vai recuperar a contenção antes que consiga fixar um dos três defensores da última linha adversária, o que tornará mais difícil a possibilidade de ser ele a comandar o ataque. Assim, dificilmente conseguirá conduzir para o corredor central, no qual como em situação de contra-ataque, deverá ter mais opções para resolver a situação. Mas Rooney, num passe de alguma dificuldade dada a distância e contexto, com um risco elevado de atrasar a progressão, consegue colocar a bola em Ibrahimovic para que este lhe dê continuidade no corredor central, com mais soluções. Depois o inglês desmarca-se entre a última linha, e sendo certo que beneficia da queda de um adversário, garante porém uma solução de último passe entre a última linha adversária, que acaba mesmo por ser a opção do sueco para resolver a situação. Este, pelo meio, e também com muita qualidade, fixa um dos defensores atraindo ainda atenção das suas coberturas defensivas, simplificando uma situação de inferioridade numérica, mas que beneficiava de espaço. Em última análise do momento ofensivo, Ibrahimovic e os outros dois companheiros nesta situação, mostram uma vez mais que o número – as relações numéricas – são apenas uma dimensão do todo complexo que é o jogo, sendo o espaço e o tempo outras dimensões, também elas de grande influência nas decisões tomadas.

Mas por outro lado, podemos analisar o comportamento defensivo do Feyenoord. Já o fizemos em relação ao início da situação. Depois, no princípio que nós chamamos a “defesa do contra-ataque”, mas que aqui, pela situação identificada antes se transforma numa “defesa do ataque-rápido”, se a equipa holandesa revela uma contenção interessante no início, não precipitando a tentativa de intercepção da bola e mantendo um posicionamento zonal inicial de GR+2+1, na sequência do movimento de Mata acaba por revelar referências individuais que levam a um desposicionamento dessa estrutura. Igualmente grave, não pára a contenção grupal no local ideal: a linha da grande área. Defendemos que aí, perante o adversário com bola no corredor central, deverá estar o limite referência para as coberturas defensiva e restante última linha, não devendo nenhum defensor entrar na grande área, obrigado o atacante com bola a tomar uma decisão. Isto porque caso contrário permitirá uma maior aproximação do atacante com bola à baliza e possibilitará um passe para outro atacante posicionado no interior da grande-área. Caso contrário, todos os atacantes têm de se posicionar fora da mesma, tirando os defensores também partido da regra do fora-de-jogo. Finalmente, o interior da grande área deverá ser espaço do Guarda-Redes, que no fundo se constituirá como uma derradeira cobertura defensiva em situação de último passe.

Esta análise leva-nos a outra questão. A análise da acção de uma equipa e da “contra-acção” do adversário. Este termo provém de outro problema deste mesmo plano, o exercício e o contra-exercício. Se num exercício competitivo de treino, o objectivo do mesmo estará no comportamento de um grupo / equipa, do outro lado encontra-se o outro grupo / equipa no oposto momento do jogo, e com o qual a equipa técnica também se deverá preocupar, mesmo que pretenda o seu erro. Aliás, mais ainda se pretende esse mesmo erro e portanto se o exercício dá propensão a que isso aconteça. Em qualquer situação do jogo coloca-se o mesmo problema, que desagua na eterna questão: onde termina o mérito do ataque e começa o demérito de quem defende. É sem dúvida um dos maiores desafios que o jogo levanta aos técnicos. Uma possível resposta, poderá estar na identificação de eventuais erros de Organização Defensiva no Modelo de Jogo proposto. Caso estes não sejam fáceis de identificar, deverá ser dado mérito ao ataque. Mas neste caso, é óbvio que estamos perante uma avaliação muito dependente do contexto e da riqueza das ideias tácticas de cada treinador.

Na situação anterior, há sem dúvida mérito ofensivo do Manchester United, contudo são para nós facilmente identificáveis erros defensivos do Feyenoord, que apresentando outros comportamentos tornaria muito mais difícil a resolução ofensiva da situação aos ingleses.

A periodização física no Futebol

Sub-tema de História do treino de Futebol publicamos A periodização física no Futebol.

Estrutura actual de Saber Sobre o Saber Treinar.

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Filme

Filme - Arrival (2016)

Com naturalidade, a primeira questão será que ligação um filme, eminentemente de ficção científica, tem com o futebol? A resposta está desde logo na essência do argumento e na perspectiva de que existe uma relação entre tudo. De que a realidade, ou melhor, a realidade de cada um de nós, é toldada pela interacção de uma infinidade de fenómenos, muitos dos quais, provavelmente mesmo a maior parte, que não compreendemos dado o nosso momento evolutivo. Tempo, espaço, linguagem, sentimentos. Arrival procura portanto explorar a complexidade de forma incrivelmente profunda.

Edgar Morin, um dos principais pensadores da complexidade, citado pela (Wikipédia, 2012) descreve que “à primeira vista, a complexidade (complexus: o que é tecido em conjunto) é um tecido de constituintes heterogéneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efectivamente o tecido de acontecimentos, acções, interacções, retroacções, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal. Mas então a complexidade apresenta-se com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza… Daí a necessidade, para o conhecimento, de pôr ordem nos fenómenos ao rejeitar a desordem, de afastar o incerto, isto é, de seleccionar os elementos de ordem e de certeza, de retirar a ambiguidade, de clarificar, de distinguir, de hierarquizar… Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de a tornar cega se eliminarem os outros caracteres do complexus; e efectivamente, como o indiquei, elas tornam-nos cegos”. A ideia de que o futebol, à sua dimensão, pela infinidade de interações que promove, constitui-se como um fenómeno que representa essa complexidade, parece-nos hoje clara. Ideia que durante muito tempo, e ainda hoje, é repelida pela natural dificuldade na sua compreensão, consequência da forma como foi construída a nossa consciência. Coincidentemente, este será um tema que abordaremos em breve.

No mesmo plano, das múltiplas ideias que o filme aborda, a perspectiva que deixa sobre a comunicação e a linguagem parece-nos muito interessante pensando no futebol, genética, influência do meio, pensamento divergente e talento. Fomos educados, aprendemos e crescemos sob perspectivas lineares e redutoras da realidade. Consequentemente, o nosso pensamento e consciência, seguem a mesma linha. Assim, na abordagem do filme, as linguagens comuns são também elas construções desse pensamento linear e condicionam a nossa forma de pensar. Uma linguagem complexa, como a imaginada no argumento, fazendo interagir diferentes fenómenos e valências, estimularia o nosso cérebro, levando-o a outra percepção da realidade. Uma consciência guiada por sentimentos, superando as barreiras do espaço e do tempo seria com certeza um passo mais à frente na nossa evolução.

Esta ideia lembrou-nos uma parte de uma das apresentações de Sir Ken Robinson. Quando demonstra que à nascença todas as crianças têm uma enorme apetência para o pensamento divergente, e que a sua aquisição cultural, vai progressivamente condicionando negativamente e subtraindo esta qualidade.

As implicações desta ideia no futebol são tremendas. Para já deixamos ao “pensamento divergente” de cada um de vocês, o seu desenvolvimento. No entanto, lembramos a eterna questão sobre influência genética e influência do meio no talento. A perspectiva que o filme traz e o pensamento de Robinson empurram-nos cada vez mais para o papel decisivo do meio no desenvolvimento do talento no jovem praticante de futebol, nomeadamente naquele que está a ter os primeiros contactos com o jogo. Ideia reforçada pela nossa convicção na importância do papel da decisão e criatividade no jogo e sobre a qualidade de execução na sua profunda ligação à decisão e a diferentes estados emocionais. Esta perspectiva refuta assim a codificação genética das competências técnicas, assumindo-as portanto como uma construção cultural.

“Cada vez maior o convencimento de que os conceitos de que normalmente nos servimos para conceber a «REALIDADE» estão mutilados e conduzem a acções inevitavelmente mutiladoras.”

(Frade, 1985)