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Intensidade

“Qualquer pessoa que se tenha concentrado tão profundamente que um lampejo de insight ou inspiração subitamente a visitou conhece a quietude. Qualquer pessoa que tenha dado o seu melhor a algo, sentido orgulho na conclusão, em saber que não deixou absolutamente nada em reserva – isso é quietude. Qualquer pessoa que tenha avançado com os olhos da multidão sobre si e então despejou todo o seu treino num único momento de performance – isso é quietude, mesmo que envolva movimento activo.”

(Ryan Holiday, 2019)

Um contra-ataque 3×2+GR

“A sorte está nos detalhes.”

(Jorge Maciel, 2017)

Entre as muitas situações de jogo que se passaram no passado fim-de-semana, destacamos esta, que ocorreu no jogo entre Wolverhampton e Newcastle. Trata-se de uma situação de contra-ataque 3×2+GR, portanto, na nossa sistematização do jogo, situa-se no momento Transição Ofensiva, sub-momento Contra-Ataque. A pertinência da mesma prende-se com a elevada taxa de insucesso com que esta situação é resolvida no jogo, e simultâneamente, com o potencial que possui para que a equipa crie uma extremamente favorável oportunidade de finalização.

Trazendo a realidade do Futsal, na generalidade, o contra-ataque 3×2+GR, é uma situação que é resolvida de forma muito mais eficiente, e consequentemente, mais eficazmente. A explicação parece-nos simples: há conhecimento para a resolver e é-lhe dada muita relevância no treino. E provavelmente, é-lhe dada essa importância porque existe uma consciência dos treinadores que a situação se repete muitas vezes ao longo do jogo. No Futebol, ao invés, não é uma situação frequente. Porém, se por norma, nos jogos de Futsal sucedem mais golos que nos de Futebol, então, no caso do Futebol, uma boa resolução de apenas uma situação, pode-se tornar decisiva no desfecho de um jogo. Foi muito provavelmente, o que se passou neste jogo.

Este é mais um exemplo da enorme complexidade do jogo de Futebol. Mais número (jogadores), mais espaço, mais tempo, tornam-no rico em diferentes situações de jogo, que elevam o caos, e consequentemente a sua aleatoriedade. Pegando no exemplo da situação de contra-ataque que trazemos neste artigo, se num jogo de Futsal de GR+4×4+GR, o contra-ataque já assume muitas configurações diferentes, um jogo de GR+10×10+GR irá exponenciar a variabilidade desta situação. Assim sendo, o seu treino torna-se também muitíssimo mais complexo. No entanto, e pensando de forma geral, a capacidade de adaptabilidade e o limite ao desgaste são similares para ambos os desportos, porque o homem que o joga é o mesmo. Torna-se portanto decisivo para o treinador, não só o conhecimento do jogo e do treino, mas também a selecção de conteúdos e a sua dose, para que de facto se crie a adaptação mais favorável ao melhor desempenho.

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  1. No primeiro momento em que o vídeo pára, identificamos oportunidade para Diogo Jota acelerar a condução e fixar um dos dois defensores. Optando pelo mais próximo do eixo central do campo, permitiria mais espaço e melhor enquadramento de finalização ao companheiro de equipa à sua esquerda. Fixando este defensor, Jota deveria, simulando um drible, a finalização ou a condução de penetração entre os dois defensores, provocar o defensor de forma a que este trocasse os apoios e assim surgisse a oportunidade para realizar o último passe para as suas costas, deixando-o em enormes dificuldades para recuperar e garantir contenção ao segundo atacante. Este ficaria assim, numa condição privilegiada para finalizar com sucesso.
  2. Precipitando o passe para o companheiro à sua esquerda, possibilidade que o defensor trocasse facilmente a contenção para Dendoncker, Diogo Jota toma depois uma segunda decisão muito boa, que acabaria por corrigir a primeira, através de uma desmarcação circular pelas costas do companheiro, garantindo-lhe assim, uma solução de último passe fácil que colocaria Jota num enquadramento muito favorável de finalização. “Bastava” que para isso, Dendoncker temporizasse, permitindo que o companheiro completasse o movimento, e ao mesmo tempo que fixasse o defensor. Ao contrário, o belga optou por um passe longo para Raúl Jiménez, de mais difícil execução e recepção, e que simultaneamente permitiria tempo, não só para que os dois defensores ajustassem a contenção / cobertura, como por outro lado, para que mais defensores recuperassem defensivamente, perdendo-se assim uma situação, de número e espaço, altamente favorável.

O treinador português Paulo Fonseca, entrevistado por (Rosmaninho, 2015) descreve o seu antigo treinador Jorge Jesus como extremamente exigente e preocupado com o detalhe, sendo as desmarcações um bom exemplo. Paulo Fonseca refere que Jesus faz o jogador pensar, o quando, o como e onde é que tem de receber a bola, para onde é que se tem de movimentar, em que momento, em que timing, e isso faz toda a diferença em certos momentos do jogo. Eu acho que a identificação deste detalhe não está ao alcance de todos”. Está patente que o conhecimento do jogo evoluiu abruptamente nos últimos anos. O autor (Romano, 2007), aludindo-se a um pensamento com mais de 15 anos, refere que “Queiroz (2003a) indica que, nos níveis de maior exigência, o treino evolui ao nível da complexidade e da especificidade do detalhe”. Na mesma linha de pensamento surge (Esteves, 2010), descrevendo que “quanto maior o nível de exigência, menor é a diferenciação qualitativa, e mais importância assume o elemento «detalhe»”. Também (Mourinho, 2010), descreve que “quando estamos a trabalhar algum exercício, estamos a trabalhar todas as vertentes. O mínimo detalhe entra no mínimo exercício, mesmo que possa parecer um exercício simples”. Porém, o autor (Campos, 2008) ressalva que a riqueza que deve surgir no detalhe deve ter sempre como pano de fundo os princípios de jogo“. Torna-se, portanto, cada vez mais importante dominar o detalhe, no enquadramento específico de um Modelo de Jogo, e fazê-lo emergir no treino, rentabilizando ao máximo cada sessão.

“O jogo de qualidade tem demasiado jogo (detalhe, imprevisibilidade) para ser ciência mas é demasiado científico (organizado) para ser só jogo.”

(Frade, 2003) citado por (Romano, 2007)

Qualidade de execução ou de decisão? E a Intensidade.

Este golo marcado por Nicolás Gaitán levanta uma questão colocada muitas vezes quando se procura identificar e descrever a qualidade de um determinado jogador. Nesta e em situações similares, foi prontamente elogiada a “qualidade técnica” do argentino, portanto a sua qualidade de execução.

Em primeiro lugar é fundamental entender, que tal como noutro qualquer fenómeno complexo a relação entre táctica e técnica, ou seja, entre decisão e execução, é permanente e interactiva. Elas não existem separadas na acção de jogo, e afirmá-lo é incorrer no mesmo erro epistemológico que dividiu o treino nos diferentes “factores”, é no fundo também errar como Descartes, quando postulou o dualismo corpo / mente. Assim, um jogador que apresenta qualidade, deve-a às duas dimensões e sua interacção. Importa ainda acrescentar que são qualidades estruturadas também pelas dimensões físicas e mentais do indivíduo em causa. Porém, em algumas acções é perceptível a prevalência de uma delas no seu sucesso.

Neste caso, é fácil perceber que Nicolás Gaitán não protagonizou nenhuma acção técnica de difícil execução. Recebe de forma orientada para a baliza com um pequeno toque, e perante a oposição de dois defensores e do guarda-redes dá mais quatro pequenos toques, tirando todos do caminho, finalizando no 6º toque, num “passe” para a baliza. Talvez as acções técnicas mais complexas tenham sido a simulação na recepção e uma pequena simulação de finalização no meio da acção. Aqui, o que fez a diferença foi o timing de cada toque na bola e de cada gesto motor, portanto, as sucessivas decisões perante o envolvimento. Segundo (Bouças, 2012), jogadores fortes na tomada de decisão são, por exemplo, “jogadores que não se precipitam” e que sabem definir com exactidão o timing das suas acções, e que percebem os momentos em que devem segurar e esperar, ou progredir e investir”.

Recordando um texto da autora e treinadora Marisa Gomes de 2011, “as relações e interAcções dos jogadores têm lugar num instante que é vital. A passagem contínua e invariável do tempo faz com que cada instante tenha uma singularidade que comporta em si a dinâmica que podemos fazer do tempo. Obviamente que falamos da temporalidade do tempo, aquela que nos permite fazer dele uma arte. O tempo de jogo refere-se ao tempo regulamentar. A temporalidade refere-se àquilo que queremos fazer com o decorrer do mesmo”. Segundo a autora, “ter capacidade para interagir tendo em conta as circunstâncias é que torna os seus intervenientes artistas. Sobretudo se isso convergir para aquilo que se pretende. Adequar as escolhas é aquilo que se reconhece nos melhores jogadores e nas melhores equipas. Aceder a essa capacidade exige um trabalho dirigido, concentrado e objectivo para aquilo que se pretende. Deste modo vamos sentindo que as escolhas se fazem nos instantes apesar de serem projectadas por aquilo que foram as vivências anteriores. Então, jogar é manusear os instantes preenchendo-os com um sentido, através das intencionalidades que se expressam nos movimentos. De forma espontânea, os melhores adoram jogar para o poder fazer. Antecipam, simulam, escondem, provocam e Sobredeterminam o seguimento das circunstâncias. A qualidade do tempo ganha assim UM sentido que não se desenvolve sempre do mesmo modo. Concorrer para a qualidade fundamental dos jogadores é educá-los desde muito cedo para isso. Desde quando? Desde sempre!”.

Johan Cruyff, citado por (Grove, 2015) terá defendido que “técnica não é conseguir dar 1000 toques na bola. Com treino qualquer um consegue fazer isso. Depois poderá trabalhar no circo. Técnica é passar a bola ao primeiro toque, com a velocidade certa, e para o pé certo do companheiro de equipa.” Apenas preferimos qualidade individual” ao invés de “técnica” e trocamos“ao primeiro toque”, por no momento certo“…

Esta reflexão leva-nos a uma segunda questão, a qual está hoje na “moda”: a Intensidade. A mesma foi sempre associada à qualidade das acções, porém tem sido também, insistentemente associada ao rápido deslocamento, à velocidade de execução, ao pressing, à agressividade física, etc., portando uma Intensidade alicerçada na visão física do jogo. Contudo, se o pensamento complexo leva-nos a uma interpretação e visão multidimensional do jogo e do treino, por arrasto, conceitos como a Intensidade necessitam também de uma nova abordagem, igualmente multidimensional.

Na situação aqui ilustrada, impondo a tal “intensidade físico-técnica”, Gaitán precipitaria a sua acção para uma rápida finalização ou drible, não descobrindo, como o fez, a melhor decisão. Decisão essa que incluiu temporizações em que simplesmente não executou, mas que aumentou a probabilidade de êxito na conclusão da acção. Portanto, não ter agido, naquele envolvimento, revelou-se melhor do que fazer muito ou do que fazer rápido. Deste modo, mantendo a Intensidade associada à qualidade das acções, porém enquadrando-a numa visão complexa do rendimento, Intensidade poderá ser nalguns casos, não se deslocar e executar? Sim, se ao contrário de fazer muito e depressa, for entendida como fazer o necessário para fazer bem.

Iremos em breve, abordar de forma mais profunda a Intensidade.

“Temporizar é muito importante. Para mim é funtamental. Decidir bem.”

(Vítor Pereira, 2014)

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