Tag Archive for: cultura de jogo

“eu não conheço cultura de um gajo só”

“Não somos tanto como os italianos, mas também não somos tanto como os espanhóis. Estamos ali a meio-caminho.”

“O balneário desta seleção surpreendeu-me muito quando conheci o futebolista português. Ele é muito competitivo, gosta de ganhar, sabe como ganhar, sabe controlar os momentos importantes de um jogo. Mas o que me surpreendeu ainda mais é que ele gosta de ter informação tática. São duas variantes que antes não tinha encontrado no mesmo balneário de forma dominante. Normalmente, ou há uma equipa muito competitiva ou há uma equipa que gosta de pensar muito no jogo e na tática. Adicionalmente, há um sentimento de orgulho, de responsabilidade… Há uns sentimentos que são mais visíveis nas seleções sul-americanas do que nas europeias. Essa combinação de características dominantes, competitividade, apreço por informações táticas e a responsabilidade de querer jogar pela seleção, surpreenderam-me imensamente.”

(Roberto Martínez, 2023)

Equipas históricas

Publicamos um novo sub-tema na área Conhecimento do Jogo.No âmbito da Cultura de jogo, apresentamos Equipas históricas.

“As maiores coisas na vida têm sido alcançadas por pessoas que, no início, teríamos considerado loucas. E, no entanto, se não tinham tido essas ideias malucas, o mundo teria sido mais estúpido.”

(Arsène Wenger, 2009)

Cultura de jogo

Publicamos um novo tema na área Conhecimento do Jogo. Abordamos a Cultura de Jogo.

Deixamos o primeiro parágrafo:

“Segundo a (Wikipédia, 2016) “a cultura é o conjunto de expressões de uma sociedade, e como tal o futebol não está isento da mesma”. Também (Fernando Cardoso, 2006) aponta isso mesmo na sua tese monográfica ao referir que “poderemos concordar com Figueiras, L (2004) quando este salienta que as concepções e modelos de jogo são condicionados pela cultura e valores vigentes na sociedade em que se insere e assim, se a cultura dos povos se altera ao longo dos tempos, também esses necessariamente se alteram. Deste modo podemos verificar que esta dialéctica (ou interacção) entre a cultura e a cultura de jogo também se verifica”. Os autores (Juan Bordonau & José Villanueva, 2018) complementam referindo que “a cultura não é física; não é formada apenas por coisas, pessoas, ações ou emoções. É antes uma forma de organizar todos esses factores. É o formato das coisas que as pessoas têm na mente, modelos de como percebem, como se relacionam e como interpretam. (Goodenough, W. 1957)”.”

“Grande coisa é um jogar

ao acontecer faz-se cultura,

a dimensão táctica a que chegar

é identidade duma postura.”

(Vítor Frade, 2014)

 

“O jogador português gosta de ter clareza táctica, gosta de ter informação táctica.”

“A geração que está, e quando digo geração estou a pensar nos que têm 17 e 39 anos, é formada por jogadores com cultura tática tão grande que quando falam é uau! É incrível. Têm uma linguagem, conhecimento e uma mentalidade completamente diferente. Tem a ver com isso: cresces com uma cultura, com uma paixão pelo jogo tão grande que este tem de ser o resultado. E isso tem de ser incentivado.”

(Vítor Matos, 2024)

Roberto Martínez toca nas duas principais qualidades que faltavam ao “jogador português” para darmos o salto competitivo colectivo e nos aproximarmos dos troféus. A paixão pelo jogo não é uma delas porque essa, desde que há memória do jogo em Portugal, sempre por cá existiu.

A transposição da competitividade que manifestávamos entre nós, não só noutros contextos culturais, mas também no jogo da “rua” para a competição formal e principalmente, internacional, fez crescer o jogador português para o patamar dos melhores. Dessa forma, hoje, não é surpresa para nós termos portugueses nos melhores clubes e equipas do mundo e que a nossa selecção seja reconhecida como uma das melhores.

Ainda em plenos anos 80’s e início dos 90’s o nosso Futebol vivia um clima de desconfiança no seu potencial, de conformismo com a nossa pequenez geográfica e populacional e de nos posicionarmos num segundo plano internacional no âmbito do jogo. Na realidade, não só do jogo, mas aqui o nosso foco vai para o Futebol. Vitórias sobre as “poderosas” Alemanha e Inglaterra, por exemplo, eram surpreendentes e celebradas como feitos dificilmente igualáveis. Hoje, como o nosso seleccionador e jogadores nos transmitem, são exigência. Dos próprios. A mudança cultural foi então enorme.

Um dos grandes, se não o principal momento desta mudança, foi o trabalho de Carlos Queiroz e Nelo Vingada com as selecções jovens no final da década de 80. De imediato foram colhidos frutos competitivos em campeonatos jovens, mas perante o fulcro do Futebol de Formação, não seriam esses os mais importantes. Passados alguns anos, essas gerações, na equipa principal portuguesa, mas também em vários grandes clubes por toda a Europa alcançaram um sucesso continuado. Esse sucesso influenciou e contagiou quem veio a seguir.

Mas a mentalidade não cresceu no vazio. Para além da criação de grupos coesos e fortes, Queiroz e Vingada, estimularam qualidades e passaram, de forma intensiva, ideias e conhecimento sobre o jogo. Além disso produziram conhecimento para terceiros, que ainda hoje se revela actual. A partir daí, clubes, universidades, jogadores e apaixonados pelo jogo na comunicação social e mais tarde na internet, contribuíram para a revolução a que assistimos e da qual hoje colhemos frutos. Como consequência cresceu a confiança nesse género de processo. Federação e clubes investiram, organizaram-se e proporcionaram contextos de qualidade aos jovens jogadores. Ainda que na maioria dos clubes o processo esteja a ser errático, lento e duro.

O jogador português passou, não só de apaixonado por esse conhecimento, como convicto da sua importância na obtenção de sucesso. A esse conhecimento se tem chamado táctica. Porém, ela não se restringe ao conhecimento teórico, a ideias, ou se reduz ao sistema ou mesmo princípios de jogo. A dimensão táctica que nos elevou ao actual patamar, como defende o professor Vítor Frade, não é apenas uma dimensão. É muito mais do que isso. É uma supra-dimensão. O que significa que engloba todo o comportamento do jogador e da equipa. Comportamento que emerge da interação de qualidades físico-motoras, recursos técnicos, conhecimento do jogo, aptidão emocional e / ou mentalidade. O que isto significa, é que o conhecimento do jogo entre outras qualidades, potenciou o sucesso e consequentemente fez crescer a confiança. E de forma geral, a mentalidade. E desse modo, tal sucesso provocou mais procura por conhecimento. Tal como Roberto Martínez aponta. 

Hoje, o apetite do jogador português por informação não é uma questão de moda. É, junto das outras qualidades, um reconhecimento do caminho que nos levou ao sucesso que actualmente vivemos. É esse todo, a táctica, enquanto supra-dimensão, ou por palavras mais simples, o… “jogar” de… sucesso que jogadores e treinadores perseguem, que faz com que um país tão pequeno como também defendeu o nosso seleccionador na mesma entrevista, se torne incrível e único no mundo do ponto de vista da produção de talento para este jogo. Essa vantagem não é portanto genética, é… cultural!

“O indivíduo todo, inteiro

emerge da cultura táctica

que sustenta o bom jogo, primeiro

no jogar o jogo como prática!”

(Vítor Frade, 2014)

Memórias do Futebol de Rua. O golo ao ângulo.

A infância e adolescência imprimiu-nos memórias incríveis. Num plano de imaginação e criatividade infindável, as brincadeiras e os jogos que realizávamos na rua tinham um poder fenomenal para nos fazer sonhar. O futebol, culturalmente o jogo de maior impacto na maioria das sociedades, absorvia muitas crianças nesses contextos, fazendo-as visualizar feitos incríveis no próprio jogo da rua. Porém, em paralelo, também um dia num grande estádio numa final de uma grande competição.

Mas essa imaginação levava-nos a sonhos concretos. Na galeria dos mais notáveis, tínhamos o golo em pontapé de bicicleta, o golo em em remate “de primeira”, a jogada em que driblávamos todos os adversários e marcávamos ou assistíamos, a intercepção imperial sobre a linha de golo, o desarme limpo em tackle a um adversário que se preparava para ficar isolado, o túnel perfeito, o drible que desorientava por completo o adversário, a defesa do guarda-redes completamente em voo que interceptava um remate extraordinariamente colocado, e claro está… o fenomenal golo ao ângulo da baliza. Indiscutivelmente um local místico do campo de futebol. Símbolo da perfeição, de lendas e de mitos.

O golo ao ângulo da baliza ou lá próximo, era até antecedido por uma sensação de sucesso na execução de quem rematava, imediatamente após a bola sair do seu pé. Era como que uma espécie de premonição do que estava para acontecer. E nesse caso, no mínimo a bola encontrava o poste ou a barra da baliza, o que não providenciando eficácia, seria na mesma espectacular.

Na rua, ou no jogo de rendimento, este golo lendário promove uma sensação de admiração e êxtase entre jogadores e adeptos, pois é visto como um momento de pura genialidade. Assim, é muitas vezes lembrado e revivido, tornando-se parte da história e da mitologia do jogo.

O Manchester United de Matt Busby… o regresso

Na sequência da primeira publicação sobre a extraordinária história do Manchester United de Matt Busby, publicamos a segunda parte.

O Manchester United de Matt Busby foi um exemplo inspirador de liderança e valores humanos, especialmente perante o terrível acidente aéreo que a equipa, o treinador e o clube sofreram em 1958. O desastre de Munique, como ficou conhecido, foi uma tragédia que abalou todo o universo do futebol, tirando a vida de vários jogadores e membros da equipa técnica, além de deixar muitos outros gravemente feridos. Um deles, o próprio treinador.

Apesar de destroçado, Busby foi um exemplo de enorme coragem. O que se seguiu ao desastre mostrou a resiliência, a solidariedade e a coesão que caracterizavam o Manchester United sob a sua liderança. Apesar da devastação, Busby e o clube recusaram-se a desistir. Com determinação e coragem, reconstruíram a equipa e continuaram a lutar em honra daqueles que perderam as suas vidas. Este período difícil na história do Manchester United demonstrou não apenas a força do carácter de Matt Busby como líder, mas atrás disso, o seu profundo compromisso com os valores humanos. Ele não dirigiu a equipa apenas com competência e visão, mas também cuidou dos seus jogadores como uma família, mostrando empatia, compaixão e apoio inabalável.

O legado deixado por Matt Busby e pelo Manchester United após o desastre de Munique vai muito além do futebol. É um testemunho inspirador de como uma liderança virada para as pessoas pode superar até as adversidades mais terríveis. O Manchester United de Busby permanece um símbolo de esperança e perseverança, lembrando-nos da importância de nunca desistir, mesmo nos momentos mais sombrios.

“O sucesso nunca é permanente, e o fracasso nunca é total. O que importa é o coração que colocamos em cada jogo.”

Matt Busby

O Manchester United de Matt Busby

No passado dia 6 de Fevereiro fizeram-se 66 anos desde o terrível desastre aéreo que a então equipa do Manchester United sofreu, no qual perderam-se 23 vidas, das quais 8 eram jogadores da primeira grande equipa de Matt Busby. Reconhecido como um incrível líder de valores humanos excepcionais, Busby ergueu-se das lesões e tremenda amargura sentida e voltou a reconstruir a equipa levando-a novamente ao sucesso. Sucesso que ficou marcado com a conquista da Taça dos Campeões Europeus frente ao Benfica em Wembley, passados 10 anos do acidente, constituindo o Manchester United como o primeiro clube Inglês a vencer a competição.

O video, extraído do filme The Three Kings,  relata uma das grande histórias que o jogo viveu. Aqui publicamos a primeira parte, ficando a promessa de publicarmos a segunda brevemente.

“O desastre aéreo de Munique tornou-se parte da alma do Manchester United. Está lá enraizado com o sonho de Matt Busby quando ele estava nas ruínas bombardeadas de Old Trafford em 1945 e na realização desse sonho com os Busby Babes. No seu cerne há uma paixão e uma determinação inabalável; uma paixão não apenas para vencer, mas para vencer com estilo, para jogar o belo jogo, para atacar e entreter; e uma determinação inabalável para lutar contra todas as probabilidades. Ambos estavam evidentes naquela primeira temporada após Munique, quando, para espanto de grande parte do mundo do futebol, a equipa que eu agora ia ver regularmente com os meus amigos em vez do meu pai terminou como vice-campeã, atrás do Wolves. Estavam lá quase uma década depois, no Bernabéu, quando um Bill Foulkes envelhecido e lesionado saiu a galope da defesa para marcar o dramático golo tardio contra o grande Real Madrid, colocando o United na Final da Taça Europeia; e lá na própria final, em Wembley, quando Bobby Charlton saltou mais alto do que alguma vez o tinha visto saltar para marcar o golo inaugural, e na ala brilhante do jovem John Aston, que desfez a defesa do Benfica e contribuiu muito para selar a vitória que finalmente tornou o United campeão da Europa.”

(David Hall, 2008)

Franz Beckenbauer

“Num terraço em Lisboa, Franz Beckenbauer faz o milésimo discurso da sua vida. “Eu amava Lisboa antes mesmo de ter estado aqui,” revela o alemão mais celebrado da atualidade com aquele tom sereno de canto bávaro, “porque aos vinte anos li toda a obra de Erich Maria Remarque, algumas delas várias vezes, e amei A Noite em Lisboa.” Até mesmo os observadores mais experientes de Franz ficam surpreendidos. Poucas pessoas leram algum dos romances de Remarque além de Nada de Novo no Front, e, de qualquer forma, esperava-se que Beckenbauer produzisse um hino suave a Portugal. O Kaiser encantou mais uma audiência.”

(Simon Kuper, 2011)

Franz Beckenbauer, também conhecido pela alcunha “Der Kaiser” (O Imperador), teve uma carreira brilhante como jogador e treinador, tornando-se uma figura lendária no Futebol e irónica do Desporto, reverenciado pelas suas qualidades excecionais como jogador, em particular pela sua revolucionária visão táctica que deixou uma marca duradoura no jogo de Futebol.

Como exemplo da lenda em que se tornou, quando alguém na “Rua” ou no Futebol de Formação de um clube se destacava como um Defesa-Central que procurava progredir com bola e contribuir na construção do jogo ofensivo da equipa, tendo sucesso ou não, era rapidamente baptizado de “Beckenbauer”. Portanto, de forma elogiosa ou irónica.

De acordo com (Simon Kuper, 2011), o Futebol da Alemanha “ainda moldado pela ética nazi, produzia principalmente Kämpfer, ou lutadores, como a equipa alemã que venceu o Campeonato do Mundo na lama de Berna em 1954”. O autor relata que “Beckenbauer é a fénix das cinzas da Alemanha Nazi. Concebido no inverno mais sombrio do país, nasceu numa Munique bombardeada em Setembro de 1945, a ‘Hora Zero’ da Alemanha. Seu pai trabalhava nos correios. Os Beckenbauer não comiam carne frequentemente. Franz trabalhava como agente de seguros e assinou um contrato semi-profissional com o Bayern de Munique, na época um clube local de dimensões modestas”. No Bayern rapidamente se destacou como um talentoso defensor. Ao longo da década de 1960, ajudou o Bayern a conquistar vários títulos, incluindo três campeonatos da Bundesliga e uma Taça das Taças, antiga competição da UEFA.

Como explica (Jonathan Wilson, 2016), Beckenbauer, tal como Netzer, foram produtos de um crescimento “da autonomia cultural” que naquele momento se vivenciou em vários países, entre os quais Alemanha e Holanda, e que segundo o autor “acabou conduzindo ao pluralismo de estilos de vida”, com o Futebol a fazer parte desse movimento cultural mais amplo. Também (Simon Kuper, 2011) explica a liderança dos contemporâneos Johan Cruyff e Franz Beckenbauer como “produtos do seu tempo”, tal como os “estudantes nas ruas de Paris em 1968”. Kuper descreve que “eles eram bebés do pós-guerra impacientes por assumir o poder. Os baby boomers queriam reinventar o mundo. Não se submetiam à deferência”. O autor acrescenta ainda que “Cruyff e Beckenbauer não assumiram apenas a responsabilidade pelos seus próprios desempenhos, mas também pelos de todos os outros. Eles eram treinadores em campo, apontando e dizendo constantemente aos colegas de equipa para onde se mover. Eles ajudavam os treinadores a escolher as equipas e a sua organização. Não se submetiam. Exigiam uma grande quota do sucesso no jogo”.

Porém, regressando à comparação com o Alemão Günter Netzer, que detinha um pensamento político de esquerda, (Jonathan Wilson, 2016) acrescenta que embora este “fosse a figura abertamente mais rebelde, especialmente em termos de estilo de cabelo e modo de se vestir, Beckenbauer era quem tinha a vida pessoal mais turbulenta. A sua imagem, no entanto, graças a seu apoio público ao partido conservador CSU — e ao fato de jogar no Bayern — era percebida como mais convencional”. Kuper reforça que fora do campo, Franz “personificava a ambiciosa República Federal jovem e orientada para o dinheiro. Nunca foi um hippie ou de esquerda, Beckenbauer era um burguês instintivo”. Mais tarde, como dirigente, foi mesmo criticado pela esquerda alemã e até internacional pelo receio de vir a presidir à UEFA e dar maior protecção aos grandes clubes europeus.

Como jogador, Beckenbauer personificou a elegância e a inteligência dentro de campo. A sua versatilidade era notável, destacando-se tanto na defesa quanto no meio-campo, uma qualidade que o tornou verdadeiramente excecional. Dotado de uma leitura e interpretação do jogo extraordinárias, Beckenbauer não era apenas um defensor sólido, mas também um construtor de jogo magistral. Distinguia-se pela qualidade dos seus passes. Ora longos, ora curtos, mas normalmente, verticais. A sua capacidade de ler as situações, antecipar o pensamento  adversário e iniciar jogadas ofensivas fez dele um jogador completo.

Contudo, foi na sua abordagem funcional e posicional que Beckenbauer deixou a sua grande marca. Como jogador do Bayern de Munique e da seleção alemã, ele desafiou as convenções sobre um Defesa-Central. Em vez de se limitar a uma função puramente defensiva, Beckenbauer frequentemente progredia para o meio-campo, actuando como um médio disfarçado de líbero, influenciado o Futebol Alemão e até internacional nas décadas seguintes. Para (Jonathan Wilson, 2016), o alemão “foi tão essencial para o desenvolvimento da Alemanha Ocidental quanto Cruyff tinha sido para a Holanda. Ele actuou como líbero pelo Bayern desde o final dos anos 1970, encorajado por Čajkovski, que crescera num ambiente de valorização dos defesas centrais que sabiam jogar (não é coincidência que o primeiro grande líbero do Ajax, Velibor Vasović, tenha sido produzido pela mesma cultura)”. Posteriormente, na Alemanha, Lothar Matthäus, Matthias Sammer, Thomas Hässler, Olaf Thon seguiram-lhe as pisadas nessa função, enquanto Gaetano Scirea, Franco Baresi e Ronald Koeman são uns dos grandes destaques a nível internacional pelas mesmas razões. Hoje, o jogo do John Stones no Manchester City de Guardiola apresenta semelhanças interessantes.

A sua carreira atingiu o auge na década de 70, quando capitaneou a seleção alemã ocidental na vitória do Campeonato do Mundo de 1974, disputado em casa. A liderança e a abordagem táctica revolucionária de Beckenbauer foi fundamental para o sucesso da Alemanha Ocidental nesse Campeonato do Mundo, onde não apenas conquistaram o título, mas a par do outro finalista, a Holanda capitaneada por John Cruyff, redefiniram também os padrões que o jogo ia vivenciando até à data. Nesse dia, o duelo entre Alemanha e Holanda, e particularmente entre Beckenbauer e Cruyff, foi dos mais icónicos que o Futebol protagonizou.

A sua qualidade a organizar o momento defensivo, na construção do futebol ofensivo da equipa e até mesmo a finalizar destacou-o como um dos maiores líderes da história do Futebol. Além do sucesso internacional, Beckenbauer continuou a brilhar a nível de clubes. Transferiu-se para o New York Cosmos na Liga Norte-Americana de Futebol (NASL), onde inclusive acabou por jogar com Cruyff, clube pelo qual adicionou mais troféus à sua colecção.

Após o fim da sua carreira como jogador, Beckenbauer embarcou num também bem-sucedido papel de treinador. Comandou o Bayern de Munique e a seleção Alemã, levando-a à final do Campeonato do Mundo de 1986, derrotada pela Argentina de Maradona e posteriormente à vitória no Campeonato do Mundo de 1990, no qual a Alemanha terminou a prova invicta. De acordo com (Simon Kuper, 2011), “naquela noite em Roma, enquanto os seus jogadores ficavam loucos, Beckenbauer passeava sozinho pelo campo, a medalha de ouro ao redor do pescoço, olhando ao seu redor como alguém que passeia o seu cão. Mais tarde, explicou que estava a dizer adeus ao futebol”. Contudo, o autor expõe que afinal “foi mais um Auf Wiedersehen: até logo. Logo voltou na sua terceira encarnação como político do futebol. Sozinho entre os antigos grandes do futebol, ele nasceu para o papel. (…) Apesar de ser alemão, Beckenbauer é querido em todo o mundo”. Entre outras papéis, tornou-se presidente do Bayern de Munique e envolveu-se de forma importante na organização do Campeonato do Mundo da Alemanha em 2006.

Para percebermos a dimensão da figura em que Beckenbauer se tornou, (Simon Kuper, 2011) explica que na Alemanha deixou de precisar de “se aliar ao establishment. É o establishment que tenta se aliar a ele. Todos os políticos alemães tentam associar-se ao Kaiser. Quando Beckenbauer visitava o seu antigo fã Gerhard Schröder na chancelaria, e Schröder abria uma garrafa de vinho tinto, ficava claro qual dos dois homens precisava mais do encontro. Quando Schröder implementou uma grande reforma fiscal, o comediante alemão Harald Schmidt brincou: “E a maior surpresa é: sem a ajuda de Franz Beckenbauer!””.

Beckenbauer trouxe uma mentalidade inovadora para o jogo, introduzindo conceitos tácticos que influenciaram posteriores gerações de jogadores e treinadores, subindo a fasquia ao futebol moderno. Este legado transcende a sua carreira como jogador, destacando-se como uma das mentes mais brilhantes e influentes do desporto.

“Ele sempre, naquela época e posteriormente, tomou cuidado em se dissociar das deficiências do futebol alemão pós-Kaiserzeit. Dias antes da final, conversando com amigos, disse em voz alta os nomes de vários dos seus jogadores e deu uma gargalhada. “O que foi tão engraçado?” perguntaram-lhe. “Pensem só,” disse Beckenbauer, “em um dia ou dois esses rapazes poderiam ser campeões do mundo!” Eles não foram: perderam para a Argentina. “Felizmente, porque se tivéssemos ganho, teria sido uma derrota para o futebol”, escreveu Beckenbauer mais tarde.”

(Simon Kuper, 2011)

A apropriação cultural a Fernando Chalana

“Emular al ídolo es a lo que juegan millones de niños cada día en el mundo entero. (…) Cada vez que estos ídolos se asoman a la televisión con su instrumento (un balón, una raqueta o un coche), se convierten en maestros de miles de niños que los miran con los ojos llenos de admiración.”

(Jorge Valdano, 2014)

Partiu Fernando Chalana. Partiu um dos grandes. É vulgar dizer que o património do Futebol fica mais pobre, mas isso não é bem verdade. O património fica. Pelos seus feitos, pela sua história, nas lendas que criou comprovadas pelos relatos das testemunhas que o viram jogar e pelos arquivos dos jornais e televisão. E pelo homem que foi. No fundo, toda a sua qualidade, manifestada na sua relação com a bola, lateralidade e recursos técnicos, que num todo composto também pela sua enorme humanidade, inteligência táctica e criatividade invulgares, consumavam a tal genialidade que todos lhe reconhecem.

Tal qualidade garantia-lhe uma fantástica eficiência nas suas acções, parecendo tornar simples, o complexo. Eficiência essa que lhe garantia uma regular eficácia que mescladas com uma estética inconfundível e apaixonante tal qual a sua paixão pelo jogo, colocavam-no no panteão dos grandes do Futebol. Do Futebol português, mas também do Futebol mundial. Chalana tornou-se então património. Tornou-se, cultura.

Cultura, que muitas crianças do seu tempo procuravam imitar. No meu tempo, “éramos” na nossa “rua”… Luís Figo, Rui Costa, Paulo Sousa, João Vieira Pinto, Fernando Couto, Maradona, Van Basten, Baresi, Romário, Roberto Baggio, Matthäus, Redondo, Batistuta, Ronaldo “Fenómeno”, etc., etc.. Imitávamos consciente ou inconscientemente as suas acções, os seus comportamentos, até o mais ínfimo detalhe. Porém, provavelmente nessa geração, talvez tenha sido o fabuloso Paulo Futre o mais adorado e a maior vítima de “apropriação cultural”… Pelo menos em Portugal. O seu drible, muitas vezes através de uma ginga e gestualidade desconcertantes, nomeadamente através da peculiar forma como movimentava os braços de forma enganar os adversários, mas também as suas mudanças de velocidade, os seus remates inesperados, muitas vezes até de “trivela”, eram vistos em qualquer espaço aproveitado para campo de futebol. Fosse no baldio, no ringue da escola, no ringue do bairro ou no corredor lá de casa. Porém, até o incrível Futre também se “apropriou culturalmente”.

“Tenho muitas jogadas dele na cabeça. Ainda hoje não sabemos como ele fazia para fintar, um, dois, às vezes três jogadores, só com a cintura, sem tocar na bola. Acho que muitos dos meus movimentos de braços – uma grande virtude minha, quando jogava, vêm também daquele movimento de cintura, sem tocar a bola. Eu tentava imita-lo de qualquer maneira. Quis ser como ele durante toda a minha infância, e depois na minha adolescência. Era único, a minha referência. Eu treinava muito mais do que outros jogadores jovens porque queria chegar perto deste génio, queria ser profissional e chegar perto do nível dele. Mas nunca cheguei, nunca cheguei porque era impossível.”

(Paulo Futre, 2018)

Torna-se fundamental dizer que se engana redondamente aquele que pensa que as mais recentes distorções sobre a “apropriação cultural” são produto de um só “grupo” social. Esse não só é um pensamento falacioso como está ao mesmo nível do objecto da crítica. A estupidez não escolhe raças, países, clubes, partidos ou credos. A história humana comprova-o.

Enganam-se também as opiniões que dizem levianamente que o Futebol é apenas um jogo. O Futebol é intemporal e o enorme impacto social que produz tornam-no muito mais do que apenas um jogo. Paralelamente ao enorme espectáculo que se tornou, é um incrível veículo de transmissão de valores. Reproduz a uma escala mais pequena a essência do ser humano e a sua necessidade em cooperar, ser solidário e competir. De forma saudável, respeitando os outros e primeiramente, a si mesmo e a sua humanidade. Desta forma, manifestando a sua necessidade de viver em sociedade.

O jogo de futebol ensina-nos a não segregar, separar e a respeitar o outro. O outro indivíduo, o “outro”, equipa. Seja pela raça, cor da pele, morfologia, estética, religião, partido político, características técnicas, forma de jogar, etc., etc. Como é habitual dizer-se… “lá dentro são todos iguais”. Acrescentamos… são todos iguais nos valores e justiça perante o jogo, porém com individualidades e ideias colectivas diferentes. A riqueza cultural e diversidade no jogar são qualidades decisivas para vencer. Tal qual, num plano mais macro, são fundamentais para a espécie humana ter subsistido até hoje.

Estas diferenças e diversidade… fazem portanto parte de uma riqueza cultural incrível, que consubstancia outra dimensão fenomenal do jogo, à imagem da sociedade em geral. Uma riqueza que não cresceu isolada, mas sim fruto da difusão, interacção e socialização dos diferentes povos e culturas. Conseguimos, por exemplo, imaginar a riqueza do jogador brasileiro sem a mistura cultural e genética do povo nativo da América do Sul, com as qualidades dos Africanos, Europeus e até Asiáticos? Conseguimos imaginar um golo de grande penalidade ser anulado porque não seria permitido copiar a ideia de Antonín Panenka? Ou o golo na jogada do pontapé de saída do PSG no último jogo? Pelo menos Bournemouth, Eibar, PSG em Sub19 e Real Madrid, estes últimos contra o próprio PSG… com maior ou menor sucesso, fizeram exactamente o mesmo. E ainda a impossibilidade da existência do Barcelona de Guardiola, porque se inspirou em Johan Cruyff, que por sua vez “bebeu” conhecimento em Rinus Michels, que originalmente sofreu influências de Jack Reynolds, entre outros? O próprio Futebol. Não se sabe exactamente o seu ponto de origem tendo em conta as suas inúmeras raízes culturais, mas tendo em conta que foram os britânicos a regulamentá-lo, todos os países inclusive Portugal, realizaram então, a determinado momento, uma apropriação cultural. Imaginamo-nos então sem Futebol? E regressando ao início… Futre não teria sido… o grande Futre.

A cultura é sem dúvida dos bens mais preciosos que podemos ter e que no fundo também nos distingue enquanto seres humanos. Por outro lado, tal como a uma equipa, ninguém consegue, culturalmente, copiar outro indivíduo de forma integral. No máximo, acrescenta a si, transforma a sua identidade e contribui para a diversidade e riqueza cultural da espécie. Sendo por transmissão, ou por “apropriação”. No final do dia, “somos todos simplesmente um” como confessou Justin Britt-Gibson para o Washington Post (Wikipédia, 2022) a propósito do tema, e como defendemos no artigo anterior.

“Foi a minha referência, a minha inspiração, o meu ídolo. Dificilmente estava aqui, a falar neste momento, se não fosse o Chalana. Ele teve muito que ver com a carreira que fiz. Eu tentava imita-lo, era eu jogador do Sporting com 11 anos. Já ia ao Estádio da Luz, para o terceiro anel. Eu não ia ver o Benfica, ia ver este pequeno grande génio.“

(Paulo Futre, 2022)

Avaliação da competência do treinador

“(…) fui mudando de canal e encontrei dois ou três iluminados pumba, pumba, a bater no Jesus. Mas a falar de pormenores e de treino e a dizer que tinha de fazer assim e assado. E eu penso: mas quem é que eles treinaram? Nunca treinaram ninguém na vida. Nunca lideraram ninguém. Mesmo os ex-jogadores. Quem é que eles treinaram? Foram jogadores e alguns deles nem foram exemplo para ninguém. Quando é que eles tiveram de tomar decisões sobre pressão? Onde é que eles foram avaliados e criticados ao mesmo tempo por tanta gente? Não foram. Mas chegam ali e o Jesus isto e isto e isto. Mas o Jesus ao pé deles dá-lhes dez a zero. Ou vinte a zero. E isso custa-me. Tal como eu não tenho hipótese nenhuma de estar aqui a falar de política, porque eu não estudo política e não sei o suficiente. Por exemplo, gosto muito de música, mas é só de ouvir, gosto disto ou daquilo. Não começo a discutir a música como se soubesse alguma coisa daquilo, porque não sei. Tudo bem, as pessoas podem discutir futebol e dar a sua opinião, mas não podem fazê-lo sem respeito.”
(Vítor Pereira, 2017)