A Inteligência Artificial é uma ameaça ao treinador? Ao jogador? Ao Futebol? À humanidade?

“A IA é potencialmente mais perigosa do que armas nucleares. As pessoas que são chamadas para criar IA precisam aceitar a responsabilidade de que podem estar a criar a nova vida na Terra.”

Demis Hassabis

O tema é extenso e profundo. Mas extremamente actual e importante. Como defende Demis Hassabis CEO da DeepMind, empresa que estuda a Inteligência Artificial à 12 anos, e entretanto comprada pela Google, talvez estejamos perante a invenção mais importante que a humanidade irá vivenciar até à data. Deste modo, pode parecer que pensar nas suas implicações no âmbito do Futebol seja redutor, ou até um pouco ofensivo tendo em conta a tremenda evolução, ou, ao contrário, a tremenda ameaça, que poderemos ter pela frente enquanto espécie. Ameaça, porque no cenário mais pessimista, tal tecnologia poderá ditar o princípio do fim dos seres humanos. Porém, apesar disto, e até ver, o jogo que tanto amamos não pára e interessa-nos também reflectir sobre as consequências da Inteligência Artificial no seu contexto.

Procurámos a perspectiva da própria Inteligência Artificial em relação ao tema, através ChatGPT e Bard, a nova ferramenta de Inteligência Artificial da Google. Ambos defendem que a IA está a revolucionar o futebol de várias formas, e o papel do treinador de futebol não será exceção. Segundo o ChatCPT “a IA pode ajudar os treinadores a tomar decisões mais informadas sobre uma ampla gama de questões, desde a seleção de jogadores até à estratégia de jogo”. A ferramenta destaca ainda a importância crescente da IA na análise do imenso volume de dados associado a uma equipa, como forma de identificar padrões e tendências colectivas ou grupais, mas também na análise do desempenho individual, na prevenção de lesões, identificação de pontos fortes e fracos de cada jogador e consequente prescrição de treino individualizado na procura de maximizar a eficiência individual. No plano da preparação estratégica, também é descrita como uma ajuda preciosa para analisar adversários e desenvolver planos de jogo com o intuito de superar determinada oposição. Mesmo durante os jogos e em tempo real. Até o Scouting é contemplado, “ajudando a identificar jovens talentos com base em características específicas. Algoritmos podem analisar dados de várias fontes para prever o potencial de um jogador antes mesmo de ele atingir o nível profissional”. As possibilidades tornam-se então, imensas. 

Em forma de conclusão, é referido que “em última análise, a IA tem o potencial de transformar o papel do treinador de futebol. Os treinadores que estão dispostos a abraçar a IA e aprender a usá-la terão uma vantagem competitiva significativa”. Por outro lado, “embora a IA continue a desempenhar um papel crescente no desporto, muitos acreditam que a presença humana será sempre essencial no papel de treinador de futebol. A integração bem-sucedida da IA no treino dependerá de como as tecnologias evoluem e de como são incorporadas de maneira eficaz, mantendo o equilíbrio entre as capacidades analíticas da IA e as habilidades humanas únicas”. É praticamente factual que os mais bem sucedidos treinadores da história do jogo tinham em comum enormes qualidades humanas, de liderança, empatia e inteligência emocional. Aparentemente a Inteligência Artificial reconhece isso.

Mas a procura deste equilíbrio não é novidade no futebol. Já no final da década de 70, um dos mais notáveis treinadores da história do jogo, o ucraniano Valeriy Lobanovskyi, que acumulou jogos, vitórias e títulos, principalmente ao serviço do Dínamo de Kiev e selecção da antiga União Soviética, vivia semelhante dilema. De acordo com (Jonathan Wilson, 2016), “Lobanovskyi, enquanto jogador, era um diletante que se opunha aos limites impostos por Viktor Maslov. Ainda assim, o seu racionalismo perfeccionista, a sua ambição e a sua inteligência analítica estavam presentes desde o início. Tratam-se de qualidades que não deveriam surpreender se considerarmos que ele demonstrara talento suficiente como matemático para ganhar uma medalha de ouro ao se formar no ensino médio e, além disso, crescera numa era em que se nutria verdadeira obsessão pelo progresso científico. Nascido em 1939, Lobanovskyi era um adolescente quando a URSS inaugurou sua primeira central eléctrica nuclear e enviou a Sputnik ao espaço, e Kiev era o centro da indústria de computação soviética. O primeiro instituto cibernético da URSS foi aberto em 1957 e rapidamente ficou conhecido como referência mundial em sistemas de controle automatizados, inteligência artificial e modelos matemáticos. Foi lá que um protótipo do computador pessoal da atualidade foi desenvolvido, em 1963. Na época em que Lobanovskyi estava estudando engenharia de aquecimento no Instituto Politécnico de Kiev, o potencial dos computadores e de suas possíveis aplicações em quase todas as esferas sociais tornava-se cada vez mais claro. Eram tempos excitantes, de muita novidade, e não é surpreendente que Lobanovskyi tenha sido contagiado pela onda de optimismo tecnológico. Dentro dele, desenrolava-se o grande conflito entre individualidade e sistema: a sua parte de jogador queria driblar, carregar a bola, inventar truques que deixassem os rivais envergonhados, mas, mesmo assim, como ele admitiria mais tarde, o treino que recebia no Instituto Politécnico impulsionava-o a uma abordagem sistemática, cuja meta seria dividir o futebol entre as tarefas que o compunham”.

Voltando à actualidade, tendo em conta a imberbidade das ferramentas, mas por outro lado demonstrando maior sensibilidade humana que alguns humanos, ChatGPT e Bard sublinham, neste momento, que apesar da crescente importância e papel da Inteligência Artificial no Futebol, torna-se “crucial que a componente humana, como a intuição e a compreensão emocional dos jogadores, continue a desempenhar um papel fundamental no processo de treino e gestão de equipas”. Ora, assistimos sistematicamente, nas televisões, jornais, blogs, etc., a análises desprovidas da tal sensibilidade emocional, ou seja, desprovidas de sensibilidade humana, que interpretam jogadores e treinadores como máquinas. “Analistas” esses, que por vezes, também por não estarem presentes no processo de treino, até ignoram o papel decisivo do mesmo na evolução das equipas e jogadores, na construção de decisões e execuções de qualidade, no desenvolvimento do entrosamento, da coesão, na criação de uma emocionalidade e sentimentalidade decisiva à equipa de qualidade e que se deseja de sucesso. Assim, são “analistas” que tratam então os humanos que jogam de forma mais artificial que a própria inteligência artificial. Não será isto, desde logo um sintoma de que podemos estar em risco de ser ultrapassados?

Entramos então num domínio de ainda maior complexidade. Emoções, intuição, inteligência colectiva. Assim… a “consciência” para o todo complexo que estrutura a nossa realidade é precisamente um dos sintomas de… inteligência. Esta preocupação pela própria complexidade surge da própria IA, referindo que “o futebol é um desporto altamente complexo que envolve não apenas a estratégia tática, mas também a gestão de personalidades, motivação, tomada de decisões rápidas e adaptação a situações imprevisíveis. A componente humana do treino, que inclui compreensão emocional, liderança e comunicação, é difícil de replicar totalmente por meio de algoritmos”. A isto a ferramenta soma o desafio que a intuição e criatividade se constituem à IA, supostamente ainda longe do que os humanos conseguem fazer. E ainda a liderança e as relações complexas, emocionais e inter-pessoais, e por outro lado em garantir um pensamento evolutivo que eleve o jogo a outros patamares. É mesmo referido que “a capacidade de adaptação e inovação é uma característica humana que pode ser desafiadora de replicar por completo em sistemas de IA”. Em tom mais descontraído, parece que tivemos de investir milhões e algumas das melhores mentes humanas para chegarmos à conclusão que afinal, no Futebol, “nem tudo está inventado”…

Esta fusão que a própria Inteligência Artificial propõe seria o cenário perfeito. Numa visão mais profunda, o equilíbrio entre razão e emoção. Como o neurocientista (António Damásio, 2018) aponta, referindo-o como um “vislumbre de esperança”, tendo em conta a “grande diferença entre esforços passados e tentativas futuras, está no vasto conhecimento sobre a natureza humana que agora temos à disposição e na possibilidade de planear uma estratégia mais humanamente inteligente do que no passado. Essa abordagem consideraria a ideia de que a razão deve estar no comando como pura tolice, um mero resíduo dos piores excessos do racionalismo, mas também rejeitaria a ideia de que devemos simplesmente obedecer às recomendações das emoções — sermos gentis, compassivos, raivosos, sentir nojo — sem passá-las pelo filtro do conhecimento e da razão. Promoveria uma parceria produtiva entre sentimentos e razão, enfatizando as emoções salutares e suprimindo as negativas. Por fim, ela rejeitaria a noção da mente humana como um equivalente das criações da inteligência artificial”. Isto, partindo do pressuposto que a Inteligência Artificial poderá apenas replicar com alguma semelhança a grande função do hemisfério esquerdo do nosso cérebro e que não o conseguirá fazer em relação às qualidades emergentes do direito. Mas será essa a evolução da IA? E será o equilíbrio que Damásio refere possível no ser humano? Será a relação entre humano e IA sustentável a prazo? Será que a própria IA não irá desenvolver uma dimensão mais intuitiva, holística, emocional, sentimental (uma espécie de hemisfério direito), atingindo esse equilíbrio e tornando o humano dispensável? São as questões mais importantes. No futebol, mas derradeiramente, para a espécie humana.

No entanto, algo que à maioria parecia impossível, parece estar a concretizar-se. Em regimes de auto-aprendizagem, a Inteligência Artificial está a fazer emergir propriedades não expectáveis. Curiosamente, a Google utiliza o jogo de futebol como forma de a desenvolver. No plano teórico, ao nível do software, mas também aplicando o mesmo à robótica. O programa Toda a Verdade, mostra-nos isso e chamamos atenção para a parte em que Raia Hadsell, vice-presidente da DeepMind, explica que a IA, através de robôs, aprendeu o jogo sozinha. Os investigadores não os programaram para jogar, apenas para moverem-se como os seres humanos. E disseram-lhes que o objectivo do jogo era marcar golo. Tendo isso em conta, a IA aprendeu então a decidir e a executar e, função do mesmo. E segundo a investigadora, está inclusive a chegar a “diferentes e interessantes estratégias, formas diferentes de se deslocar, formas diferentes de receber a bola”.

É incrível quando é demonstrado um rasgo de criatividade. Ou melhor, dois. E em apenas alguns segundos de video. Se a criatividade, segundo o ChatGPT, é a qualidade de pensar de forma original, gerar ideias inovadoras e encontrar soluções únicas para problemas, envolvendo a habilidade de conectar informações aparentemente desconexas, pensar fora das normas convencionais e produzir algo novo e valioso, então, quando no programa, o atacante sem bola simula que vai receber a bola iludindo o seu defensor mais próximo, mas acaba por realizar um espécie de tabela parando a bola de calcanhar para o companheiro, para depois, ainda dar um inesperado passo à sua esquerda que só se pode entender como uma finta de corpo para esconder a posterior desmarcação pela direita, criando uma situação de 2×1, tal mostra-nos criatividade emergente. E… entrosamento. Ou como Hadsell descreveu, coordenação emergente, tal como as crianças vivenciam na sua relação evolutiva com o jogo. Importa sublinhar… tudo isto fruto da Inteligência Artificial… Então, se a coordenação e criatividade se tornam possíveis, porque não será a leitura emocional, a sua interpretação e a inteligência emocional igualmente passíveis de serem aprendidas? Até porque como reconhecido atrás pela máquina, a razão não vive sem a emoção e vice-versa. E sendo assim, fica aberta a “caixa de Pandora”.

O neurocientista (António Damásio, 2020) aponta que “pode parecer paradoxal, porque quando se pensa na inteligência artificial o que vem à ideia é que são criaturas absolutamente invulneráveis, feitas de aço e de plástico em vez da nossa pobre carne humana. À primeira vista pode parecer uma asneira introduzir vulnerabilidade numa coisa que é robusta, no entanto, só a introduzindo teremos a possibilidade de fazer qualquer coisa de mais rico em matéria das reações que esse “organismo” poderá tomar”. Será que a própria Inteligência Artificial não irá então antecipar isso? Ou até já antecipou? Regressando ao exemplo da DeepMind, sem mais informação será um exercício de especulação da nossa parte. Porém, quando o defensor fica na situação de 2×1, não seria expectável que algo estritamente racional e eficiente como uma máquina em auto-aprendizagem, não decidisse que a contenção seria o melhor caminho naquela situação para minimizar as probabilidades de golo adversário? Não decidia, até por definição, esse comportamento, aguardando… “friamente”… o erro adversário para o desarme ou intercepção? Num jogo de 2×2, com certeza que não foi a primeira situação dessas que a máquina experimentou. Se a sua principal função é aprender, o que aconteceu ali? Porque terá o defensor “ido à queima”? Terá sido uma decisão emocional? Noutro exemplo, será que a Inteligência Artificial irá reconhecer que a competência de Jürgen Klopp está imbuída de emoções e sentimentos e sendo assim, não encontrará forma de a reproduzir? Se a resposta for sim a tudo isto, será então a máquina a reconhecer… razão… a Damásio. Quer o tenha lido, ou não…

Há pouco mais de dois anos atrás, o treinador (Miguel Quaresma, 2021) escreveu um artigo em que questionava: “Amanhã, ficará o futebol nas mãos da inteligência artificial? Será o treinador, no futuro, substituído por um avatar? Um Cyber treinador, inteiramente cientifico-tecnológico?” Tal como acreditamos ter sido a posição de Quaresma, se naquele momento defendíamos acerrimamente a importância do humano no processo, hoje não temos a mesma certeza.

Em sentido figurado mas com idênticos potenciais efeitos devastadores à nossa espécie, estamos perante a descoberta de um asteróide que pode estar em rota de colisão com a Terra, e portanto, que pode extinguir os seres humanos. Resta-nos decidir o que podemos e vamos fazer para evitar isso. E se formos bem sucedidos nessa missão, se ainda for possível, procurar extrair os seus eventuais raros e extraordinários recursos naturais.

“Raúl Rojas, especialista em Inteligência Artificial da Universidade Livre de Berlim, participou das primeiras experiências: “Desenvolvemos robôs futebolistas que jogam tão bem futebol que não há maneira de ganhar-lhes”. Em 2013 fez-se uma experiência na qual os jogadores deviam marcar penaltis a um Guarda-Redes robot. Com a exceção de Messi, nenhum futebolista conseguiu marcar mais de um golo ao Guarda-Redes robot.

Em 1997 realizou-se o primeiro Mundial de Futebol de robots. No futuro enfrentar robots humanoides nos treinos gerará mais oposição e se obterão melhores resultados e um maior nível competitivo do que nos treinos e jogos amigáveis atuais. 

Espera-se que em 2050 a equipa de robots humanoides ganhador da Robocup seja capaz de vencer a equipa campeã do mundo dos torneios da FIFA. Esta data coincide com a predição do momento no qual a inteligência artificial superará a humana (singularidade tecnológica). Para o ano de 2075 existe 90% de probabilidades de que as máquinas alcancem a inteligência humana, segundo os resultados combinados de quatro sondagens realizadas por Nick Bostrom, diretor do Future Humanity Institute da Universidade de Oxford.

Esta perspetiva do triunfo dos robots não parece absurda se tivermos como exemplo que em 1997 o supercomputador Deep Blue (desenvolvido pela IBM) venceu Gary Kasparov, campeão mundial de xadrez. O acontecimento repetiu-se em 2006, quando o campeão do mundo Vladimir Kramnik caiu derrotado frente à Deep Fritz. Estes antecedentes são superados pelo ocorrido em 2016, quando um programa informático (desenhado pela filial da Google DeepMind para jogar o jogo de Go) derrotou o melhor jogador do mundo: o sul-coreano Lee Se-dol. Os especialistas afirmam que é muito mais complexo para um computador aprender do Go do que do xadrez.

Os computadores podem inovar? Faz já um tempo que entramos numa era na qual as máquinas estão programadas para aprender de si mesmas. O futurólogo e tecnólogo Santiago Bilinkis o explica com precisão: “Atrás destes mecanismos de ensino conhecidos como Deep Learning escondem-se redes artificiais, inspiradas no funcionamento do cérebro humano. Muitas propriedades destes computadores mostram analogias com as capacidades humanas pelo seu engenho e criatividade”.

(Gérman Castaños, 2018)