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um saber sobre o saber fazer... - Carlos Carvalhal 2014

um saber sobre o saber fazer… – Carlos Carvalhal 2014

Curiosamente, “um saber sobre o saber fazer…”

Qualidade Colectiva

Brasil x Alemanha 2014

Brasil x Alemanha, meia-final do Campeonato do Mundo do Brasil, 2014.

O Brasil x Alemanha foi, provavelmente um dos melhores exemplos da história recente do jogo, que ilustra a importância da qualidade colectiva no Futebol. Deixamos uma parte do capítulo dedicado ao tema, na qual dois autores relativamente desconhecidos do público em geral têm vindo a sublinhar a importância da mesma. Incrível como por outro lado, uma industria que move biliões de pessoas e consequentemente enormes recursos financeiros, tem como muitos dos seus gestores de topo, treinadores que não percebem o mesmo.Segundo (Bouças, 2012), uma ideia que se difundiu durante décadas no Futebol é que “o jogo não mais, são onze jogadores soltos às suas próprias iniciativas individuais. Os carregadores de piano como Jaime Pacheco os designa, a fazer o trabalho árduo, a correr por quatro ou cinco, os dois extremos bem abertos e dribladores, sempre com o intuito de ganhar o 1×1 para cruzar para a área, onde um avançado espera finalmente o seu momento para entrar no jogo. A finalização”. Para (Amado, 2013), “o futebol não é um jogo de individualidades, e que trabalhadores não servem para compensar craques, nem criativos servem para compensar trabalhadores. Cada acção individual só faz sentido colectivamente”. O avançado espanhol Fernando Torres, citado por (Bouças, 2012), reforça esta ideia tacticamente, explicando que no seu caso, jogando a ponta-de-lança da selecção espanhola, “é preciso ter paciência. É complicado jogar. Deves fixar o central, é um papel secundário, porém é o melhor para a equipa. É um luxo jogar nesta selecção. Aqui pode acontecer que te contenhas mais na partida e não faças golos, mas é o melhor para a equipa. Há dias que pensas: “Que partida fiz! Oxalá jogue assim sempre.” E ouves críticas por todos os lados. E no dia em que estás lento, mal e erras, mas marcas dois golos, aplaúdem-te. Aprendi a viver com isto.” O autor remata, descrevendo que “estamos numa era em que perceber o futebol é muito mais complexo que o que na realidade parece. Há onze jogadores, e todos devem ser responsáveis por tudo dentro do campo. Uns dias ganhas notoriedade, noutros parece que o jogo te passa ao lado. Há é que decidir bem a cada instante. Se assim for, a equipa estará sempre mais próxima do sucesso”. Ainda (Amado, 2013), sublinha que “o futebol é um jogo de relações, um jogo em que é melhor não a equipa que tiver os onze melhores especialistas a fazerem o melhor que podem, mas um jogo em que é melhor a equipa em que os onze jogadores se compreendem melhor uns aos outros”. Amado reforça que “a qualidade da equipa mede-se essencialmente pela forma como os onze jogadores se relacionam entre si”. O jogador Belga Jan Vertonghen, citado por (Bouças, 2014), testemunha no mesmo sentido após o confronto com o Benfica de Jorge Jesus em 2014 para a Liga Europa, descrevendo: “tentámos reajustar mas o posicionamento deles era melhor, jogavam uns para os outros. O Benfica foi melhor em todos os setores e dói perceber isso. Individualmente temos tanta qualidade quanto o Benfica mas não como equipa”.

“Ser um atleta excepcional, ou até genial, é sem dúvida distinguir-se, pelos primores técnicos, pela inteligência táctica e pelo alto rendimento, em relação aos demais colegas de equipa, mas é também estar essencialmente em relação com todos eles. Fora desta dialéctica de distinção e integração, o atleta excepcional não se compreende. A autonomia do singular não constitui um dado absoluto, dado que assim se lançaria ao esquecimento a plurideterminação do real”.

(Manuel Sérgio, 1991) citado por (Neto, 2012)

O pós Guardiola

Pep Guardiola e Espanha

Percurso de Guardiola no F. C. Barcelona em comparação com competições ganhas pela Selecção Espanhola (fonte www.zerezero.pt).

Como já foi referido anteriormente este espaço evita particularizar os fenómenos em estudo, nomeadamente nos casos negativos. Porém, e porque já publicámos matéria sobre o trabalho de Josep Guardiola no Barcelona e também as suas consequências na selecção espanhola, este caso parece-nos pertinente.

Para os partidários dos números, quantidades e relações causa-efeito, deixamos o quadro anterior. Porém, pensamos que no Futebol, estes números, são na maior parte das vezes consequência da qualidade. Não menosprezando a complexidade do tema e as suas inúmeras variáveis, o exemplo que a cultura táctica que Guardiola elevou no Barcelona parece dar razão a este pensamento. Antes das conquistas, esteve o desempenho que levou as equipas até às mesmas. Apreciando-se, ou não, a cultura táctica do Barcelona de Guardiola era patente e visível a todos. O transfere para a selecção espanhola também. Hoje vemos vários campeões de outrora jogando de forma diferente. Diferente o suficiente para colocá-los mais longe do sucesso. E isto independentemente do desfecho final do Campeonato do Mundo, porque o sentimento que fica é que a Espanha actual, à imagem do Barcelona actual, não domina mais os seus adversários, de forma a colocar-se sempre, mais próximo da vitória.

Assim, a pergunta não era se Josep Guardiola conseguiria idêntico sucesso noutro contexto. Era sim, o que o Barcelona e consequentemente a selecção Espanhola seriam após a sua passagem pelo Futebol Espanhol.

“Muitas vezes a dinâmica que treinador promove numa equipa é muito abrangente, neste caso específico o Guardiola no Barcelona, que era a base que sustentava esta selecção espanhola. Não sei se a sua saída de Espanha não se sentirá nesta Espanha, neste momento.”

Vítor Pereira, no programa RTP Mundial 2014 de 13 de Junho de 2014

Iniesta e Selecção Espanhola

Formação e Metodologia

“Muitas vezes há jovens treinadores que saem das universidades para o terreno e têm muitas dificuldades em expressar qualquer tipo de conhecimento e por em prática uma metodologia. E é engraçado que ele diz ter uma metodologia sua no Futebol, e isso é muito importante. A maior parte dos treinadores não têm metodologia e essa é que é a grande verdade e aí tenho que enaltecer e realçar a entrevista do Jorge Jesus, porque hoje em dia o que se faz e eu vejo muito isso, por estar cem por cento ligado ao desporto, são cópias puras e duras e depois as pessoas acabam por esbarrar na falta de aplicabilidade que essas cópias que querem fazer têm no dia-a-dia, e Jorge Jesus toca com o dedo na ferida. É uma reflexão que todos aqueles que formam treinadores têm que fazer, porque o treino, como Jesus também diz, é uma área cientifica e não é qualquer pessoa que pode ser treinador ao contrário do que está vulgarizado na nossa sociedade”.

O ex-seleccionador de Rugby e professor universitário Tomaz Morais, no programa MaisFutebol de 30 de Maio de 2014, sobre a entrevista de Jorge Jesus à BenficaTV de 29 de Maio de 2014

Velocidade

Andrés Iniesta

“A dimensão velocidade é confundida no futebol. Muitas vezes, como adeptos, admiramos um jogo com bola numa baliza, bola na outra baliza, bola numa área, bola na outra área, com oportunidades constantes. Isso para mim é desorganização. Essa é a minha opinião. Como treinador, se vir que a minha equipa cria muitas situações de golo, mas também permite muitas situações de golo, não posso ficar feliz. Não posso ficar feliz porque do ponto de vista defensivo não é competente. Ou mesmo do ponto de vista ofensivo, quando a equipa tem bola e depois permite muitas situações de golo ao adversário, é porque não está bem posicionada, não está equilibrada, não consegue ter bola, não está preparada para o momento de a perder, portanto isso para mim é desorganização. Agora compreendo como adepto, se calhar, é bonito estarmo-nos sempre a levantar do banco para aplaudir bola cá, bola lá, oportunidade de golo cá, oportunidade de golo lá.”

(Vítor Pereira, programa MaisFutebol, edição de 9 de Maio de 2014)

“A transição ofensiva agressiva vai um bocado de encontro ao pânico e a velocidade do Futebol actual, há pressão em torno dos treinadores de vencer, há pouca capacidade de pensar, como falávamos há bocado dos jogadores, há o sentido de urgência que o jogo actual tem…é tudo pânico, é tudo velocidade… e transmite um bocado a ideia do que é a sociedade actual… portanto, acho que no jogo tu encontras esse tipo de traços, portanto a transição agressiva e objectiva tu acabas por encontra-la mais vezes por isso mesmo… porque a pressão de vitória ou a pressão de um resultado sobre o treinador é decisiva e realmente é um momento onde tu podes ter grandes probabilidades de sucesso… porque realmente se for bem-feita é quando encontras o adversário desorganizado.”

(André Villas-Boas, 2009)

Incrível

“O trabalho de Vítor Pereira e Paulo Fonseca no FC Porto foi desastroso.”

David Borges, SIC Notícias 27/4/2014

Principalmente para a maioria da comunicação social, que tem nos números o principal critério de avaliação de competência:

Vítor Pereira como treinador adjunto de André Villas-Boas:

Registo do FC Porto de André Villas-Boas - 2010/2011

Vítor Pereira como treinador principal:

Registo do FC Porto de Vítor Pereira - 2011-2013

Fonte zerozero.pt

Saber sobre o saber treinar

“As pessoas riram-se muito quando Jesus disse que tinha inventado uma ciência, fartaram-se de rir disso, e é uma estupidez porque uma ciência é um corpo organizado de conhecimentos, e portanto o que o Jorge Jesus fez foi isso de facto. Ele tem, provavelmente até tomou apontamentos e armazenou, um conjunto sistematizado de conhecimentos sobre uma determinada matéria e que põe em prática com óptimos resultados, coisa que boa parte dos cientistas não se pode gabar.”

Ricardo Araújo Pereira

Fadiga central

O autor (Carvalhal, 2010), questiona se existe “apenas cansaço físico? A maioria das vezes o intervalo temporal entre jogos cumpre os limites “fisiológicos “ … Vejo com atenção alguns jogos, vivencio esta realidade, e constato que muitas vezes as equipas correm até demais, lutam, são intensas, no entanto falham muitos passes e por vezes perdem organização… como explicar tudo isto?” Segundo (Sampaio, 2013), “quando estudamos, quando lemos um livro, quando escrevermos um artigo, quando temos um trabalho de enorme concentração, mesmo realizando a tarefa sentados, no final estamos cansados. Deste modo, entendendo que um jogador para jogar futebol necessita de concentração de decisões, de pensamento simultaneamente com execução (físico) o entendimento do desgaste ou cansaço de um jogador não pode ser só entendido como uma recuperação física (muscular) mas também mental (cérebro e sistema nervoso central)”. Também de acordo com (Carvalhal, 2010), “é indescritível o cansaço que um treinador sente no final de um jogo! Mas como explicá-lo? Não andou muito, não correu, não teve uma relevante exigência física… estão certamente a pensar como eu… fadiga mental! É muito importante tomar consciência que tal como a fadiga física (sistema nervoso periférico), também existe a mental (sistema nervoso central) e ambas se fazem sentir no nosso organismo durante, e principalmente depois de um jogo.”

Experiência

Habitualmente não realizamos neste espaço, análises individuais e colectivas, nomeadamente depreciativas. O nosso foco está em seguir e teorizar o caminho que os melhores trilham. Porém, perante o tema que é objecto da nossa investigação, teremos sempre que abrir excepções.

Hoje na análise à pesada derrota do Bayer Leverkusen na Liga dos Campeões, um recente analista e ex-jogador, referiu que “apesar da qualidade do Paris SG, nada fazia supor este resultado, dada a força do futebol alemão e porque o treinador do Leverkusen, Sami Hyypiä é um treinador experientíssimo“. A pretensão não é analisar a qualidade do treinador em causa, porque para além de não ser esse o objectivo deste artigo, também não dispomos de informação e conhecimento suficiente para o fazer. Assim restringimo-nos à qualificação “experiência” utilizada pelo comentador, que nos parece incrivelmente desajustada.

Histórico de Sami Hyypiä como treinador, (zerozero.pt, 2014).

Histórico de Sami Hyypiä como treinador, (zerozero.pt, 2014).

A única explicação encontrada para esta qualificação é o seu passado como jogador, que é de facto, significativo. E é aqui que nos debruçamos. Continua viva a ideia de que uma carreira de jogador no Futebol de Rendimento é garante para se ser um treinador de sucesso. Não é. Ao longo da história do Futebol acumulam-se as experiências falhadas com ex-jogadores e por outro lado com recém-licenciados, por falta de preparação para a função. Tudo porque alguém, com responsabilidades directivas, viu neles algumas qualidades ou potencialidade para o cargo. Porém não percebeu, que a função exige muito mais do que algumas qualidades, experiência ou conhecimentos: exige tudo isso, a multidisciplinaridade de conhecimentos e uma formação e experiência contínuas.

Saber jogar Futebol está no domínio dos bons jogadores. Saber sobre o saber jogar é apenas restrito a alguns, que podem até nem ser os melhores. E saber sobre o saber jogar é apenas uma face da necessária competência do treinador – o saber treinar. Uma boa Liderança e uma Metodologia de Treino de qualidade são outras necessidades da função.

Saber sobre o saber treinar, ou seja, o conhecimento sobre a função do treinador apenas está ao alcance de quem sobre ele reflecte. Jogadores, treinadores, analistas, comentadores, etc., que não ultrapassaram a fasquia do saber jogar, terão sempre muita dificuldade em compreender esta realidade.

Eusébio

“A notícia do internamento hospitalar do Eusébio foi das maiores surpresas da minha vida. A doença não é coisa que normalmente associemos à divindade, daí que a arteriosclerose do Pantera Negra me tenha apanhado desprevenido. Se até Eusébio adoece, que esperança resta a mortais como nós?

Como tudo o que é inesperado, a doença do Eusébio fez-me pensar, e o leitor sabe bem como os factos que me fazem pensar merecem celebração, quanto mais não seja pelo respeito que é devido aos acontecimentos raros. Em Portugal, temos o hábito de esperar que as pessoas morram para as homenagearmos, altura em que a homenagem, parecendo que não, é apreciada com menos entusiasmo. No caso das pessoas que vivem para sempre, como o Eusébio, as homenagens correm o risco de ficarem adiadas indefinidamente. Por isso, enquanto é tempo, presto a minha homenagem a Eusébio da Silva Ferreira, antes que seja tarde eu morra sem conseguir fazê-lo. Se o que digo enquanto vivo faz pouco sentido, calculem como serei incongruente depois de defunto.

A minha admiração pelo Eusébio nasceu num momento particular. Eram os últimos minutos da final da Taça dos Campeões de 1968, e o jogo estava empatado entre o Manchester United e o Benfica. Mesmo no fim, Eusébio aparece à entrada da área dos ingleses com um adversário de cada lado. Naquele tempo, as regras do futebol eram quase iguais às de hoje: injustas. As equipas eram obrigadas a jogar com apenas onze jogadores de cada vez, mesmo que do outro lado estivesse o Eusébio. A desproporção de forças era gritante. Era óbvio para todos que, só com três adversários pela frente (contando com o guarda-redes), Eusébio ia marcar.

O pantera Negra não desiludiu ninguém: deixou os defesas para trás como sempre, e depois fez o gesto de sempre e chutou com a força de sempre. Estava lá dentro, e o Benfica seria campeão da Europa pela terceira vez. Era impossível que o guarda-redes apanhasse aquela bola. E, no entanto, apanhou-a.

Quando percebe que o guarda-redes lhe tira a oportunidade de fazer o golo decisivo nos últimos minutos da final da Taça dos Campeões Europeus, qual é a reacção de um jogador? Grita? Pragueja? Chora? Insulta o adversário? Insulta a bola? Insulta-se a si mesmo? Provavelmente, faz tudo isso e ainda arranca cabelos. O que fez Eusébio? Foi ter com o guarda-redes e cumprimentou-o. E depois aplaudiu a defesa. O Eusébio era aquilo tudo que toda a gente admira: Os golos do meio campo, as arrancadas a deixarem todos para trás, a força sobre-humana, a velocidade incrível. Mas era também aquele cumprimento e aquele aplauso a um simples humano que se tinha transcendido a ponto de o conseguir parar. De entre todos os deuses que a Humanidade inventou, desde o início dos tempos, não sei se haverá muitos que reúnam tantas qualidades como o Eusébio.

Tantas palavras para deixar aqui escrita a minha opinião sobre ele quando ela se reduz a duas linhas: Eusébio é outra maneira de dizer alegria. Eusébio é outra maneira de dizer Benfica. São dois favores que eu agradeço. Obrigado, King.”

Ricardo Araújo Pereira in Boca do Inferno, 2007