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O paradigma de Matveyev

Publicamos um novo tema na área Metodologia, sub-tema Metodologia geral do Treino, sub-sub-tema História do treino do futebol. Abordamos o capítulo O paradigma de Matveyev.

“Foram 400 anos de pensamento analítico ou cartesiano.”

(Vítor Frade, 2017)

Dawn of the Dead

“A única forma de construir uma equipa é reunir jogadores que falem a mesma língua e que saibam jogar em equipa. Não se consegue atingir nada sozinho e, se o fizer, isso não dura muito tempo. Costumo citar o que Michelangelo disse: ‘O espírito guia a mão’.”

(Arrigo Sacchi)

Tal como o filme Dawn of the Dead de 1978 foi alvo de um remake por Zack Snyder em 2004, hoje assistimos no Futebol a um remake do método defensivo individual. E tal como nos filmes, estamos perante um fenómeno “morto-vivo” e os momentos de “terror” vão-se acumulando dentro do campo.

“Quem marca ao homem corre por onde o adversário quer. Essa caçada tem por fim capturar o inimigo, mas o meio usado converte o caçador em prisioneiro.”

(Jorge Valdano, 2002)

Vários treinadores e analistas defendem o regresso da defesa individual com argumentos que favorecem uma maior agressividade e capacidade pressionante das equipas e de pressão sobre jogadores considerados fundamentais na Construção e Criação adversária. Este último também ele um argumento clássico, como a responsabilização individual de quem defende, entre outros mais. Ora, jogadores e equipas que individual e colectivamente tenham essa predisposição e maior agressividade no momento defensivo podem esconder em alguns jogos ou momentos as razões para a falência da ideia. Tal como sucedeu no passado. Na actualidade, a recuperação do método também apresenta sucesso, a espaços, por ser algo diferente e inovador do que se tornou norma. Consequentemente muitas equipas não se apresentam preparadas para defrontar adversários que defendam dessa forma.

Seja na preparação de uma equipa de Rendimento, mas também em debilidades identificadas do processo formativo dos jogadores, que julgando a Defesa Individual totalmente ineficaz e mesmo, morta, determinadas decisões técnicas não confrontam os jogadores com esse género de problemas. Mas evidentemente, de forma mais basilar, este fenómeno também revela lacunas ofensivas no processo formativo não só nos princípios específicos da Mobilidade e Espaço, mas também na própria Progressão / Penetração. Por outro lado há que reconhecer que tudo o que é novidade e pensamento divergente (neste caso apenas aparentemente), trará problemas e desafios. Mesmo algo que se considerava menos eficiente e mesmo em vias de extinção.

Hoje, determinados Modelos, assentes numa Ideia de jogo posicional muito rígida e cristalizada, gerando pouca mobilidade e permutas entre jogadores apresentam natural dificuldade contra equipas que defendam individualmente adversários directos, cortando assim todas as soluções de passe, ou pelo menos as mais próximas e seguras. Naturalmente nos casos onde, individualmente, a qualidade dos jogadores é similar. Nos outros casos, potenciar duelos de 1×1, será natural que o jogador de maior qualidade impere. Um dos melhores jogadores de todos os tempos, Diego Armando Maradona citado por (Tobar, 2010), vai ao encontro desta ideia e explica que “com os anos, compreendi que eu gostava mais que me marcassem homem a homem porque me livrava facilmente deles e ficava livre. Ao contrário da marcação a zona que era muito mais complicado”. É muito provável que estivesse aí a incluir o AC Milan de Arrigo Sacchi, equipa que defrontou em Itália. Noutro exemplo, porém colectivo, a Holanda de 74, de Rinus Michels, fez verdadeiramente diferente da norma naquele momento da evolução do jogo, e entre outras qualidades, e uma das razões para o seu reconhecido sucesso, perante a enorme mobilidade com que os seus jogadores actuavam, acabou por criar grandes problemas e mesmo colocar em causa o método individual.

Segundo o autor (Jorge D., 2011) e reforçado pelas situações retratadas do AC Milan actual, quem defende com referências individuais, “em vez de se preocupar em cortar espaço ao portador da bola, condicionando assim a sua decisão e roubar a profundidade da desmarcação, decide acompanhar as desmarcações que se aproximam da baliza, pelas quais foram arrastados, originando assim o alargamento do espaço entre linhas assim como dos indivíduos da própria linha (Defesas-Centrais e Defesas-Laterais)”. Também de acordo com (Pedro Bouças, 2010), “equipa que marca homem a homem, torna-se na presa, quando o adversário abusa do princípio da mobilidade. Move-se por onde o adversário quer”.

Porém, apesar de casos de pontual sucesso, isso não quer dizer, numa visão macro do fenómeno, que métodos individuais tragam igual ou mais rendimento que métodos colectivos. Existe por vezes a tendência de afirmar que não há coisas melhores nem piores no Futebol. Tal como na vida. Mas se a realidade é complexa e não linear, e tudo tem pelo menos um limiar mínimo de diferença, então, coisas, acontecimentos, fenómenos, decisões, etc… diferentes, irão produzir resultados… diferentes. Por vezes até, e trazendo o clássico exemplo da borboleta da Teoria do Caos, produzindo resultados muito díspares perante acontecimentos aparentemente apenas ligeiramente diferentes. Se reconhecidamente estamos no âmbito de um sistema complexo e dinâmico, então estamos perante extrema sensibilidade às condições iniciais. Portanto, nos Desportos… Colectivos, tal qual vemos a sociedade em geral, um método de jogo, seja defensivo ou ofensivo, Individual e não… Colectivo, irá trazer problemas, ineficiência e ineficácia, dado o desfasamento das necessidades da realidade em causa. Tal como na sociedade. Até podemos ter sucesso pontual individual, mas não iremos subsistir a prazo enquanto espécie. Deixamos também a questão no âmbito da Ciência Militar. Será que algum General alguma vez definiu uma estratégia para um confronto assente no individualismo? Mesmo ao nível mais elementar dos exércitos, do ponto de vista estratégico ou táctico, se possível, o pensamento é no mínimo, grupal…

Nesta linha de pensamento, recuperando ideias ainda actuais, na opinião de (Pedro Bouças, 2011), “DEFENDER O QUÊ? deve ser a primeira pergunta que se deve colocar, quando se pretende definir o método defensivo. Se não há certo ou errado, garantidamente que há melhor e pior”. O autor sustenta que “a melhor resposta é seguramente, a que afirmar que se deve defender a baliza. Não o adversário. A baliza. O posicionamento defensivo que se centra no tapar o caminho para a sua baliza, é francamente melhor que aquele que pretende defender os adversários”. Johan Cruyff reconhecido pelas suas ideias ofensivas, torna expressa a interdependência dos momentos ofensivos e defensivos, ao defender que a qualidade defensiva é directamente influenciada pela quantidade de espaço que um jogador tem que defender. Deste modo, o lendário jogador e treinador holandês descreve que se um jogador tem de defender o campo todo, será potencialmente um terrível defensor, porém se defender um espaço reduzido poderá ser um bom defensor, sustando assim ser tudo uma questão de espaço! Também o treinador português (Carlos Carvalhal, 2010) reforça a ideia através da sua experiência como jogador: “fui defesa central e percebo muito bem esta posição! Mais importante que perseguir adversários e fazer carrinhos nas laterais do campo, é absolutamente necessário saber guardar o seu espaço e não permitir que qualquer adversário (não só os avançados) possa entrar nesse espaço para fazer golo.

“No segundo ano de iniciado no Braga, começámos a experimentar esta nova solução porque, tanto eu como o meu novo colega de equipa (Boticas), não éramos o protótipo do libero e possuíamos características idênticas. As vantagens eram muitas porque dividíamos o espaço: se o avançado viesse para a esquerda, eu marcava e ele fazia cobertura; se fosse para a direita, ele marcava e eu fazia cobertura. Sentíamo-nos confortáveis a jogar assim, corríamos menos e tínhamos a convicção de que era mais complicado para o avançado contrário, porque tinha os espaços bloqueados. No fundo, a grande diferença era que não andávamos atrás do avançado, ele vinha ter connosco. Começámos também a entender que, embora exigisse mais concentração no fechar dos espaços, criava muitas dificuldades às equipas que pretendiam que outros jogadores fizessem desmarcações de rutura em função da mobilidade do avançado. Era o início do entendimento do que era “Jogar à zona”. Nessa altura, comecei a perceber a importância de “fechar espaço” para quem está a defender e “criar espaço” para quem está a atacar. A relação com os laterais era também importante para fechar os espaços. Pelo facto de sofrermos alguns golos, porque o defesa do lado contrário marcava em cima o adversário e existia um grande espaço entre o defesa central e este, fui tentando ajudar a organizar as minhas defesas. (A preocupação dos treinadores com a defesa não era uma prioridade, na altura! Se cada um marcasse o seu, a defesa estava organizada — não estava ainda desenvolvido o conceito de zona). Assim, ia sugerindo aos defesas laterais que fechassem o espaço interior, quando a bola estava do lado contrário, e tentava explicar as vantagens de fechar esse espaço. Umas vezes, era entendido. Mas, muitas vezes, o receio de deixar o extremo sozinho sem marcação era tal que esta tarefa era impossível. Até porque, na altura, existia muita responsabilização individual por falta de marcação ao adversário direto. Recordo-me, uma vez, de insistir com o defesa esquerdo para fechar o espaço entre mim e ele, quando a bola estava no lado contrário. Ele ia-me dizendo, “Carlos eu fecho e, depois, o extremo fica sozinho! Se ele marca golo ou cruza, o treinador vai-me dar cabo da cabeça!” Eu lá lhe ia explicando que era mais importante fechar os espaços interiores, porque tinha sempre tempo para pressionar o seu adversário direto enquanto a bola viajava de um lado para o outro.”

(Carlos Carvalhal, 2014)

O relato de Carlos Carvalhal torna-se precioso, mas não novidade. Se nos recordarmos do Futebol que jogávamos na “rua”, sem treinadores, em regime de auto-descoberta, na interacção que estabelecíamos com os nossos companheiros e adversários, o próprio jogo ensináva-nos que o melhor caminho para defender era de forma… colectiva. E dificilmente nos ensinava outro. Havia sempre alguém que tinha assistido, ao vivo ou na televisão, a um grande desempenho de um jogador em marcação individual, ou ouvido adultos a comentar algo desse género, e como bom imitador de ídolos tal qual todos éramos, informava… “hoje marco o João que é o melhor jogador deles!”. Perante a falta de liberdade, desgaste, e condicionamento que a missão lhe proporcionava nos seus momentos ofensivos, ao fim de 5 minutos de jogo, desistia do “João” e empenhava-se em realmente… jogar. O jogo ensinava-nos então, aquando da bola na posse do adversário, que as prioridades deviam ser a nossa baliza, a bola, os espaços, as linhas de passe mais próximas, a posição dos nossos companheiros e finalmente a dos nossos adversários. Jogando sem fora-de-jogo como usualmente sucedia na “rua” e no Futsal, a única excepção seria o adversário esperto que se colocava entre o nosso último defensor e o nosso Guarda-Redes. Nesse caso esse precisava de maior vigilância.

Analisando o Futebol de uma perspectiva macro, e mesmo a evolução científica e filosófica em geral, somos levados a acreditar, que na sociedade dos adultos, impregnada pelo pensamento cartesiano, analítico, mecânico, e pelo reducionismo e atomismo clássicos, tal qual muitas outras ideias como também se torna exemplo a evolução dos métodos de treino, a defesa individual foi algo que o treinador trouxe para o jogo, numa tentativa de simplificar o complexo, de dividir o indivisível, de controlar o incontrolável, de reduzir empobrecendo… Neste enquadramento, ao contrário do que o próprio jogo nos ensinava, o treinador passou a última prioridade: os adversários, para o topo da lista. Indo mais longe, influenciado também pela clássica visão egocêntrica da realidade, na qual o homem tem que estar sempre no centro de tudo.

Mas na verdadeira realidade, a… complexa, temos como consequência a também não linearidade da evolução. Deste modo, também num contexto de esquecimento de uma história assim não tão antiga, mas fundamentalmente como vimos atrás, pela renovidade que a ideia traz ao jogo e sucesso pontual que promove, também não é de espantar estarmos, na nossa opinião, a dar um passo atrás. Esperando sempre que, à boa imagem do que tem sido até agora a história evolutiva da nossa espécie, seja para posteriormente darmos dois à frente.

O autor (Nuno Amieiro, 2004), na sua tese e livro sobre a Defesa Zona, expunha que “no seu livro, Jorge Valdano falava apaixonadamente sobre a «zona», parafraseava Menotti (“A zona é liberdade”), Maturana (“A zona faz da defesa a arte de atacar”) e deliciava-me com as descrições da «zona» inteligente, agressiva e harmoniosa do Milan de Sacchi. A «zona» de que Valdano falava aproxima-se da «zona» com que tive, pela primeira vez, contacto, aquela a que, superficial e esporadicamente, o professor Vitor Frade fazia referência nas aulas”. Neste sentido, trazemos outra ideia. A Defesa Zona, induz muitas vezes as pessoas em erro, pela interpretação literal que dela fazem. Defender Zona não implica defender só zonas ou espaços, como vimos atrás. Implica uma preocupação até maior com outras referências do jogo como a nossa baliza e a bola, e ainda outras como as linhas de passe mais próximas, companheiros e adversários. Mas acima de tudo uma preocupação pelo sistema dinâmico que o jogo representa, e dessa forma pela implicitude da interacção. Como Vítor Frade sustentou no seu projecto de Doutoramento em 1990: A interacção, invariante estrutural da estrutura do rendimento do Futebol. A Defesa Zona implica então um pensamento… colectivo. Logo, também em contra-ponto à Defesa Individual, não será mais apropriado lhe chamarmos… Defesa Colectiva?

Novamente (Nuno Amieiro, 2004), parece concordar e apresentar argumentos reforçando essa ideia ao descrever que “são três pressupostos tácticos fundamentais desta forma de organização defensiva. São estas referências defensivas colectivas que, quando correctamente perspectivadas, nos permitem obter superioridade posicional, temporal e numérica na defesa. No fundo, ao manifestar-se, a «zona» expressa:

  • Um «padrão defensivo colectivo»;
  • Complexo, é verdade;
  • Mas também dinâmico e adaptativo;
  • Compacto, homogéneo e solidário.

Serão estas «propriedades», emergentes da coordenação colectiva, a dar verdadeira coesão defensiva à equipa. Esta forma de organização defensiva revela-se, como tal, não só a mais eficaz defensivamente, mas também a que, de longe, melhor responde à «inteireza inquebrantável do jogo». Revela-se, assim, uma necessidade face à «inteireza inquebrantável» que o «jogar» deve manifestar. Não é de estranhar, portanto, que este seja o «padrão defensivo» das equipas de top”.

Arrigo Sacchi, a propósito do seu AC Milan, relata que conseguiu “convencer Gullit e Van Basten dizendo-lhes que cinco jogadores organizados seriam capaz de vencer dez jogadores desorganizados. E eu também consegui provar isto. Peguei em cinco jogadores, Galli na baliza e depois Tassoti, Maldini, Costacurta e Baresi. Do outro lado, coloquei 10, Gullit, Van Basten, Rijkaard, Virdis, Evani, Ancelotti, Colombo, Donadoni, Lantignotti e Massaro. O grupo composto por 10 elementos tinha 15 minutos para marcar contra os meus organizados. Só havia uma única regra, se nós recuperamos a bola, a outra equipa tinha de começar desde trás novamente, 10 metros antes do meio campo. Continuei a fazer. A equipa com 10 elementos nunca conseguiu marcar, nem uma vez”. Não queremos imaginar Sacchi, e mesmo Capello, a assistirem à “organização defensiva” do actual AC Milan…

“Apesar de estarmos na II Divisão, fomos o primeiro clube alemão a jogar em 4x4x2 sem libero. Vimos um vídeo muito chato, mais de 500 vezes, com o Sacchi a treinar a defesa, sem bola, com o Maldini, Baresi e Albertini. Pensávamos que se os outros fossem melhores tínhamos de perder. Depois aprendemos que tudo é possível, podemos bater os melhores usando táticas.”

(Jürgen Klopp, 2013) sobre a influência de Wolfgang Frank, que treinou Klopp no Mainz e era um admirador dos métodos de Arrigo Sacchi no AC Milan

Um Real engano

“(…) o trabalho sobre a análise do jogo tem-se focado, predominantemente, no uso de descrições simples e associações entre variáveis, levando à investigação do fenómeno sem considerar os aspetos dos sistemas complexos, dinâmicos e interativos, que poderão caracterizar melhor o rendimento num jogo de futebol.”

Hugo Sarmento citado por Luís Cristóvão, 2017

Tem sido constante o ataque ao rendimento de Karim Benzema pela escassez de golos marcados do jogador Francês. O próprio Cristiano Ronaldo também tem sido alvo de criticas similares dado o menor número de golos marcados na presente época desportiva.

“Esta é uma crise sem precedentes dos habituais goleadores do Real Madrid nos últimos anos. Na mesma altura da época passada, Ronaldo e Benzema somavam 12 golos no campeonato. Em 2014/15 já tinham apontado 27 golos no mesmo número de jogos. Agora estão ao nível dos piores da Europa e longe dos melhores. Neymar e Cavani, do PSG, somam 22, enquanto Suárez e Messi, do Barcelona, já marcaram 17.”

“Ronaldo e Benzema são a pior dupla da Europa”

“Quando Ronaldo não se encontra na melhor forma é fácil perceber a má forma do Real Madrid à frente das balizas. No entanto, a seca de golos de CR7 não pode ser o único motivo que explica o mau momento pelo qual passa a equipa de Zidane. (…) Mais que Ronaldo, Benzema está a ser obliterado pelas críticas à maneira como pouco tem contribuído com golos para a equipa. O francês não está a acertar com a baliza e quando o faz, não consegue dar seguimento com boas exibições. Sendo um dos principais elementos da badalada BBC, Benzema tem apenas seis golos marcados esta temporada, o que para um avançado do Real Madrid é um número fraco. O avançado já leva 22 partidas disputadas e conta com apenas três assistências.”

“Um Real Madrid que está em crise e já não consegue disfarçar”

Porém, os que procuram explicar o menor rendimento colectivo do Real Madrid por um fragmento da realidade ignoram outros números. O facto é que o Real Madrid, colectivamente, é a quinta equipa com mais golos marcados na Europa.

Equipas mais goleadoras da Europa – 26 de Fevereiro de 2018 (SportTV, 2018)

Portanto, se os golos marcados pela equipa não são a explicação para o seu menor rendimento global, não serão com certeza os golos, nem as assistências, do ponto de vista individual. O objectivo do artigo não é procurar a explicação para o momento do Real Madrid. Pela análise ao seu jogo, é um exercício sempre interessante, mas difícil. Pior ainda se tivermos em conta a complexidade que envolve a dinâmica de uma equipa de futebol. O dia-a-dia, o treino, o plano individual, as relações internas, externas, etc. O propósito é, uma vez mais, sublinhar como o pensamento reducionista está sempre presente na forma como observamos a realidade. Se tivermos em conta a proposta por nós apresentada, o jogo de futebol acontece em 12 sub-momentos.

Momentos e Sub-Momentos do jogo.

A finalização da equipa só está presente em dois deles, assim como a “assistência”. No que toca ao que é visível no campo, não estarão possíveis explicações para o rendimento do Real Madrid nos outros 10 sub-momentos? E será que os jogadores criticados, não serão importantes noutros sub-momentos do jogo? Por se posicionarem na maior parte do tempo de jogo mais perto da baliza adversária, têm obrigatoriamente que ser os melhores marcadores da equipa?

Parece-nos clara a resposta à última questão. Depende da forma de jogar da equipa. Se a mesma proporcionar situações de finalização a esses jogadores e os mesmos falharem-nas sistematicamente, logicamente que isso é um dado negativo do ponto de vista individual. Porém se a mesma os usar como “um meio para chegar a”, então a crítica individual é absurda. Não tendo oportunidades para marcar, não poderão com certeza somar golos. Voltando ao contexto particular do Real Madrid, talvez Benzema e Ronaldo não estejam no melhor momento no que toca à sua eficácia. Porém, não estarão, mais do que nunca, a dar uma maior importância ao jogo colectivo da equipa? Pelo menos no momento ofensivo? A própria decisão, no passado fim-de-semana, de Cristiano Ronaldo ceder a marcação de uma grande penalidade a Benzema talvez reflicta isso mesmo. E não se tratou de uma assistência. Mas de uma preocupação com o outro. A tal relação interna. O próprio José Mourinho, em 2011, quando treinou o Real Madrid descrevia assim Benzema:

“Karim está a trabalhar mais do que nunca, sobretudo na fase defensiva, e é um jogador nada egoísta e que faz jogar a equipa.”

José Mourinho, 2011, citado por João Paulo Godinho, 2011

Segundo o autor (Amado, 2010), “o Futebol é tudo menos um jogo simples e um avançado tem mais para fazer em campo do que ser o elemento mais avançado de uma equipa. O Futebol, jogado como um todo, não pode estar refém de jogadores com funções específicas; uma equipa, para fazer golos, não pode estar refém do seu atleta mais adiantado. Tem de ser capaz de tornar complexo o seu jogar a ponto de ser absolutamente indiferente quem faz ou não faz os golos”. O avançado espanhol, Fernando Torres, citado por (Bouças, 2012), a propósito do seu papel na selecção espanhola, descreve que “é preciso ter paciência. É complicado jogar. Deves fixar o central, é um papel secundário, porém é o melhor para a equipa. É um luxo jogar nesta selecção. Aqui pode acontecer que te contenhas mais na partida e não faças golos, mas é o melhor para a equipa. Há dias que pensas: “Que partida fiz! Oxalá jogue assim sempre.” E ouves críticas por todos os lados. E no dia em que estás lento, mal e erras, mas marcas dois golos, aplaudem-te. Aprendi a viver com isto.” Pedro Bouças sustenta que estamos numa era em que perceber o futebol é muito mais complexo que o que na realidade parece. Há onze jogadores, e todos devem ser responsáveis por tudo dentro do campo. Uns dias ganhas notoriedade, noutros parece que o jogo te passa ao lado. Há é que decidir bem a cada instante. Se assim for, a equipa estará sempre mais próxima do sucesso”.

Na sua obra, Edgar Morin, explica que “a palavra compreender vem do latim, “compreendere”, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de explicação, ou seja, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos. Mas a compreensão humana vai além disso, porque, na realidade, ela comporta uma parte de empatia e identificação. O que faz com que se compreenda alguém que chora, por exemplo, não é analisar as lágrimas no microscópio, mas saber o significado da dor, da emoção. Por isso, é preciso compreender a compaixão, que significa sofrer junto. É isto que permite a verdadeira comunicação humana. A grande inimiga da compreensão é a falta de preocupação em ensiná-la. Na realidade, isto está-se a agravar, já que o individualismo ganha um espaço cada vez maior. Estamos a viver numa sociedade individualista, que favorece o sentido de responsabilidade individual, que desenvolve o egocentrismo, o egoísmo e que, consequentemente, alimenta a autojustificação e a rejeição ao próximo. A redução do outro, a visão unilateral e a falta de percepção sobre a complexidade humana são os grandes empecilhos da compreensão. Outro aspecto da incompreensão é a indiferença. (…) Por isso, é importante este quarto ponto: compreender não só os outros como a si mesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a autojustificação, pois o mundo está cada vez mais devastado pela incompreensão, que é o câncer do relacionamento entre os seres humanos.”

“Mourinho dizia-me: Tranquilo, não precisas de marcar golos para ser o homem do jogo.”

Didier Drogba citado por (Bouças, 2013)

“Pergunto-me por exemplo, quantos não serão os “dados” existentes à cerca da pergunta seguinte: Quais são, os elementos estruturais de todo o jogo de futebol? A estrutura de acção não é mecânica, no entanto, o saber compartimentado do “nosso” futebol segregou já demasiadas previsões especializadas. Deve continuar o “futebol”, a deixar-se cegar pelo erudito reducionismo? Para nós, a formulação de MODELOS DE INTELIGIBILIDADE afastados da FRAGMENTARIDADE DOMINANTE, e ajustados à natureza complexa do objecto empírico, parece-nos de premente necessidade.”

Vítor Frade, 1990, no seu projecto de tese de doutoramento, em 1990

“Sem equipa

nenhum jogador cresce,

mas só boa equipa fica

se ser bom jogador acontece.”

(Frade, 2014)