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O Desporto Escolar enquanto oportunidade para passar valores. A jogadores, treinadores e pais.

“O técnico aponta para o desporto escolar como caminho para criar a cultura desportiva que falta e que poderia gerar interesse e aumentar a presença em estádios e pavilhões para jogos ao vivo, algo ainda em falta num país que já consegue formar atletas incríveis.”

(Vítor Matos, 2024)

O pensamento de Vítor Matos sobre o Desporto Escolar é sem dúvida interessante e importante, sendo fundamental a reflexão sobre o papel do mesmo no desenvolvimento do Desporto associativo.

Se do ponto de vista desportivo, um maior investimento neste contexto propiciaria mais um espaço que procurasse colmatar o desaparecimento das práticas e jogos que se realizavam na “rua”. Simultaneamente permitiria oportunidade de prática e evolução aos jovens que, ou ainda não manifestam o desejo de progredir no seu percurso desportivo, ou que não são seleccionados para o desporto formal (clubes). É sabido que os timings de maturação e desenvolvimento são diferentes para cada um e que muitos, também por essas razões acabam por não encaixar imediatamente nos clubes. Esse é outro problema, outra discussão.

“Está a acontecer uma espécie de fabricação de campeões em laboratório, o que é uma ilusão. Tem de haver um trabalho correto ao nível do clube, da escola, do desporto escolar, da educação física… Porque o trabalho no clube e no desporto escolar é para os que têm mais jeito, mas a educação física é para todos. Mas em todos estes casos há que respeitar as tais etapas de desenvolvimento das crianças e dar-lhes autonomia e liberdade de participação.”

(Carlos Neto, 2017)

Porém, o Desporto Escolar nunca será o verdadeiro substituto da “rua” e o principal meio introdutório da criança ao jogo e ao desporto. Deste modo tudo deverá ser feito para preservar a “rua” e todas as suas qualidades. Desde logo por ser genuinamente prática deliberada, território sagrado da autonomia, da auto-aprendizagem, da criatividade e derradeiramente, da… liberdade. Porque o Desporto Escolar será sempre dirigido por adultos, com tudo o que de bom e mau estes potencialmente podem trazer. Paralelamente, se no mesmo também há assistência, nomeadamente dos pais, isso torna o contexto abissalmente diferente.

E sobre estas duas últimas características, torna-se importante dar dois exemplos negativos, até para percebermos o que urge mudar. No actual Desporto Escolar existem treinadores que o conduzem como se tratasse do desporto de rendimento dos adultos. Existem exemplos de treinadores que, em competição, deixam, sistematicamente, jovens jogadores e jogadoras com pouca ou sem qualquer minuto de utilização. Tudo pelo resultado. Se já seria altamente questionável em treinadores de formação, quando são professores de Educação Física a fazê-lo, se a situação já era grave, torna-se ainda mais perversa. Ou, noutro exemplo, quando o feedback e o estilo de liderança na relação como os jogadores / jogadoras é tão agressivo e autocrático que até com adultos os mesmos seriam questionáveis.

Por outro lado, os maus exemplos também vêm da assistência, propriamente dos pais. Exemplos de palavras agressivas, injuriosa e repletas de ódio, contra árbitros, adversários e os próprios filhos chegam-nos com uma frequência assustadora. Inclusive relatos de agressões entre pais. Futsal, basquetebol, voleibol. Não é o desporto em si e até os maus exemplos que possam vir do desporto de rendimento que são decisivos. O que é decisivo, são a falta de regras, de educação, de valores. Dos adultos. Sendo que a crescente desvalorização dos contextos informais, semi-formais, formais e da própria educação física contribuem decisivamente para sintomas preocupantes que vamos assistindo na nossa sociedade. Porque, quer acreditem, quer não, o desporto e o jogo, são um dos principais veículos de transmissão de… bons… valores.

Assim, concordando com as palavras de Vítor Matos, mas mais do que cresçam em número, preocupa-nos que os espectadores cresçam em qualidade. Será um enorme desafio para o Desporto Escolar, mas também para o federado, a educação desses espectadores. Até porque o cenário alternativo, a proibição de espectadores no Desporto Escolar e mesmo no federado de Formação, colocando a possibilidade de resolver o problema a curto prazo, criará um ambiente hermético que não preparará os jovens desportistas para a pressão que mais tarde irão ser sujeitos na eventualidade de progredirem para o desporto de rendimento. Mas até podemos até acrescentar… em muitas outras vias profissionais. Por outro lado, proibindo espectadores nesses contextos, perder-se-á essa oportunidade preciosa de fazer reflectir e passar valores em quem frequenta a bancada. Porque nunca é tarde para crescer.

“Devemos olhar para os espaços de treino com mais cuidado; devemos olhar para a formação de treinadores com mais cuidado; devemos olhar para o desporto escolar com muitíssimo cuidado e atenção, pois é o desporto escolar que é o início de tudo. Se Espanha, Alemanha e Inglaterra avançaram, esteve tudo muito na base do desporto escolar, na forma como os professores e a dinâmica do ensino despertou os alunos para aquilo que são as necessidades da prática desportiva e despertou os pais para esse fenómeno.”

(Luís Castro, 2018)

Free the Kids II

O jornal Expresso publicou um artigo, contendo várias opiniões sobre o “ensino doméstico” enquanto alternativa ao tradicional ensino escolar.

http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-03-13-Viver-e-aprender-sem-ir-a-escola

Após publicarmos o video sobre a eventual ameaça à “liberdade” que as crianças vivem na sociedade actual em www.sabersobreosabertreinar.com/2016/03/free-kids.html, este artigo reforça o problema. No mínimo devemos reflectir sobre algumas ideias que descrevem a aprendizagem de crianças na ausência do meio escolar.””Até aí, Simone tinha aptidão para as letras (começou a escrever as primeiras linhas aos 3 anos). Com as aulas, que nem eram diárias, a mãe começou a reparar que a menina parecia estar a ganhar “relutância” a algo que gostava. “Quando me pergunta qual é aquela letra eu não vou negar a resposta à criança… Eles começam e nós apoiamos. Ela começou a escrever coisas muito interessantes com letras maiúsculas de ouvido. Ouvia, juntava e escrevia“.”

““A nível emocional são muito seguros de si e têm uma auto estima muito boa, são muito sinceros, espontâneos e nada envergonhados. Não pensam que têm de fazer as coisas para agradar aos outros, para fazer boa figura ou porque vão ser avaliados. Conhecem os seus próprios limites e param quando sentem que os estão a ultrapassar, sem para isso necessitarem de castigos, ameaças ou coerção”, conta a antiga professora. Timo “devora livros”. Por dia lê pelo menos dois. Agnes acredita que talvez o gosto pela leitura não fosse tanto, se o filho andasse na escola. “Aprendem muita coisa. Talvez os outros também aprendam, mas aprendem pela repetição e memorização, por medo de más notas e pela pressão de pais e professores. No ensino doméstico, as crianças têm a possibilidade de aprender por motivação intrínseca. A maioria das crianças da idade deles não gostam e ler”, acrescenta.”

“Lá para as 6h da manhã, os miúdos já estão a pé. Acordam cedo e cheios de “inspiração e vontade de fazer mil e uma coisas”. Passeiam pelo rio e o mato. Trepam às árvores e mergulham nas águas. Em casa, “brincam muito, constroem legos e ajudam na horta”. Um dia na vida de Timo e David não tem espaços em branco. Na aldeia, já todos sabem que os dois andam sempre por perto. “Eles veem a vida real: nos correios são eles que põem os selos e no café vão ter com a padeira para ver como se faz o pão, ajudam o moleiro a fazer a farinha… São muito amados e mimados por toda a gente, pois são os únicos que andam por lá enquanto todos os outros estão fechados na escola”. Agnes não prende os filhos e garante que se alguma vez lhe pedirem para irem à escola, irão. Mas por agora nem Timo nem David parecem interessados. “Coitados dos outros meninos, estão ali o dia todo presos, sem poderem fazer o que querem”, dizem os irmãos. “Dizem-me que quando crescerem querem ser exploradores multifacetados, o que na realidade já são. Exploram o mundo real diariamente, em todas as suas vertentes”, conta a mãe.”Noutro artigo, o matemático Edward Frenkel alinha-se na mesma perspectiva. Segundo ele, “muita gente tem uma relação traumática com a Matemática. Uma das razões tem a ver com o facto de o ensino da Matemática, tal como é feito na grande maioria das escolas, dar demasiado ênfase à resposta. Em vez de se encorajar os nossos alunos a serem curiosos e a procurarem a resposta, nós exigimos que eles a dêem. O ensino baseia-se quase exclusivamente em testes e em ver em quem é mais rápido a encontrar a resposta. E muitos sentem-se embaraçados e inferiores porque não conseguem fazê-lo. Essa dor fica. Até podem depois não se lembrar do incidente concreto, mas o trauma ficou lá”. Este testemunho reforça ainda a ideia transmitida no nosso artigo sobre a intensidade, particularmente o caminho educativo e consequentemente social que estamos a adoptar, no qual se coloca em causa a autonomia, a criatividade, a inteligência e a individualidade em troca da mecanização, da rapidez não pensada, da estandardização.Agravando tudo isto, temos ainda o crescente comportamento negativo de muitos pais…