A estupidez precoce
Um bom artigo sobre o Futebol de Rua, que desde já aconselhamos a ler, levantou-nos algumas questões. O autor, Carlos Almeida, interroga-se:
“não estaremos nós a promover a «especialização precoce»? A especialização precoce é definida como o início prematuro: (i) no desporto, sobretudo, num só desporto; (ii) na prática/treino formal de alta intensidade; (iii) em contextos de elevada competitividade. Quem quiser colocar em causa esta constatação, que assista a um torneio de Petizes (Sub-7) ou Traquinas (Sub-9) e observe, criteriosamente, os comportamentos de treinadores, de pais e do público em geral. É o envolvimento típico de um jogo de seniores. Chegámos ao ridículo de ouvir o árbitro ser vaiado antes de o jogo começar, para não mencionarmos episódios de discussão entre treinadores ou de pancadaria entre pais.”
Na nossa perspectiva, a questão é outra e não reside na esfera da especialização precoce.
Se pensarmos objectivamente no ponto (i), as próprias crianças procuram desde muito cedo a prática desportiva e nenhuma criança pratica uma só actividade, um só desporto. As suas experiências são por norma ecléticas e multilaterais. Assim, o primeiro problema coloca-se da interpretação que temos de desporto. O mesmo não tem necessariamente de ter contornos formais nem estar dependente ou influenciado por adultos. Dada a natureza humana, a criança explora, experimenta e interage, com tudo o que lhe suscita curiosidade. Assim, estamos perante um universo vastíssimo, o qual contém inúmeras actividades físicas, psico-motoras, outras apenas mentais, etc.. Se entretanto, dedica mais tempo a uma dessas actividades, isso não pode ser considerado errado, é simplesmente uma natural preferência pessoal. Errado é serem-lhe retirados, pela sociedade, tempo e espaço para todas as outras actividades e experiências, nomeadamente as na rua e nos recreios, e em contexto de auto-descoberta.
Hoje falava com um amigo, professor de Expressão Motora, que desabafava que os seus miúdos estão cada vez mais difíceis de gerir, pois quando confrontados com algum espaço para darem expressão ao seu potencial motor, à sua necessidade de jogar e mesmo a alguma liberdade, surge uma “catarse” difícil de controlar. É verdade que nem sempre bem, mas a Expressão Motora e a Educação Física, dentro do sistema de ensino sempre procuraram combater um problema grave e crescente que os adultos estão a impor às crianças. Mas a verdade é que travam uma luta inglória. Num artigo publicado no passado, trazíamos um vídeo com entrevistas a prisioneiros, que tendo em conta as suas vivências, pensavam na vida das crianças de hoje. No passado fim-de-semana, um dos oradores do I Congresso Internacional da Periodização Táctica, voltou a puxar o assunto. Recuperamo-lo, pois nunca é demais sublinhar o problema.
Simultaneamente, errado é ainda a criança ser empurrada, como imposição social, para uma escola de futebol ou de outra qualquer modalidade, onde a prática analítica, mecânica e altamente directiva não lhe permite descobrir e resolver os problemas que os jogos lhe traz, castrando-lhe a autonomia, mas acima de tudo, não lhe proporcionando o essencial… a satisfação. No fundo, como se não chegassem todas as outras imposições dos adultos, este conceito de “desporto” surge como mais outra imposição, muitas vezes motivado por razões preocupantes, como a falta de tempo para os filhos, ou um desejo dos pais para desde cedo tornarem o filho num futuro desportista profissional.
Quanto ao segundo ponto (ii), dada a nossa perspectiva de intensidade, já amplamente difundida, a mesma não se torna prejudicial à criança. Antes pelo contrário. Porque simplesmente a intensidade que idealizamos, à luz do pensamento complexo, refutando o pensamento cartesiano e portanto não separando decisão de execução, será fazer bem, no tempo certo. Sendo assim, é no fundo o que a criança procura em todas as actividades que explora: torna-se melhor, evoluindo respeitando as suas qualidades, interesses, fadiga, timings… Na perspectiva convencional de intensidade, na qual o que importa é fazer tudo rápido, de forma agressiva, mecânica, despejada de consciência e inteligência, é claro que a mesma é prejudicial para a criança. E vamos mais longe… também o é para o adulto.
“Habituámo-nos ao instantâneo. Temos comida instantânea, fotos instantâneas e café instantâneo, e agora começamos também a esperar êxito instantâneo.”
(Wein, 2004)
O ponto (iii) reflecte tudo o resto. E a questão coloca-se, se estamos perante a competição que por exemplo os jogos na Rua traziam à criança, altamente benéficos e arriscamos mesmo a dizer, necessários ao seu desenvolvimento, ou se estamos perante a péssima competição dos adultos protagonizada em muitos contextos profissionais e amadores, da qual o autor Carlos Almeida dá vários exemplos. Essa mesma “competição” que é importada pelos adultos, todos os fins-de-semana, para o desporto infanto-juvenil.
Portanto, o problema não se situa numa eventual especialização precoce, um chavão também inventado pelos adultos para catalogarem as suas asneiras. O verdadeiro problema é a transferência de muita estupidez dos adultos para a vida das crianças. Assim, podemos, com objectividade, explicar que o problema é a imposição do adulto à criança de uma… estupidez precoce.
“Um estudo, realizado em Inglaterra, revelou que os taxistas desenvolvem muitos mais novos neurónios que os motoristas de autocarro.”
Vítor Frade, 2017 – I Congresso Internacional de Periodização Táctica