Tag Archive for: Carlos Queiroz

“Se queres cantar não vais para bailarino só porque desafinaste na outra noite”

“O jogador português gosta de ter clareza táctica, gosta de ter informação táctica.”

“A geração que está, e quando digo geração estou a pensar nos que têm 17 e 39 anos, é formada por jogadores com cultura tática tão grande que quando falam é uau! É incrível. Têm uma linguagem, conhecimento e uma mentalidade completamente diferente. Tem a ver com isso: cresces com uma cultura, com uma paixão pelo jogo tão grande que este tem de ser o resultado. E isso tem de ser incentivado.”

(Vítor Matos, 2024)

Roberto Martínez toca nas duas principais qualidades que faltavam ao “jogador português” para darmos o salto competitivo colectivo e nos aproximarmos dos troféus. A paixão pelo jogo não é uma delas porque essa, desde que há memória do jogo em Portugal, sempre por cá existiu.

A transposição da competitividade que manifestávamos entre nós, não só noutros contextos culturais, mas também no jogo da “rua” para a competição formal e principalmente, internacional, fez crescer o jogador português para o patamar dos melhores. Dessa forma, hoje, não é surpresa para nós termos portugueses nos melhores clubes e equipas do mundo e que a nossa selecção seja reconhecida como uma das melhores.

Ainda em plenos anos 80’s e início dos 90’s o nosso Futebol vivia um clima de desconfiança no seu potencial, de conformismo com a nossa pequenez geográfica e populacional e de nos posicionarmos num segundo plano internacional no âmbito do jogo. Na realidade, não só do jogo, mas aqui o nosso foco vai para o Futebol. Vitórias sobre as “poderosas” Alemanha e Inglaterra, por exemplo, eram surpreendentes e celebradas como feitos dificilmente igualáveis. Hoje, como o nosso seleccionador e jogadores nos transmitem, são exigência. Dos próprios. A mudança cultural foi então enorme.

Um dos grandes, se não o principal momento desta mudança, foi o trabalho de Carlos Queiroz e Nelo Vingada com as selecções jovens no final da década de 80. De imediato foram colhidos frutos competitivos em campeonatos jovens, mas perante o fulcro do Futebol de Formação, não seriam esses os mais importantes. Passados alguns anos, essas gerações, na equipa principal portuguesa, mas também em vários grandes clubes por toda a Europa alcançaram um sucesso continuado. Esse sucesso influenciou e contagiou quem veio a seguir.

Mas a mentalidade não cresceu no vazio. Para além da criação de grupos coesos e fortes, Queiroz e Vingada, estimularam qualidades e passaram, de forma intensiva, ideias e conhecimento sobre o jogo. Além disso produziram conhecimento para terceiros, que ainda hoje se revela actual. A partir daí, clubes, universidades, jogadores e apaixonados pelo jogo na comunicação social e mais tarde na internet, contribuíram para a revolução a que assistimos e da qual hoje colhemos frutos. Como consequência cresceu a confiança nesse género de processo. Federação e clubes investiram, organizaram-se e proporcionaram contextos de qualidade aos jovens jogadores. Ainda que na maioria dos clubes o processo esteja a ser errático, lento e duro.

O jogador português passou, não só de apaixonado por esse conhecimento, como convicto da sua importância na obtenção de sucesso. A esse conhecimento se tem chamado táctica. Porém, ela não se restringe ao conhecimento teórico, a ideias, ou se reduz ao sistema ou mesmo princípios de jogo. A dimensão táctica que nos elevou ao actual patamar, como defende o professor Vítor Frade, não é apenas uma dimensão. É muito mais do que isso. É uma supra-dimensão. O que significa que engloba todo o comportamento do jogador e da equipa. Comportamento que emerge da interação de qualidades físico-motoras, recursos técnicos, conhecimento do jogo, aptidão emocional e / ou mentalidade. O que isto significa, é que o conhecimento do jogo entre outras qualidades, potenciou o sucesso e consequentemente fez crescer a confiança. E de forma geral, a mentalidade. E desse modo, tal sucesso provocou mais procura por conhecimento. Tal como Roberto Martínez aponta. 

Hoje, o apetite do jogador português por informação não é uma questão de moda. É, junto das outras qualidades, um reconhecimento do caminho que nos levou ao sucesso que actualmente vivemos. É esse todo, a táctica, enquanto supra-dimensão, ou por palavras mais simples, o… “jogar” de… sucesso que jogadores e treinadores perseguem, que faz com que um país tão pequeno como também defendeu o nosso seleccionador na mesma entrevista, se torne incrível e único no mundo do ponto de vista da produção de talento para este jogo. Essa vantagem não é portanto genética, é… cultural!

“O indivíduo todo, inteiro

emerge da cultura táctica

que sustenta o bom jogo, primeiro

no jogar o jogo como prática!”

(Vítor Frade, 2014)

Ainda o “Bacalhau à Brás”, os princípios de jogo numa perspectiva histórica, a recusa da defesa individual e nova passagem pela… intensidade

Se em artigos anteriores falávamos do pensamento disruptivo que alguns autores estão a trazer ao Futebol, o artigo O Futebol e o Bacalhau à Brás: A falácia dos princípios de jogo de Nuno Amado, o autor do blogue Entre Dez é mais um excelente exemplo e veio no mínimo lançar a discussão sobre um tema considerado sagrado no ensino e treino do Futebol. Como tantas vezes a história nos demonstrou, os paradigmas serão sempre muros a transpor no trilhar da evolução. Portanto, mesmo conceitos aceites pela generalidade das pessoas, nas quais logicamente nos incluímos, tenderão a ser substituídos por teorizações mais complexas, e dessa forma mais próximas da realidade, sem contudo nunca a conseguir reproduzir na sua totalidade. Arriscamos que a compreensão que toda a complexidade que o Universo nos proporciona será o derradeiro desafio com que a humanidade se confrontará, o qual eventualmente perderá.

Assim sendo, os princípios do jogo defendidos no trabalho que Carlos Queiroz realizou em 1983, desenvolvidos a partir das obras de Friedrich Mahlo e Leon Teodorescu em 1977, procuraram teorizar uma realidade complexa – o jogo de futebol – que como qualquer outra teoria e paradigma, encontraria mais tarde ou mais cedo limitações. Na sua génese, Teodorescu definiu que os princípios “constituíam regras de base segundo as quais os jogadores dirigem e coordenam a sua actividade – consideradas individualmente e em colectivo – durante as fases”.

Ainda o "Bacalhau à Brás", os princípios de jogo numa perspectiva história, a recusa da defesa individual e nova passagem pela... intensidade - Análise sistémica do jogo: Fases e Princípios de jogo, original de (Queiroz, 1983).

Análise sistémica do jogo: Fases e Princípios de jogo, original de (Queiroz, 1983).

Olhando para a evolução do próprio jogo, a mesma condiciona o transfer entre os princípios e a realidade do jogo. Houve com certeza um momento primitivo no jogo onde jogadores e treinadores não apresentavam consciência para os próprios Princípios Fundamentais do jogo: recusar inferioridade numérica, evitar igualdade numérica e criar superioridade numérica. Jogava-se com total ausência de consciência táctica. Pensamos, no dribbling game ou no kick and rush, nos quais, por exemplo, os princípios específicos do ataque, à excepção da progressão, seriam inexistentes. Naturalmente, o conhecimento do jogo evoluiu e do ponto de vista teórico os princípios fundamentais tornaram-se muito curtos para sustentar o jogo das equipas. Os Princípios Específicos ganharam importância e o trabalho teórico de Queiroz foi aplicado com sucesso pelo próprio nas selecções jovens portuguesas. Potenciou um número invulgar de talentos até esse momento e consequentemente, os desempenhos das equipas levaram mesmo a títulos inéditos futebol de formação português.

Hoje, com a enorme evolução da organização defensiva das equipas, surgem novos desafios ao momento ofensivo, por forma a desorganizar quem defende. E neste novo quadro, como Nuno Amado evidenciou, os quatro princípios específicos são insuficientes para resolver muitos problemas, nomeadamente no sub-momento ofensivo de construção. Isto se os interpretarmos no seu sentido literal, o que até parece acontecer com muitas personagens e equipas que fazem da progressão e do jogo vertical lei, as mesmas que com essa filosofia confundem o “fazer rápido”, o “fazer muito” e a agressividade com a verdadeira intensidade do jogo de futebol, que como já defendemos, é uma intensidade táctica. Contudo, na sua obra o próprio Leon Teodorescu ressalvou a importância da “manutenção da posse de bola. Respeitar este princípio significa evitar o risco irracional, presente nalguns jogadores, através do qual se perde o esforço colectivo dos companheiros. Se as acções individuais ou as combinações tácticas utilizadas na preparação do ataque não resultam, recomenda-se que as mesmas se retomem calmamente e não numa aventura”. Portanto Teodorescu leva-nos a uma interpretação dos princípios de jogo. Já Francisco Silveira Ramos, em 1996, considerava que os princípios “constituem uma forma ordenada e extremamente rica de orientar a acção dos jogadores, generalizando de forma abstracta, um conjunto de regras de natureza táctica, que permitem uma adequada intervenção nos diversos casos concretos que o jogo coloca”. Silveira Ramos, com ideias também à frente do seu tempo, sublinha o seu carácter abstracto perante a realidade e posiciona-os, não como condicionadores, mas como orientadores dos jogadores. Assim, esclarece desde logo que quem comanda é sempre o jogador.

Talvez pelas limitações conceptuais que aqui constatamos, deparou-se a necessidade de evolução da teorização e modelagem do jogo. Surgiram princípios operacionais, comuns a diversos Desportos Colectivos, que procuravam objectivos comuns nos diferentes jogos. Porém na busca de uma ainda maior complexidade e especificidade, adaptado de Guilherme Oliveira, citado por (Esteves, 2010), emergem os Princípios Culturais. Estes são caracterizáveis numa equipa, região, país, etc., observáveis na forma como uma determinada equipa joga. Portanto, estes princípios são variáveis em função de cada modelo de jogo, emergindo como regularidades nos quatro momentos do jogo. O autor (Maciel, 2011) reforça que estes princípios “são padrões de intencionalidade relativos ao jogar que sustentam os critérios expressos pelas várias escalas da equipa (individual, sectorial, intersectorial, colectivo), e que ao se manifestarem com regularidade lhe conferem identidade e funcionalidade nos vários Momentos de Jogo. São portanto ideais de interacção (cooperante e conflituante) que acontecem em termos probabilísticos”. Dependem assim, como o próprio nome indica, das bases culturais e consequentemente das ideias do treinador, do contexto da equipa, do clube e da própria região onde o jogo é praticado. Tem sido a partir os princípios culturais que o futebol tem evoluído nos últimos anos.

Mas mesmo afastando uma interpretação no seu sentido literal, a problemática dos princípios específicos do jogo permanece para nós relevante. Apesar da sua limitação em cobrir todo o jogar das equipas, são eficazes a resolver muitos dos seus problemas. Talvez por isso e pelo seu carácter inovador quando Carlos Queiroz os apresentou, que o seu ensino tornou-se obrigatório nos cursos de treinadores e licenciaturas em Educação Física e Desporto. Segundo (Queiroz, 1983) as formas reduzidas do jogo com que as crianças jogam em contextos informais levam à aquisição dos princípios, tornando-se essas formas um meio fundamental de ensino do jogo. Deste modo, no contexto puro do Futebol de Rua, o mesmo ao ser vivenciado em volume, ensinará então o jovem praticante, por exemplo, no momento defensivo, a colocar-se entre o adversário e a sua baliza (contenção), ensinará um companheiro a garantir uma ajuda para o caso da contenção ser ultrapassada (cobertura defensiva), trará um terceiro companheiro para centro de jogo caso o adversário também faça o mesmo (equilíbrio) e propiciará, caso a situação não esteja controlada a que os restantes companheiros se juntem a defender (concentração). No fundo, o jogo ensina valores colectivos, reflectindo a sua própria natureza colectiva. No entanto, o jogo não ensina os jogadores a defenderem individualmente os seus adversários. Não ensina de forma analítica o “cada um com um” ou o “jogo de pares”, na lógica da responsabilização individual. Se na rua alguém surgia com a pretensão de marcar o melhor jogador da outra equipa, era porque tinha assistido ou ouvido tal comportamento de um adulto. Contudo, aos 5 minutos de jogo a sua atenção já estaria em coisas mais importantes… como a bola e o espaço, em função da bola, da sua baliza e dos seus companheiros. Assim, é nossa convicção que à imagem da Periodização Física, a marcação individual como método de jogo defensivo foi também um erro que o homem, influenciado pelo pensamento cartesiano e analítico, introduziu no jogo e no seu treino como forma de o melhor compreender, avaliar e controlar, realizando o exercício impossível de tornar simples o complexo. Consequência destas ideias, as equipas tornavam-se, como Valdano apontou, reféns do adversário, como Amieiro descreveu, desorganizadas quando recuperavam a bola e nós acrescentamentos individualistas e pouco solidárias num jogo, que recorde-se, é de natureza colectiva. Perante o exposto, estas ideias não cumprem então os princípios específicos defensivos do jogo, e consequentemente, os fundamentais.

Cabe-nos portanto a missão de interpretar os princípios específicos e criar princípios culturais para que estes, mesmo que de forma abstracta, possam acompanhar a evolução natural que o jogo vai vivenciando. Aplaudimos ainda reflexões como a de Nuno Amado, que põem em causa o status quo do actual conhecimento, obrigam a pensar, levantam a discussão, potenciando assim a evolução.

“Adoro a regra

que calibra a emoção,

apaixona-me a emoção que não se nega

a levar a regra à correcção.”

(Frade, 2014)