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Querem matar o Futebol! A história e a irracionalidade sobre a regra mais importante do jogo.

“Ok temos de jogar bem. Mas o que é jogar bem ou jogar mal? Para mim, sempre foi uma questão de distância (entre jogadores)!”

(Johan Cruyff, 2014)

Será o título demasiado dramático? Acabar com o jogo de Futebol tal como o conhecemos, é de facto o que está em causa. Se preferirem uma visão um pouco mais simpática, e à imagem de um clássico filme de ficção, a mudança em causa implicaria transformá-lo numa horrível “criatura” híbrida.

A regra do fora-de-jogo é provavelmente a mais complexa, controversa e que mais debate tem suscitado no Futebol desde a sua introdução em 1863.  Torna-se, em primeiro lugar, fundamental perceber todo o seu enquadramento para a podermos discutir. Tanto que o autor e antigo selecionador Brasileiro e posteriormente jornalista (João Saldanha, 1968) defendeu que a discussão do jogo, nomeadamente o seu treino, táctica e preparação dependeu de “quatro épocas marcantes:

  1. Antes da primeira lei do fora-de-jogo;
  2. Depois do aparecimento desta lei;
  3. O surgimento da segunda lei do fora-de-jogo;
  4. O surgimento da medicina desportiva e da preparação física dos jogadores”.

Antes da introdução da regra, (João Saldanha, 1968) descreve que apenas havia jogadores que corriam ou ficavam parados dentro do campo, sem posições definidas. O futebol era feio e esteve a ponto de sucumbir como jogo ou competição porque não tinha graça. Não adiantava ser um bom jogador, que soubesse driblar e dominar a bola, porque um perna-de-pau qualquer, comodamente encostado perto a uma das balizas, esperava a bola chegar e fazia o golo que dava tanto trabalho ao outro que era bom jogador. O facto de não existir “offside” levava a que um grupinho ficasse perto de uma baliza e outro lá do outro lado também esperando a bola”. Segundo a (Wilkipédia, 2023) “o jogo ficava sem emoção, ao mesmo tempo deixando um vazio no campo”. 

Assim, mesmo nesta fase da história do jogo, transparece então já existir uma sensibilidade e racionalidade sobre o mesmo e a sua evolução. Permitido pelo regulamento desse tempo dada a ausência da regra do fora-de-jogo, os jogadores encontravam oportunidades para finalizar com enorme facilidade. Jogava-se em demasiado espaço e desse modo estávamos perante um jogo diferente, “estranho” e até…. sublinhe-se… menos “emocionante”.  Disputava-se portanto, um jogo caótico que provocava a anarquia e onde a sua dimensão colectiva era assoberbada pelas relações individuais ou no máximo, grupais. Dadas algumas vozes de personalidades históricas no jogo que se têm levantado nos últimos anos contra a regra do fora-de-jogo defendendo mesmo até a abolição da regra, tal cenário caótico descrito atrás resultante dessa eventual decisão foi também referido em 2017 num artigo da JornalismoPortoNet, projecto da Universidade do Porto.

Por outro lado, ao contrário do que por vezes se supõe, sendo o golo raro no Futebol ao invés da grande maioria dos outros desportos colectivos, isso torna-o mais apetecível e mais desejado. E sendo mais difícil de obter, será consequentemente resultado de uma maior necessidade de qualidade individual e colectiva das equipas para o obterem. E deste modo, e não menos importante, maior motivo de celebração e felicidade. Ou seja, traz uma maior paixão ao jogo, facto que é comprovado com a quantidade de adeptos, de sentimentos e de emoções que provoca. Comer todos os dias uma determinada iguaria tenderá a torná-la banal.

Voltando à história do jogo, perante o cenário caótico descrito, o fora-de-jogo foi criado. A (Wilkipédia, 2023) descreve que em 1863 a primeira regra do fora-de-jogo dizia “que um atacante, para não estar em posição de fora-de-jogo, teria que ter, pelo menos quatro jogadores à sua frente”. A introdução da regra provocou às equipas uma maior necessidade de organização. De acordo com o website (História do Futebol), “com essa nova lei, as equipas obrigaram-se a adoptar tácticas relacionadas com posicionamento dos jogadores em campo, visto que o jogo não podia ser mais jogado de qualquer maneira. O sistema táctico começou a ser utilizada pelas equipas ingleses Nottingham Forest e Blackburn Rovers. O sistema era o 2-3-5 e tinha as posições de avançados, médios e defensores”. Deste modo, cada posição / função foi-se também especializando e conhecido determinada nomenclatura. Por exemplo, (João Saldanha, 1968), descreve o “”back” direito, esquerdo; “half” direito, “center-half”, etc.”.

Mas rapidamente se percebeu que a regra trazia outros problemas. Neste sentido, segundo a mesma fonte, “em 1866, vem a primeira alteração: a quantidade de jogadores à frente do atacante passava de quatro para três. Em 1907, vem a segunda alteração na regra: a infração só poderia ser sinalizada se o jogador estiver na outra metade do campo”.

Ainda assim, a regra estava longe da perfeição. Naturalmente, e como sempre, as equipas exploraram ao milímetro tudo o que a lei permitiria. Quem defendia partia a equipa e definia para um dos defensores uma missão especial, ao qual os brasileiras chamaram de “beque-avança” (os defensores eram, em inglês, backs). Segundo (João Saldanha, 1968), um seria o “”beque-espera” e “beque-avança””. Este jogador, como o próprio nome indica, avançaria no momento certo para provocar o fora-de-jogo ao deixar apenas um defensor mais o guarda-redes no seu meio-campo. Por outro lado, segundo vários autores, estes dois defensores, normalmente um com maior papel de marcação e o outro como líbero, seriam suficientes para anular as outras situações ofensivas que escapavam ao fora-de-jogo. Tal é referido pelo mesmo autor ao descrever que “dois beques sabidos paravam todo o ataque adversário”. Saldanha ainda acrescenta que “o ataque tentou defender-se desta artimanha e formava em linha porque a lei também dizia que se o atacante estivesse atrás da linha da bola não estava fora-de-jogo. Foi por isto, inclusive, que os atacantes ficaram sendo chamados de jogadores da “linha”. Mas a artimanha dos beques levava a melhor e enfeiava o jogo”. Como consequência, de acordo com (Rodrigo Vergara, 2016), os jogadores concentravam-se no meio-campo e os jogos acabavam sem finalizações, a não ser na marcação de faltas”.

O brasileiro (João Saldanha, 1968) foi então mais longe e sustentou que tal cenário era era uma contrariedade ao que há de mais puro no futebol – e o que mais deve ser defendido: o talento. Sempre o talento, que é o que desenvolve o futebol e apaixona a multidão. Por esta imposição, a lei teve novamente de ser modificada fazendo surgir a mais importante etapa do futebol”. Assim, segundo o (História do Futebol), quem estudava o jogo compreendeu a falha e foi promovida uma alteração à regra em 1925. A partir desse momento para que um atacante recebesse a bola de forma legal no meio-campo adversário seriam necessários apenas dois defensores entre si e a baliza adversária. A (Wilkipédia, 2023) expõe que deste modo “desafogou-se o meio-campo, já que provocar o fora-de-jogo com um só jogador ficou arriscado e a defesa foi recuada. Por conta disso, os jogos acabaram ficando mais movimentados e a quantidade de golos aumentou vertiginosamente. Como exemplo, a temporada 1924 / 1925 da Football League registrou 4700 golos em 1848 partidas. A temporada seguinte (a primeira após a alteração na regra), para a mesma quantidade de partidas, foram marcados 6373 golos (aumento de 35,6%)”.

Segundo (João Saldanha, 1968), a partir desse momento, “tudo teve de ser modificado, pelo menos onde a lei foi imediatamente compreendida”. Ainda do ponto de vista táctico, o autor (Rodrigo Vergara, 2016) descreve que o meio-campo passou a “lugar de craques. É ali que, trocando passes ou driblando, os bons jogadores avançam com a bola sob controle até o destino final: um remate à distância ou penetração de um atacante por trás da defesa até ao golo. Era do que brasileiros e latino-americanos precisavam”. O autor sustenta ainda que essas culturas de jogo “sempre preferiram carregar a bola e a possibilidade de jogar dessa maneira marcou uma supremacia. Coincidência ou não, o futebol brasileiro como o conhecemos só apareceu depois de 1925. Até então, a a Selecção brasileira só havia ganho um campeonato sul-americano, em 1919. O primeiro reconhecimento mundial veio com o terceiro lugar, em 1938, na Copa da França”. Consequentemente, estruturalmente as equipas também mudaram. O website (História do Futebol) explica ainda que “houve a necessidade de três defesas pelo menos, porque a nova condição do fora-de-jogo permitia que o atacante enfrentasse até um defensor e o guarda-redes. Aumentou a emoção e as oportunidades de golo e evidenciou o talento dos jogadores. Os sistemas tácticos também foram aperfeiçoadas e surgiram outros (…): o famoso WM: o 4-2-4, o 4-3-3, o 5-2-3, etc.“. O autor (João Saldanha, 1968) acrescenta que “aqueles dois espertalhões agora tinham também saber jogar à bola. Não bastava o artifício de um deles adiantar-se. Para deter o ataque era preciso que os três beques se adiantassem ao mesmo tempo, e deixassem apenas o goleiro entre o atacante que iria receber a bola, para colocá-lo em fora-de-jogo. Mas essa era uma manobra perigosíssima. Antes era feita por um só. Agora teria de ser feita por três, numa fração de segundos. Um que ficasse parado e tudo iria água abaixo”.

Como estes factos sucederam há um século atrás, numa sociedade sempre com pressa de viver, em que o presente já se torna um passado longínquo, infelizmente torna-se natural que essa memória se tenha perdido, e que os menos conscientes para a dinâmica do jogo não consigam percepcionar e antecipar o que seria o jogo sem esta lei. Que para nós e tantos outros, se tornou fundamental para o Futebol ser o fenómeno tão amado que é hoje.

Mas a ignorância sobre a regra não conhece tempo. Segundo a (Wilkipédia, 2023), mesmo no momento da sua instituição, já se levantavam vozes contra a regra pois “atrapalharia o espectáculo do futebol”, até porque “os defesas têm justamente a função de defender o adversário na sua própria área”. Ora… noutra perspectiva, será esse o caminho que o Futebol tem percorrido? O pensamento individual a sobrepor-se ao colectivo? O pensamento atomista e mecânico sobrepondo-se ao complexo? Com excepções pontuais dada essa mesma natureza complexa do jogo, todas as variáveis que influenciam o rendimento de uma equipa e ainda o sub-rendimento dos seus adversários, se recordarmos a história das últimas décadas, foram as equipas que abordaram o jogo de forma mais colectiva e complexa que alcançaram mais sucessos e principalmente, de forma continuada. Acreditamos que essa não será só uma das chaves do sucesso no jogo, mas também numa visão mais ampla… também da espécie humana, pois como disse Valdano, “a vida é um desporto de equipa”.

Recentemente, Marco Van Basten, lendário ex-futebolista mas sem grande sucesso no cargo de treinador, foi um dos que defendeu a abolição da regra, num momento, pasme-se, em que era director para o desenvolvimento técnico da FIFA. O que podemos retirar do seu discurso é que comprovou de forma clara que uma coisa é a esfera do saber-fazer, e outra mais profunda, do saber-sobre-o-saber-fazer, tal como abordámos noutro artigo nessa altura. Agora… treinadores que tiveram mais sucesso e que estiveram durante muito tempo tecnicamente ligados ao jogo é que nos causam estranheza como não conseguem antecipar as consequências do que defendem.

É certo que Arsène Wenger (agora também diretor técnico da FIFA!) não propôs o mesmo que Van Basten, mas o que defende terá algumas consequências idênticas à total abolição da regra. A jornalista (Isabel Dantas, 2023) cita o técnico francês:

“Com o VAR a detetar infrações mínimas, beneficiar o atacante em caso de dúvida desapareceu – e isso tem uma razão de ser.”

Sim, tinha. A falibilidade do ser humano, neste caso do árbitro auxiliar. E isso deveria ser algo considerado natural por um ser humano que deveria compreender e abraçar a sua imperfeição. Contudo, numa sociedade dominada pela competitividade, individualismo e egocentrismo, apenas o outro falha. Ou pior. Falha porque vários exemplos de personagens com muito maior responsabilidade social “erram” de forma consciente e como tal, se um árbitro erra e prejudica a equipa, é “óbvio” que tal também tem de suceder de forma deliberada. Mas esta será uma profunda e longa discussão que não desejamos continuar aqui. Contudo, por outro lado, é uma posição legítima defender a abolição total do erro arbitral no jogo de Futebol. Mas não será com esta medida que tal irá suceder. Apenas será modificar as suas consequências. Para quem defende a ausência do erro, bastará ser só um bocadinho mais paciente, pois tendencialmente a tecnologia dará essa resposta no futuro.

“Queremos uma regra que seja justa. Se um jogador está três centímetros fora de jogo na construção de uma jogada e muitas coisas acontecem até ser marcado um golo, é justo anular esse golo?”

Sim… parece-nos… óbvio. Na perspectiva micro e apenas nalguns exemplos, a leitura, o último passe, escondê-lo, o seu timing, a execução perfeita de quem assiste, por outro lado e noutros exemplos, a noção do comportamento dos defensores adversários, a desmarcação, a recepção que é realizada em simultâneo com a leitura do comportamento do Guarda-Redes adversário de forma a decidir rapidamente a finalização, são tão importantes como o que Wenger refere que acontecerá antes. E se o último passe for realizado directamente pelo Guarda-Redes? É menos justo anular esse golo porque não houve “assim tanta coisa” a acontecer antes? É a quantidade de coisas que torna a situação mais ou menos justa? Já vimos, por exemplo, Ederson Moraes a conseguir tais proezas.

E só estamos a olhar para a questão do pondo de vista de quem erra e fica fora-de-jogo. Porque… quem defende, e que de forma também complexa garante comportamentos individuais, sectoriais, inter-sectoriais e colectivos como a leitura, o subir e o retirar profundidade sem perder de vista a bola, quando dar mais largura, quando concentrar, quando cobrir, quando conter e quando pressionar, a coordenação com a restante última linha, a orientação dos apoios, a decisão de quando acompanhar a desmarcação de ruptura adversária e / ou quando voltar a alinhar para procurar colocar um ou mais adversários em fora-de-jogo, apenas nalguns exemplos, não têm igualmente mérito? Se o realiza de forma eficaz, não será de forma igualmente brilhante? E fundamentalmente… isto não é também jogar… bem… futebol? Como tantas vezes se diz… defender também é uma arte. Sejamos francos. Wenger foi um extraordinário treinador que revolucionou o futebol inglês e internacional. Mas aqui fica patente as razões da sua queda, tantas vezes expressas no jogo das suas equipas. A desvalorização de sub-momentos defensivos em relação aos ofensivos.

“Se um marcador está dois centímetros fora de jogo porque tem ombros mais largos do que o adversário, teve realmente a vantagem do fora de jogo para marcar?”

Arsène, o futebol é de todos… e para todos. E esse jogador, para chegar a esse nível também terá imensas qualidades e / ou vantagens. Não existe a perfeição nem saberemos o que isso é. O que sempre sucedeu, desde o alto rendimento até à “rua”, inclusive pela “selecção natural”, é o encobrimento ou desenvolvimento das fraquezas de cada um no jogo. Individual e colectivamente. Se tem ombros mais largos terá, por exemplo, que se posicionar mais atrás e de forma óptima para atacar o espaço em profundidade, terá que conhecer melhor o jogo e antecipar mais rapidamente a situação, a intenção e o timing do companheiro que realiza o passe, terá que conhecer melhor as desmarcações circulares, por onde as realizar e ser melhor a acelerar e na velocidade de deslocamento. A própria recepção também será decisiva para não perder a vantagem obtida em relação ao adversário. Mas ombros mais largos também são uma vantagem noutras situações, como nos duelos, para proteger a bola em situação de apoio frontal, até no plano do detalhe como é o caso da integração numa barreira. Esses centímetros podem fazer a diferença. Se chegarmos à conclusão que são só desvantagens e que o treino de qualidade não está a ajudar, ou estará então na função errada, ou não terá qualidade para o nível do jogo em que se encontra. Mas este argumento não servirá também para o opositor directo que o atacante defronta nessa desmarcação? Nesse caso, ombros mais largos, característica até mais tradicional nos defesas, também poderá colocar um adversário em jogo por centímetros…

“Acho que todos concordamos que não é o caso.”

Não caro Arsène. Nem todos. E diremos até que se compreenderem, pensarem… bem… no jogo e anteciparem o que é provável que suceda e explicarem isso a quem não o consiga fazer, desconfiamos que a maioria rejeitará tal proposta.

“É por isso que estamos a testar aquilo a que chamamos ‘regra da luz do dia’ para o fora-de-jogo, o que significa que teria de haver um determinado espaço entre os jogadores para que uma posição fosse considerada fora de jogo.”

Nesta linha de pensamento, se existem problemas e discussões sobre escassos centímetros em jogo ou fora-de-jogo, mudar a regra desta forma não manterá a questão, só que em vez da zona mais adiantada do atacante, a discussão passaria para os seus segmentos corporais mais recuados? Então isso não manterá a questão sobre a precisão da avaliação e sobre o timing / frame no qual a bola sai do pé do atacante que realiza o passe?

“Isto seria também uma evolução.”

Terminamos os comentários às declarações de Wenger, refutando, para nós, a mais importante. Tal não seria uma evolução. Seria sim, regressão. Regressão táctica aos primórdios do Futebol que descrevemos no início do texto. Isto porque a possibilidade do atacante estar à frente do último defensor, mesmo que por alguns centímetros, torna-se uma enorme vantagem para o último passe, e desta forma isto traria receio aos defensores em se posicionarem mais alto e até para manterem a última linha alinhada. Estar centímetros adiantado é o suficiente para ganhar vantagem, não só espacial, como também para usar o corpo para proteger a posição ganha e impedir o defensor de recuperar para o espaço entre o atacante com bola e a sua baliza, primeira condição da contenção. E nesta situação também o dissuade de tentar alguma intercepção ou desarme, pois uma potencial falta, provavelmente dará direito a expulsão. Perante este cenário, a tendência seria os defensores baixarem e defenderem junto da sua baliza e com isto perderem também a capacidade de pressionar alto no campo e de serem “ofensivas” sem bola. E como um princípio fundamental do jogo passa por procurar “criar superioridade numérica”, a equipa sem bola, quer defendendo colectivamente (zona), quer individualmente (homem) procuraria baixar outros jogadores para esse espaço, formando-se aglomerados de jogadores pelo campo todo. Sem fora-de-jogo ou com esta nova regra do fora-de-jogo, o mais provável seria assistirmos à regressão do Futebol aos seus primórdios.

No fundo a discussão não é sobre melhorar o jogo ou as suas regras. É sobre filosofia e crenças, ainda por cima… confusas. Mais precisamente sobre a prevalência do Futebol “ofensivo” sobre o “defensivo”. Uma vez mais, defender bem (uma obrigação no jogo para quem o quer vencer) não implicará obrigatoriamente defender mais, quer isso represente mais tempo, espaço ou número. Mas, defender bem, até poderá significar atacar melhor. Tal como atacar mais, em tempo, espaço ou número, não significará que se ataque com qualidade. Ah… e Arsène: pode-se “atacar”, defendendo. Inclusive até como algumas vezes as suas equipas no Arsenal nos prensenteavam com os sufocantes pressings a que submetiam os adversários. Não era no sub-momento defensivo Impedir a construção, nomeadamente no pressing, que as suas equipas revelavam graves problemas defensivos. Portanto, considerando a relatividade de “espectáculo” e da “estética” do jogo, a alteração proposta, afinal não “acabaria por favorecer mais o futebol de ataque e, consequentemente, o espectáculo”.

Por outro lado, aqueles que, dentro do campo, sentiram a evolução do jogo e o conseguiram racionalizar tornam-se preciosos para que se perceba o que está realmente em causa. Um desses exemplos é o ex-internacional brasileiro Tostão que, citado por (Rodrigo Vergara, 2016), aponta que o futebol perderia a graça”. Justificando, à imagem do artigo de 2017, que “no meio-campo, em vez de dribles geniais, veríamos poucos atletas disputando bolas perdidas. O futebol ficaria parecido com o basquetebol: jogadas concentradas sob os cestos e lances decididos em detalhes”. Citado pelo mesmo autor, o jornalista Armando Nogueira vai mais longe e defende mesmo que “isso mataria o futebol”.

Como (Vítor Frade, 2017) sustenta, “a regra do fora de jogo não é “uma”. É “a” lei fundamental do futebol. “Espero que a revolta dos treinadores seja suficiente para evidenciar que isto é uma aberração. Neste sentido: passa a ser outra coisa””. Deste modo, a questão à volta do fora-de-jogo não se torna apenas uma questão sobre as regras do jogo. É muito mais do que isso. É não só uma dimensão do DNA do jogo para ele ser o que hoje é, como também levanta questões mais amplas na nossa sociedade sobre a diferença entre o pensamento individualista e o pensamento colectivo. 

Quer no futebol, quer na sociedade em geral, chegamos à conclusão que, neste momento, os historiadores têm um papel “decorativo” e o seu trabalho não é valorizado. A hipótese alternativa não é melhor porque revela uma falta de inteligência absurda. A todos os níveis estamos na iminência de repetir erros do passado. Perante isto, recordamos o poema que Vítor Frade escreveu sobre o tema, já com 7 anos, mas ainda tão actual…

“Não foi Trump ser eleito
Que me trouxe dor ao peito,
Foram as condições a jeito…
Cruyff que diria
De van Basten ou até de Guardiola
Sobre os ‘devaneios-porcaria’
A infecionarem-lhe a tola?
Porquê Cruyff a medida?
Quase só ele foi ‘extraterrestre’
Como jogador
E treinador,
E no entender o jogo está o teste!”

(Vítor Frade, 2017)

Saber jogar e o saber sobre o saber jogar

Nos últimos dias, o ex-jogador Marco Van Basten deu uma entrevista ao jornal alemão Bild na qual defendia algumas ideias que segundo o próprio “revolucionariam o futebol”. O holandês foi um dos melhores que vimos jogar, eternizando momentos geniais, e golos fabulosos. O golo marcado à antiga URSS na final do campeonato da europa de 1988 ficará para sempre na história do jogo como um dos melhores. Mas nós recordamos outro, curiosamente também destacado, ontem, no programa Maisfutebol enquanto estávamos a redigir este artigo, que não tendo o mesmo peso histórico, faz parte do imaginário de qualquer criança apaixonada pelo jogo, reproduzindo aquele momento mágico de Pelé no filme Fuga para a vitóriaMas aqui num contexto real, colocando a bola no melhor sítio possível e ao serviço de um clube que contribuiu de forma evidente para a evolução do jogo.

Van Basten fez também parte de uma das melhores equipas da história do Futebol, o AC Milan de Arrigo Sacchi. Uma equipa de facto marcada pela inovação que trouxe ao momento de organização defensiva, conseguindo, através da mudança de referências defensivas e fazendo uso da regra do fora-de-jogo, encurtar o espaço de jogo aos seus adversários e ser pressionante sobre eles. Porém, ao contrário do que uma visão redutora do jogo fará supor, esta incremento qualitativo da organização defensiva abriu também caminho a uma maior qualidade ofensiva. Como (Amieiro, 2004) descreveu, trata-se de “defender (bem) para atacar (melhor)“. Concretamente, poder ser pressionante, possibilita que uma equipa seja ofensiva quando defende. Possibilita-lhe poder recuperar a bola o mais rapidamente possível. Possibilita-lhe que defenda no meio-campo adversário. No fundo possibilita-lhe a iniciativa no jogo, mesmo no seu momento defensivo, e ser inteligente e colectiva a defender. E nada disto seria possível sem a regra do fora-de-jogo.

Por outro lado, antes disso, a própria cultura holandesa, através do próprio Ajax e selecção holandesa, pela mão de Rinus Michels, tinha também apresentado ideias revolucionárias, algumas das quais alicerçadas na regra do fora-de-jogo. De acordo com (Sá, 2011), o “futebol que então apresentou é um esboço daquilo que fazem hoje as muitas das grandes equipas, e representou um salto de gigante em relação a tudo o que antes se havia visto. Não menos importante do que a mobilidade com bola, eram aspectos como a pressão e a linha defensiva, que permitiam à equipa jogar alto e conseguir um número absurdo de recuperações no meio campo contrário“. Num artigo sobre a escola holandesa do site benefoot.net, refere-se que “o mais revolucionário aspecto da selecção holandesa de 1974 era que o fora-de-jogo era usado como arma para atacar. A última linha subia intempestivamente, limitando o espaço ao oponente recuperando muitas vezes a posse da bola. Para ser claro: jogar com o fora-de-jogo é uma acção atacante” escreveu Cruyff no De Telefraaf. “Porque o fora-de-jogo decide o tamanho do campo””. Noutro artigo sobre o legado de Johan Cruyff de 2016 de Jonathan Wilson no site da Eurosport, é explicado que “os princípios básicos continuaram os mesmos desde então: controlar a posse de forma a não sofrer golos. Pressionar alto quando perdida a posse para fazer o campo o mais pequeno possível para o opositor. Usar o fora-de-jogo de forma pro-activa para forçar o erro adversário“. Este legado foi valorizado pelo Barcelona de Pep Guardiola, que segundo (Manna, 2009), procurava “defender à frente, invadindo o território possível do adversário, provocando o fora-de-jogo a metros da linha de meio-campo, afogando zonalmente o adversário, juntando linhas, acompanhando o ataque por todo o bloco”. Guardiola, citado por (Manna, 2008), lembra que “atacaremos melhor se tivermos uma boa defesa e defenderemos melhor se tivermos um bom ataque”. Lembramos que Rinus Michels treinou Van Basten na sua segunda passagem pelo comando da selecção holandesa…

Portanto, exemplos de ideias revolucionárias, que trouxeram qualidade de jogo, resultando em sucesso competitivo, inclusive a nível continental. Alguém, no seu perfeito juízo, pode afirmar que estas equipas focavam-se exclusivamente na sua organização defensiva, e apenas exploravam o erro do adversário?

Van Basten disse que teria “curiosidade em perceber como funcionaria o futebol sem o fora de jogo. Muita gente vai estar contra mas, cada vez mais, o futebol parece-se com Andebol, com equipas a erguerem muros à frente da baliza”. Mas o holandês esquece-se que de facto, o Andebol, como o Hóquei em Patins e o Futsal, exemplos de desportos com balizas, não têm fora-de-jogo. E dadas as suas regras, as equipas têm duas opções. Ou defendem com o seu bloco junto à sua baliza de forma a não permitirem espaço junto à mesma, ou adoptam a defesa individual no seu mais puro conceito, desprovida de inteligência e sentido colectivo. Ambas as situações, no futebol, seriam corrosivas para a qualidade de jogo. Pensando nos casos do Andebol e Hóquei em Patins, as equipas podem pressionar de imediato no momento da perda da bola, mas o objectivo principal é quase sempre garantir tempo para que o restante bloco recupere um posicionamento defensivo junto à sua baliza… aquilo que Van Basten condena. Por outro lado, no Futsal surgem ideias de pressão no meio-campo adversário, porém, ficando tanto espaço entre a bola pressionada e a sua baliza para tão poucos jogadores, essas equipas acabam por optar pela defesa e responsabilização individual.

Se Van Basten não o consegue, nós imaginamos o que seria um futebol sem fora-de-jogo, no qual as equipas optariam por deixar jogadores nas áreas adversárias. Inclusive junto aos postes da baliza adversária como sucede em muitas situações de bola parada do Futsal. O jogo “partiria-se” como nunca, com alguns jogadores das duas equipas posicionados junto a cada uma das suas balizas e outros a procurarem disputar a posse da bola pelo campo todo. Comparativamente com o jogo que conhecemos, pareceria um jogo de loucos. Como Jurgen Klopp comentou, esse seria outro jogo. No mesmo artigo Christian Gourcuff, técnico do Rennes, descreveu que o fora-de-jogo é uma manifestação de inteligência colectiva. Não haveria mais espírito colectivo se o fora-de-jogo fosse abolido”. Também Arsene Wenger defendeu que o fora-de-jogo é o que dá coesão a uma boa equipa. É também uma regra inteligente.”

“Jogar avançado no terreno

opõe-se ao jogar p’ra frente

é fazer campo grande e pequeno

e nisto não se demite a mente.”

(Frade, 2014)

Como alguém referia nos últimos dias, Van Basten pode estar a revelar uma parte da cultura holandesa, a pior parte. Aquela, que não a de Michels ou Cruyff, mas a que descarta por completo o momento defensivo do jogo e que apenas valoriza o ofensivo. O holandês pode, consciente ou inconscientemente querer obrigar a um retrocesso no jogo, a que as equipas defendam mal, para que a sua cultura saia vitoriosa. Mas isto são suposições. O que Van Basten objectivamente revela é desconhecimento do jogo. Será isto possível em alguém que revelou tanto talento e qualidade como jogador e que inclusive conviveu com tantas ideias de qualidade? Sim. Assistimos a casos similares todos os dias nos meios de comunicação social, porventura não tão graves, de ex-jogadores que não compreendem e não sabem explicar o jogo.

Usando uma expressão simples mas precisa, Van Basten e outros tantos detêm um “saber fazer”, que na especificidade do jogo podemos denominar de “saber jogar”. Não há dúvidas que eles sabiam jogar este jogo. Simultaneamente, alguns deles, e outros que mesmo não jogando num nível profissional, desenvolveram durante o seu percurso como jogador ou mais tarde, um “saber sobre o saber jogar”, ou seja, conhecimento sobre o jogo. O autor (Campos, 2008) explica que o «saber sobre um saber fazer» e o «saber fazer» são duas faces da mesma moeda, mas aquilo que é decisivo é o saber fazer no momento do jogo independentemente de estar conscientemente subordinado a um «saber sobre esse saber fazer»”. Assim, na perspectiva do jogador, (Amieiro, 2005) refere que “segundo Frade (2003a) o hábito é um «saber fazer» que se adquire na acção e “a esfera fundamental do «saber fazer» está no subconsciente”portanto, a qualidade expressa no campo é na maioria dos jogadores… inconsciente. Ainda para (Campos, 2008), existem muitos exemplos de grandes profissionais em diferentes áreas que alcançam desempenhos fantásticos sem conseguirem explicar como o fizeram e porque possuem essas fantásticas qualidades. Assim, segundo o autor “nem tudo que temos em memória é conscientemente identificável e enquanto treinadores devemos privilegiar o “saber fazer” dos nossos jogadores independentemente de eles dominarem melhor ou pior o saber sobre esse “saber fazer” pois a importância deles situa-se no domínio prático da acção“.

Porém, no caso de um treinador, esta importância altera-se. O treinador tem obviamente que estar consciente do processo. Tem de (re)conhecer a qualidade do jogo, compreendê-la e explicá-la. A esfera da sua acção passa obrigatoriamente para o domínio do “saber sobre o saber fazer”. É um dos argumentos que explica o porquê, na história do jogo, do melhor jogador do mundo ainda não ter dado o melhor treinador ou o melhor dirigente desportivo…

Marco Van Basten, não é “apenas” um aposentado grande jogador de futebol. O holandês é o diretor técnico FIFA desde Setembro passado. O próprio presidente, Gianni Infantino, apresentou-o, descrevendo que “tivemos várias discussões com ele nos últimos meses e ouvimos as suas opiniões sobre o jogo, tendo consciência sempre de tudo o que ele fez pelo futebol. Para mim, ficou imediatamente claro que Marco é um reforço fantástico para a FIFA”.

“The offside rule is fundamental – if you do not understand that, you do not understand football.”

Christian Gourcuff