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A construção do talento

“As habilidades são apenas circuitos no teu cérebro.”

Daniel Coyle

 

Um tema desta importância e magnitude merecerá uma abordagem mais profunda no futuro e uma página exclusiva no projecto Saber Sobre o Saber Treinar. Inclusivamente, o talento já foi contextualizado num artigo recente sobre a nossa visão do desenvolvimento do jogador de Futebol. Mas tal não nos impede de irmos acrescentando ideias e conhecimento sobre o assunto.

Torna-se fundamental compreender em definitivo que o talento, ao contrário do que durante muito tempo era defendido, trata-se de uma construção. Nenhum ser humano nasce a saber e dominar determinado assunto, área ou actividade. Isso acontece quando várias condições… e tempo… se reunem. O professor Júlio Garganta justifica que se parte do princípio de que o talento, que um jogador de futebol já nasce, um grande treinador já nasce, um grande músico já nasce. Isso causa-se algumas dúvidas importantes, porque não só porque há vários estudos que comprovam que isso não é verdade, não há em nosso genoma de entre 25.000 a 27.000 genes, nenhum que tenha sido identificado como traduzindo o que é um arquiteto, um jogador de futebol, não digo já se é guarda-redes, avançado, médio, um pivô, um médico ou músico, algo assim, não foi encontrado até agora. Quando olhamos para as histórias de vida dos grandes executantes, em várias atividades humanas, vemos que o que devemos fazer é perceber a história onde começaram, como se desenvolveram, as oportunidades que foram criadas, as que não foram criadas, as que foram conquistadas. E vemos que o talento se treina, se aprende, é muito construído. Muitas pessoas têm, e é por isso que digo que o potencial talento pode existir antes, mas o jogador só existe depois do treino dos jogos.

É referido no vídeo que “a cultura em que vivemos faz uma grande diferença”. Facilmente se compreende porque é que, entre outros exemplos, um país como os Estados Unidos da América, perante o seu volume populacional, programas desportivos escolares e condições disponibilizadas para a prática desportiva, não gere a quantidade de talento que por exemplo emerge no Brasil. Já para não darmos exemplo de países mais pequenos como Portugal. Entre várias diferentes condições destaca-se o diferente valor social dado ao Futebol o que influencia mais ou menos jovens à sua prática deliberada intensiva. O professor (Silveira Ramos, 2003) sustenta que “tendo o futebol um grande impacto socio-cultural e desportivo, isso provoca uma enorme atração para a sua prática, e normalmente é na rua que, por hábito, começa a paixão e o gosto pela prática do futebol, sendo “iniciada por muitos praticantes de forma absolutamente espontânea, sem qualquer base teórica nem orientações para a sua aprendizagem”.

Ora, essa prática “espontânea” ou deliberada, requisitará uma necessária adaptação do conhecimento da criança ao fenómeno complexo que é o jogo de Futebol. Como é dito no vídeo, o cérebro humano, e ainda mais enquanto criança e jovem, detém uma enorme neuroplasticidade e capacidade de aprendizagem possibilitando a aquisição de qualquer conhecimento ou habilidade… o que no fundo… também é conhecimento como referia Daniel Coyle. Até a reconhecidamente complexa física quântica. Não acredita? A autora (Zeeya Merali, 2023) relata uma experiência educacional que envolveu 54 estudantes, com idades entre os 15 e os 17 anos. Os mesmos “foram seleccionados aleatoriamente de entre cerca de 1.000 candidatos, de 36 escolas do Reino Unido – maioritariamente escolas públicas. Os adolescentes passaram duas horas por semana em aulas online e, após oito semanas, realizaram um teste utilizando questões de um exame de física quântica de pós-graduação de Oxford. Mais de 80% dos alunos foram aprovados e cerca de metade obteve distinção”.

Para não alongarmos muito esta abordagem ao tema, deixamos a visão de dois “cientistas do talento”. Os autores (Anders Ericsson & Robert Pool, 2016), através dos seus estudos, explicam que “se conversares com estas pessoas extraordinárias, perceberás que todas elas entendem isto a um nível ou outro. Podem não estar familiarizadas com o conceito de adaptabilidade cognitiva, mas raramente aceitam a ideia de que atingiram o pico nos seus campos por serem os sortudos vencedores de alguma lotaria genética. Elas sabem o que é necessário para desenvolver as habilidades extraordinárias que possuem porque experienciaram isso em primeira mão“.

“Tive sorte porque na minha geração, onde vivia, havia muitos rapazes da minha idade. Fora da escola, o tempo todo era: “Vamos jogar futebol.” Eu sempre tinha cerca de cinco ou seis rapazes a jogar futebol comigo. É a forma clássica de futebol de rua, não é? Mas o meu irmão Marcel não teve isso porque só havia raparigas da idade dele. Por isso, para ele era completamente diferente. Ele não tinha ninguém da idade dele para jogar. Então ele tinha que jogar ou comigo e com os meus amigos ou com o Ronald, que é mais velho. Por isso, quando as pessoas me perguntam: “Como é que te tornaste num jogador de futebol profissional?” talvez seja uma das razões.”

Dennis Bergkamp em (David Winner, 2013)

“Errar é aprender”

Como vem sendo debatido, parece hoje haver um excessivo proteccionismo com a criança, vedando-lhe, por vezes, a experimentação do erro. Simultaneamente, surge a rotulação da mesma perante esse erro, como se houvesse uma necessidade urgente de a avaliar, seriar, compartimentar e traçar os “diferentes” destinos desde muito cedo. Consequentemente é condicionada a sua aprendizagem, auto-estima, crescimento e influenciada a sua personalidade. Contrariando a história evolutiva do ser humano, perspectiva-se o erro como um problema e não como uma oportunidade de aprendizagem.

Obviamente que este não é um tema exclusivo do ensino escolar. É indiscutível a importância que a Escola deve ter no desenvolvimento da criança, porém, deve ser consciente de todos, a enorme influência que o desporto de formação tem formação da personalidade do jovem desportista. Desde logo pela motivação e escolha que a criança por ele transporta e realiza, por vezes até antagónicas à própria Escola.

Procurando outras consequências, o autor (Maciel, 2011) defende que “o erro é parte importante em qualquer processo de aprendizagem e para mim o treino é isso mesmo, um processo de ensino aprendizagem. Perceber porque se erra, alertar para o que está subjacente ao erro são aspectos determinantes, mas para isso o processo tem de permitir o erro, o problema é que muitas vezes a tensão criada pelos treinadores é tão grande que o jogador acaba por ter medo de errar, e claro, erra ainda mais, ninguém lhe dá pistas para corrigir o erro, e fica sem condições para lidar com o erro, entra numa espiral corrosiva. Além disso parece-me que os treinadores querem sempre tudo muito direitinho, têm a vertigem pelo controlo pleno das situações de treino, querem ser deuses de Laplace quando na verdade a essência do Jogo não é essa. O Jogo tem erro, tem ruído, tem inopinado e se treinarmos tentando diminuir isto ao máximo estamos a esterilizar uma realidade que não pode ser colocada num tubo de ensaio. Se vivido in vitro os jogadores errarão menos certamente, mas tornar-se-ão muito menos criativos e sucumbirão perante as novidades e imponderáveis que emergem da estrutura acontecimental do jogo. Tornar o erro fecundo, saber lidar com o erro e criar contextos que não o hipotequem é também uma forma de potenciar a criatividade dos jogadores. Além disso há a intervenção do treinador, que por vezes pode servir-se do erro como catalisador das aquisições que pretende, e tal intervenção poderá servir não somente para quem erra como também para os restantes jogadores. E aqui importa também salientar aquele que é um dos grandes propósitos da Periodização Táctica, o desenvolvimento concomitante de um saber fazer com um saber sobre esse saber fazer, pois é esse saber sobre esse saber fazer que vai levar o jogador a tomar consciência que errou, ou que determinado tipo de ajustamento ou resposta que dá ao contexto, segundo aquele saber fazer é desajustado. Mesmo que tal não fosse noutro jogar, ou relativamente àquilo que poderia ser anteriormente (com outro treinador) uma prioridade, mas que agora se assume como um erro. O que reforça a dimensão relativa do erro e a necessidade de sintonização com o que se pretende. Por exemplo a maior parte das pessoas diz “que para trás anda o caranguejo” e quando vêm um passe atrasado abanam logo com a cabeça, mas isso em determinadas circunstâncias pode ser algo que revela um critério congruente com aquilo que eu posso desejar, logo não valorizo como erro”.

Olhar para o erro/fracasso como uma derrota é meio caminho andado para o surgimento de outros problemas, desde a baixa da auto estima à desistência. Erros e fracassos deveriam, pelo contrário, ser considerados oportunidades de aprendizagem. Algumas questões importantes se podem colocar com esse objetivo: O que correu mal? O que poderia ter sido feito para o evitar? Se este caminho não foi bem escolhido, quais são as alternativas possíveis? Quais são as vantagens e os inconvenientes de cada uma? Como se pode desdobrar o objetivo que não foi atingido em objetivos intermédios mais exequíveis? Diz-se que “errar é humano”. Aceitar os erros também o deve ser. Não uma aceitação passiva, mas uma aceitação ativa centrada no desejo de aprender e de melhorar, conjugada com os verbos “analisar”, “tentar”, “persistir” e “conseguir”.”(Azenhas, 2011)