“Temos um balneário muito forte em que os jogadores foram seleccionados a dedo, mais do que pelas razões futebolísticas, pelo carácter”

“É o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser.”

(Manuel Sérgio, 2009)

O Desporto Escolar enquanto oportunidade para passar valores. A jogadores, treinadores e pais.

“O técnico aponta para o desporto escolar como caminho para criar a cultura desportiva que falta e que poderia gerar interesse e aumentar a presença em estádios e pavilhões para jogos ao vivo, algo ainda em falta num país que já consegue formar atletas incríveis.”

(Vítor Matos, 2024)

O pensamento de Vítor Matos sobre o Desporto Escolar é sem dúvida interessante e importante, sendo fundamental a reflexão sobre o papel do mesmo no desenvolvimento do Desporto associativo.

Se do ponto de vista desportivo, um maior investimento neste contexto propiciaria mais um espaço que procurasse colmatar o desaparecimento das práticas e jogos que se realizavam na “rua”. Simultaneamente permitiria oportunidade de prática e evolução aos jovens que, ou ainda não manifestam o desejo de progredir no seu percurso desportivo, ou que não são seleccionados para o desporto formal (clubes). É sabido que os timings de maturação e desenvolvimento são diferentes para cada um e que muitos, também por essas razões acabam por não encaixar imediatamente nos clubes. Esse é outro problema, outra discussão.

“Está a acontecer uma espécie de fabricação de campeões em laboratório, o que é uma ilusão. Tem de haver um trabalho correto ao nível do clube, da escola, do desporto escolar, da educação física… Porque o trabalho no clube e no desporto escolar é para os que têm mais jeito, mas a educação física é para todos. Mas em todos estes casos há que respeitar as tais etapas de desenvolvimento das crianças e dar-lhes autonomia e liberdade de participação.”

(Carlos Neto, 2017)

Porém, o Desporto Escolar nunca será o verdadeiro substituto da “rua” e o principal meio introdutório da criança ao jogo e ao desporto. Deste modo tudo deverá ser feito para preservar a “rua” e todas as suas qualidades. Desde logo por ser genuinamente prática deliberada, território sagrado da autonomia, da auto-aprendizagem, da criatividade e derradeiramente, da… liberdade. Porque o Desporto Escolar será sempre dirigido por adultos, com tudo o que de bom e mau estes potencialmente podem trazer. Paralelamente, se no mesmo também há assistência, nomeadamente dos pais, isso torna o contexto abissalmente diferente.

E sobre estas duas últimas características, torna-se importante dar dois exemplos negativos, até para percebermos o que urge mudar. No actual Desporto Escolar existem treinadores que o conduzem como se tratasse do desporto de rendimento dos adultos. Existem exemplos de treinadores que, em competição, deixam, sistematicamente, jovens jogadores e jogadoras com pouca ou sem qualquer minuto de utilização. Tudo pelo resultado. Se já seria altamente questionável em treinadores de formação, quando são professores de Educação Física a fazê-lo, se a situação já era grave, torna-se ainda mais perversa. Ou, noutro exemplo, quando o feedback e o estilo de liderança na relação como os jogadores / jogadoras é tão agressivo e autocrático que até com adultos os mesmos seriam questionáveis.

Por outro lado, os maus exemplos também vêm da assistência, propriamente dos pais. Exemplos de palavras agressivas, injuriosa e repletas de ódio, contra árbitros, adversários e os próprios filhos chegam-nos com uma frequência assustadora. Inclusive relatos de agressões entre pais. Futsal, basquetebol, voleibol. Não é o desporto em si e até os maus exemplos que possam vir do desporto de rendimento que são decisivos. O que é decisivo, são a falta de regras, de educação, de valores. Dos adultos. Sendo que a crescente desvalorização dos contextos informais, semi-formais, formais e da própria educação física contribuem decisivamente para sintomas preocupantes que vamos assistindo na nossa sociedade. Porque, quer acreditem, quer não, o desporto e o jogo, são um dos principais veículos de transmissão de… bons… valores.

Assim, concordando com as palavras de Vítor Matos, mas mais do que cresçam em número, preocupa-nos que os espectadores cresçam em qualidade. Será um enorme desafio para o Desporto Escolar, mas também para o federado, a educação desses espectadores. Até porque o cenário alternativo, a proibição de espectadores no Desporto Escolar e mesmo no federado de Formação, colocando a possibilidade de resolver o problema a curto prazo, criará um ambiente hermético que não preparará os jovens desportistas para a pressão que mais tarde irão ser sujeitos na eventualidade de progredirem para o desporto de rendimento. Mas até podemos até acrescentar… em muitas outras vias profissionais. Por outro lado, proibindo espectadores nesses contextos, perder-se-á essa oportunidade preciosa de fazer reflectir e passar valores em quem frequenta a bancada. Porque nunca é tarde para crescer.

“Devemos olhar para os espaços de treino com mais cuidado; devemos olhar para a formação de treinadores com mais cuidado; devemos olhar para o desporto escolar com muitíssimo cuidado e atenção, pois é o desporto escolar que é o início de tudo. Se Espanha, Alemanha e Inglaterra avançaram, esteve tudo muito na base do desporto escolar, na forma como os professores e a dinâmica do ensino despertou os alunos para aquilo que são as necessidades da prática desportiva e despertou os pais para esse fenómeno.”

(Luís Castro, 2018)

A culpa não é sempre dos outros

Kiki Afonso toca num ponto fundamental da relação treinador / jogador. É recorrente um jogador insatisfeito culpar o treinador por não ser opção. De certa parte é humano um sentimento de auto-defesa e de orgulho na sua qualidade. O que se torna excessivo, e muitas vezes impulsionado por pessoas próximas de si como familiares, amigos e empresário, será um sentimento egocêntrico em que os companheiros / concorrência têm sempre menos valor, ou pior ainda, que não é apreciado pelo treinador. A manifestação directa ou indirecta de tais sentimentos, certamente não ajudará na relação, mas o importante aqui é perceber a profundidade de tal ideia / sentimento / atitude.

Deste modo, tal demonstra do ponto de vista individual, ao nível do auto-conhecimento, compromisso, entrega e superação, sérias lacunas. E principalmente… respeito. Referimo-nos, neste caso, ao respeito do jogador por si próprio, pelo talento e qualidade que construiu, fruto de tantos anos de paixão pelo jogo, dedicação e escolhas por vezes difíceis.

Tal como o erro se torna uma oportunidade de aprendizagem, não ser opção torna-se uma oportunidade de alguém creditado para tal, e que com certeza desejará o rendimento máximo do jogador, apontar lacunas, pontos de melhoria e oportunidades de crescimento. No fundo, o caminho para a superação. E tal só será obtido com compromisso. Como o reconhecido treinador de Atletismo, Moniz Pereira dizia, “há treino todos os dias”. Tal atitude ambiciosa só poderá ser valorizada por quem decide a selecção da equipa, como torna a mentalidade do jogador mais forte e saudável, portanto, mais próxima do melhor rendimento.

“Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes.”

Ricardo Reis

“perhaps the most delightful example in the pre-internet era of a manager communicating in this way came from Brian Clough”

“perhaps the most delightful example in the pre-internet era of a manager communicating in this way came from Brian Clough at Nottingham Forest. He had noticed more bad language than ever coming from the home supporters. One day, arriving for a home game, the supporters were greeted by a hand-written sign: ‘Gentlemen. No swearing, please. Brian.’ The swearing is reputed to have stopped almost the same day. In the intense relationship between manager and fans, simple messages can have a massive impact.”

(Mike Carson, 2013)

“O treinador é especialista em humanidade.”

O Manchester United de Matt Busby… o regresso

Na sequência da primeira publicação sobre a extraordinária história do Manchester United de Matt Busby, publicamos a segunda parte.

O Manchester United de Matt Busby foi um exemplo inspirador de liderança e valores humanos, especialmente perante o terrível acidente aéreo que a equipa, o treinador e o clube sofreram em 1958. O desastre de Munique, como ficou conhecido, foi uma tragédia que abalou todo o universo do futebol, tirando a vida de vários jogadores e membros da equipa técnica, além de deixar muitos outros gravemente feridos. Um deles, o próprio treinador.

Apesar de destroçado, Busby foi um exemplo de enorme coragem. O que se seguiu ao desastre mostrou a resiliência, a solidariedade e a coesão que caracterizavam o Manchester United sob a sua liderança. Apesar da devastação, Busby e o clube recusaram-se a desistir. Com determinação e coragem, reconstruíram a equipa e continuaram a lutar em honra daqueles que perderam as suas vidas. Este período difícil na história do Manchester United demonstrou não apenas a força do carácter de Matt Busby como líder, mas atrás disso, o seu profundo compromisso com os valores humanos. Ele não dirigiu a equipa apenas com competência e visão, mas também cuidou dos seus jogadores como uma família, mostrando empatia, compaixão e apoio inabalável.

O legado deixado por Matt Busby e pelo Manchester United após o desastre de Munique vai muito além do futebol. É um testemunho inspirador de como uma liderança virada para as pessoas pode superar até as adversidades mais terríveis. O Manchester United de Busby permanece um símbolo de esperança e perseverança, lembrando-nos da importância de nunca desistir, mesmo nos momentos mais sombrios.

“O sucesso nunca é permanente, e o fracasso nunca é total. O que importa é o coração que colocamos em cada jogo.”

Matt Busby

O Manchester United de Matt Busby

No passado dia 6 de Fevereiro fizeram-se 66 anos desde o terrível desastre aéreo que a então equipa do Manchester United sofreu, no qual perderam-se 23 vidas, das quais 8 eram jogadores da primeira grande equipa de Matt Busby. Reconhecido como um incrível líder de valores humanos excepcionais, Busby ergueu-se das lesões e tremenda amargura sentida e voltou a reconstruir a equipa levando-a novamente ao sucesso. Sucesso que ficou marcado com a conquista da Taça dos Campeões Europeus frente ao Benfica em Wembley, passados 10 anos do acidente, constituindo o Manchester United como o primeiro clube Inglês a vencer a competição.

O video, extraído do filme The Three Kings,  relata uma das grande histórias que o jogo viveu. Aqui publicamos a primeira parte, ficando a promessa de publicarmos a segunda brevemente.

“O desastre aéreo de Munique tornou-se parte da alma do Manchester United. Está lá enraizado com o sonho de Matt Busby quando ele estava nas ruínas bombardeadas de Old Trafford em 1945 e na realização desse sonho com os Busby Babes. No seu cerne há uma paixão e uma determinação inabalável; uma paixão não apenas para vencer, mas para vencer com estilo, para jogar o belo jogo, para atacar e entreter; e uma determinação inabalável para lutar contra todas as probabilidades. Ambos estavam evidentes naquela primeira temporada após Munique, quando, para espanto de grande parte do mundo do futebol, a equipa que eu agora ia ver regularmente com os meus amigos em vez do meu pai terminou como vice-campeã, atrás do Wolves. Estavam lá quase uma década depois, no Bernabéu, quando um Bill Foulkes envelhecido e lesionado saiu a galope da defesa para marcar o dramático golo tardio contra o grande Real Madrid, colocando o United na Final da Taça Europeia; e lá na própria final, em Wembley, quando Bobby Charlton saltou mais alto do que alguma vez o tinha visto saltar para marcar o golo inaugural, e na ala brilhante do jovem John Aston, que desfez a defesa do Benfica e contribuiu muito para selar a vitória que finalmente tornou o United campeão da Europa.”

(David Hall, 2008)

“procurar emocionar os jogadores para que se comprometam”

A Inteligência Artificial é uma ameaça ao treinador? Ao jogador? Ao Futebol? À humanidade?

“A IA é potencialmente mais perigosa do que armas nucleares. As pessoas que são chamadas para criar IA precisam aceitar a responsabilidade de que podem estar a criar a nova vida na Terra.”

Demis Hassabis

O tema é extenso e profundo. Mas extremamente actual e importante. Como defende Demis Hassabis CEO da DeepMind, empresa que estuda a Inteligência Artificial à 12 anos, e entretanto comprada pela Google, talvez estejamos perante a invenção mais importante que a humanidade irá vivenciar até à data. Deste modo, pode parecer que pensar nas suas implicações no âmbito do Futebol seja redutor, ou até um pouco ofensivo tendo em conta a tremenda evolução, ou, ao contrário, a tremenda ameaça, que poderemos ter pela frente enquanto espécie. Ameaça, porque no cenário mais pessimista, tal tecnologia poderá ditar o princípio do fim dos seres humanos. Porém, apesar disto, e até ver, o jogo que tanto amamos não pára e interessa-nos também reflectir sobre as consequências da Inteligência Artificial no seu contexto.

Procurámos a perspectiva da própria Inteligência Artificial em relação ao tema, através ChatGPT e Bard, a nova ferramenta de Inteligência Artificial da Google. Ambos defendem que a IA está a revolucionar o futebol de várias formas, e o papel do treinador de futebol não será exceção. Segundo o ChatCPT “a IA pode ajudar os treinadores a tomar decisões mais informadas sobre uma ampla gama de questões, desde a seleção de jogadores até à estratégia de jogo”. A ferramenta destaca ainda a importância crescente da IA na análise do imenso volume de dados associado a uma equipa, como forma de identificar padrões e tendências colectivas ou grupais, mas também na análise do desempenho individual, na prevenção de lesões, identificação de pontos fortes e fracos de cada jogador e consequente prescrição de treino individualizado na procura de maximizar a eficiência individual. No plano da preparação estratégica, também é descrita como uma ajuda preciosa para analisar adversários e desenvolver planos de jogo com o intuito de superar determinada oposição. Mesmo durante os jogos e em tempo real. Até o Scouting é contemplado, “ajudando a identificar jovens talentos com base em características específicas. Algoritmos podem analisar dados de várias fontes para prever o potencial de um jogador antes mesmo de ele atingir o nível profissional”. As possibilidades tornam-se então, imensas. 

Em forma de conclusão, é referido que “em última análise, a IA tem o potencial de transformar o papel do treinador de futebol. Os treinadores que estão dispostos a abraçar a IA e aprender a usá-la terão uma vantagem competitiva significativa”. Por outro lado, “embora a IA continue a desempenhar um papel crescente no desporto, muitos acreditam que a presença humana será sempre essencial no papel de treinador de futebol. A integração bem-sucedida da IA no treino dependerá de como as tecnologias evoluem e de como são incorporadas de maneira eficaz, mantendo o equilíbrio entre as capacidades analíticas da IA e as habilidades humanas únicas”. É praticamente factual que os mais bem sucedidos treinadores da história do jogo tinham em comum enormes qualidades humanas, de liderança, empatia e inteligência emocional. Aparentemente a Inteligência Artificial reconhece isso.

Mas a procura deste equilíbrio não é novidade no futebol. Já no final da década de 70, um dos mais notáveis treinadores da história do jogo, o ucraniano Valeriy Lobanovskyi, que acumulou jogos, vitórias e títulos, principalmente ao serviço do Dínamo de Kiev e selecção da antiga União Soviética, vivia semelhante dilema. De acordo com (Jonathan Wilson, 2016), “Lobanovskyi, enquanto jogador, era um diletante que se opunha aos limites impostos por Viktor Maslov. Ainda assim, o seu racionalismo perfeccionista, a sua ambição e a sua inteligência analítica estavam presentes desde o início. Tratam-se de qualidades que não deveriam surpreender se considerarmos que ele demonstrara talento suficiente como matemático para ganhar uma medalha de ouro ao se formar no ensino médio e, além disso, crescera numa era em que se nutria verdadeira obsessão pelo progresso científico. Nascido em 1939, Lobanovskyi era um adolescente quando a URSS inaugurou sua primeira central eléctrica nuclear e enviou a Sputnik ao espaço, e Kiev era o centro da indústria de computação soviética. O primeiro instituto cibernético da URSS foi aberto em 1957 e rapidamente ficou conhecido como referência mundial em sistemas de controle automatizados, inteligência artificial e modelos matemáticos. Foi lá que um protótipo do computador pessoal da atualidade foi desenvolvido, em 1963. Na época em que Lobanovskyi estava estudando engenharia de aquecimento no Instituto Politécnico de Kiev, o potencial dos computadores e de suas possíveis aplicações em quase todas as esferas sociais tornava-se cada vez mais claro. Eram tempos excitantes, de muita novidade, e não é surpreendente que Lobanovskyi tenha sido contagiado pela onda de optimismo tecnológico. Dentro dele, desenrolava-se o grande conflito entre individualidade e sistema: a sua parte de jogador queria driblar, carregar a bola, inventar truques que deixassem os rivais envergonhados, mas, mesmo assim, como ele admitiria mais tarde, o treino que recebia no Instituto Politécnico impulsionava-o a uma abordagem sistemática, cuja meta seria dividir o futebol entre as tarefas que o compunham”.

Voltando à actualidade, tendo em conta a imberbidade das ferramentas, mas por outro lado demonstrando maior sensibilidade humana que alguns humanos, ChatGPT e Bard sublinham, neste momento, que apesar da crescente importância e papel da Inteligência Artificial no Futebol, torna-se “crucial que a componente humana, como a intuição e a compreensão emocional dos jogadores, continue a desempenhar um papel fundamental no processo de treino e gestão de equipas”. Ora, assistimos sistematicamente, nas televisões, jornais, blogs, etc., a análises desprovidas da tal sensibilidade emocional, ou seja, desprovidas de sensibilidade humana, que interpretam jogadores e treinadores como máquinas. “Analistas” esses, que por vezes, também por não estarem presentes no processo de treino, até ignoram o papel decisivo do mesmo na evolução das equipas e jogadores, na construção de decisões e execuções de qualidade, no desenvolvimento do entrosamento, da coesão, na criação de uma emocionalidade e sentimentalidade decisiva à equipa de qualidade e que se deseja de sucesso. Assim, são “analistas” que tratam então os humanos que jogam de forma mais artificial que a própria inteligência artificial. Não será isto, desde logo um sintoma de que podemos estar em risco de ser ultrapassados?

Entramos então num domínio de ainda maior complexidade. Emoções, intuição, inteligência colectiva. Assim… a “consciência” para o todo complexo que estrutura a nossa realidade é precisamente um dos sintomas de… inteligência. Esta preocupação pela própria complexidade surge da própria IA, referindo que “o futebol é um desporto altamente complexo que envolve não apenas a estratégia tática, mas também a gestão de personalidades, motivação, tomada de decisões rápidas e adaptação a situações imprevisíveis. A componente humana do treino, que inclui compreensão emocional, liderança e comunicação, é difícil de replicar totalmente por meio de algoritmos”. A isto a ferramenta soma o desafio que a intuição e criatividade se constituem à IA, supostamente ainda longe do que os humanos conseguem fazer. E ainda a liderança e as relações complexas, emocionais e inter-pessoais, e por outro lado em garantir um pensamento evolutivo que eleve o jogo a outros patamares. É mesmo referido que “a capacidade de adaptação e inovação é uma característica humana que pode ser desafiadora de replicar por completo em sistemas de IA”. Em tom mais descontraído, parece que tivemos de investir milhões e algumas das melhores mentes humanas para chegarmos à conclusão que afinal, no Futebol, “nem tudo está inventado”…

Esta fusão que a própria Inteligência Artificial propõe seria o cenário perfeito. Numa visão mais profunda, o equilíbrio entre razão e emoção. Como o neurocientista (António Damásio, 2018) aponta, referindo-o como um “vislumbre de esperança”, tendo em conta a “grande diferença entre esforços passados e tentativas futuras, está no vasto conhecimento sobre a natureza humana que agora temos à disposição e na possibilidade de planear uma estratégia mais humanamente inteligente do que no passado. Essa abordagem consideraria a ideia de que a razão deve estar no comando como pura tolice, um mero resíduo dos piores excessos do racionalismo, mas também rejeitaria a ideia de que devemos simplesmente obedecer às recomendações das emoções — sermos gentis, compassivos, raivosos, sentir nojo — sem passá-las pelo filtro do conhecimento e da razão. Promoveria uma parceria produtiva entre sentimentos e razão, enfatizando as emoções salutares e suprimindo as negativas. Por fim, ela rejeitaria a noção da mente humana como um equivalente das criações da inteligência artificial”. Isto, partindo do pressuposto que a Inteligência Artificial poderá apenas replicar com alguma semelhança a grande função do hemisfério esquerdo do nosso cérebro e que não o conseguirá fazer em relação às qualidades emergentes do direito. Mas será essa a evolução da IA? E será o equilíbrio que Damásio refere possível no ser humano? Será a relação entre humano e IA sustentável a prazo? Será que a própria IA não irá desenvolver uma dimensão mais intuitiva, holística, emocional, sentimental (uma espécie de hemisfério direito), atingindo esse equilíbrio e tornando o humano dispensável? São as questões mais importantes. No futebol, mas derradeiramente, para a espécie humana.

No entanto, algo que à maioria parecia impossível, parece estar a concretizar-se. Em regimes de auto-aprendizagem, a Inteligência Artificial está a fazer emergir propriedades não expectáveis. Curiosamente, a Google utiliza o jogo de futebol como forma de a desenvolver. No plano teórico, ao nível do software, mas também aplicando o mesmo à robótica. O programa Toda a Verdade, mostra-nos isso e chamamos atenção para a parte em que Raia Hadsell, vice-presidente da DeepMind, explica que a IA, através de robôs, aprendeu o jogo sozinha. Os investigadores não os programaram para jogar, apenas para moverem-se como os seres humanos. E disseram-lhes que o objectivo do jogo era marcar golo. Tendo isso em conta, a IA aprendeu então a decidir e a executar e, função do mesmo. E segundo a investigadora, está inclusive a chegar a “diferentes e interessantes estratégias, formas diferentes de se deslocar, formas diferentes de receber a bola”.

É incrível quando é demonstrado um rasgo de criatividade. Ou melhor, dois. E em apenas alguns segundos de video. Se a criatividade, segundo o ChatGPT, é a qualidade de pensar de forma original, gerar ideias inovadoras e encontrar soluções únicas para problemas, envolvendo a habilidade de conectar informações aparentemente desconexas, pensar fora das normas convencionais e produzir algo novo e valioso, então, quando no programa, o atacante sem bola simula que vai receber a bola iludindo o seu defensor mais próximo, mas acaba por realizar um espécie de tabela parando a bola de calcanhar para o companheiro, para depois, ainda dar um inesperado passo à sua esquerda que só se pode entender como uma finta de corpo para esconder a posterior desmarcação pela direita, criando uma situação de 2×1, tal mostra-nos criatividade emergente. E… entrosamento. Ou como Hadsell descreveu, coordenação emergente, tal como as crianças vivenciam na sua relação evolutiva com o jogo. Importa sublinhar… tudo isto fruto da Inteligência Artificial… Então, se a coordenação e criatividade se tornam possíveis, porque não será a leitura emocional, a sua interpretação e a inteligência emocional igualmente passíveis de serem aprendidas? Até porque como reconhecido atrás pela máquina, a razão não vive sem a emoção e vice-versa. E sendo assim, fica aberta a “caixa de Pandora”.

O neurocientista (António Damásio, 2020) aponta que “pode parecer paradoxal, porque quando se pensa na inteligência artificial o que vem à ideia é que são criaturas absolutamente invulneráveis, feitas de aço e de plástico em vez da nossa pobre carne humana. À primeira vista pode parecer uma asneira introduzir vulnerabilidade numa coisa que é robusta, no entanto, só a introduzindo teremos a possibilidade de fazer qualquer coisa de mais rico em matéria das reações que esse “organismo” poderá tomar”. Será que a própria Inteligência Artificial não irá então antecipar isso? Ou até já antecipou? Regressando ao exemplo da DeepMind, sem mais informação será um exercício de especulação da nossa parte. Porém, quando o defensor fica na situação de 2×1, não seria expectável que algo estritamente racional e eficiente como uma máquina em auto-aprendizagem, não decidisse que a contenção seria o melhor caminho naquela situação para minimizar as probabilidades de golo adversário? Não decidia, até por definição, esse comportamento, aguardando… “friamente”… o erro adversário para o desarme ou intercepção? Num jogo de 2×2, com certeza que não foi a primeira situação dessas que a máquina experimentou. Se a sua principal função é aprender, o que aconteceu ali? Porque terá o defensor “ido à queima”? Terá sido uma decisão emocional? Noutro exemplo, será que a Inteligência Artificial irá reconhecer que a competência de Jürgen Klopp está imbuída de emoções e sentimentos e sendo assim, não encontrará forma de a reproduzir? Se a resposta for sim a tudo isto, será então a máquina a reconhecer… razão… a Damásio. Quer o tenha lido, ou não…

Há pouco mais de dois anos atrás, o treinador (Miguel Quaresma, 2021) escreveu um artigo em que questionava: “Amanhã, ficará o futebol nas mãos da inteligência artificial? Será o treinador, no futuro, substituído por um avatar? Um Cyber treinador, inteiramente cientifico-tecnológico?” Tal como acreditamos ter sido a posição de Quaresma, se naquele momento defendíamos acerrimamente a importância do humano no processo, hoje não temos a mesma certeza.

Em sentido figurado mas com idênticos potenciais efeitos devastadores à nossa espécie, estamos perante a descoberta de um asteróide que pode estar em rota de colisão com a Terra, e portanto, que pode extinguir os seres humanos. Resta-nos decidir o que podemos e vamos fazer para evitar isso. E se formos bem sucedidos nessa missão, se ainda for possível, procurar extrair os seus eventuais raros e extraordinários recursos naturais.

“Raúl Rojas, especialista em Inteligência Artificial da Universidade Livre de Berlim, participou das primeiras experiências: “Desenvolvemos robôs futebolistas que jogam tão bem futebol que não há maneira de ganhar-lhes”. Em 2013 fez-se uma experiência na qual os jogadores deviam marcar penaltis a um Guarda-Redes robot. Com a exceção de Messi, nenhum futebolista conseguiu marcar mais de um golo ao Guarda-Redes robot.

Em 1997 realizou-se o primeiro Mundial de Futebol de robots. No futuro enfrentar robots humanoides nos treinos gerará mais oposição e se obterão melhores resultados e um maior nível competitivo do que nos treinos e jogos amigáveis atuais. 

Espera-se que em 2050 a equipa de robots humanoides ganhador da Robocup seja capaz de vencer a equipa campeã do mundo dos torneios da FIFA. Esta data coincide com a predição do momento no qual a inteligência artificial superará a humana (singularidade tecnológica). Para o ano de 2075 existe 90% de probabilidades de que as máquinas alcancem a inteligência humana, segundo os resultados combinados de quatro sondagens realizadas por Nick Bostrom, diretor do Future Humanity Institute da Universidade de Oxford.

Esta perspetiva do triunfo dos robots não parece absurda se tivermos como exemplo que em 1997 o supercomputador Deep Blue (desenvolvido pela IBM) venceu Gary Kasparov, campeão mundial de xadrez. O acontecimento repetiu-se em 2006, quando o campeão do mundo Vladimir Kramnik caiu derrotado frente à Deep Fritz. Estes antecedentes são superados pelo ocorrido em 2016, quando um programa informático (desenhado pela filial da Google DeepMind para jogar o jogo de Go) derrotou o melhor jogador do mundo: o sul-coreano Lee Se-dol. Os especialistas afirmam que é muito mais complexo para um computador aprender do Go do que do xadrez.

Os computadores podem inovar? Faz já um tempo que entramos numa era na qual as máquinas estão programadas para aprender de si mesmas. O futurólogo e tecnólogo Santiago Bilinkis o explica com precisão: “Atrás destes mecanismos de ensino conhecidos como Deep Learning escondem-se redes artificiais, inspiradas no funcionamento do cérebro humano. Muitas propriedades destes computadores mostram analogias com as capacidades humanas pelo seu engenho e criatividade”.

(Gérman Castaños, 2018)

Respeito

“Jock Stein é um homem que tem o sangue de Bruce nas veias. Um dos homens mais notáveis que já esteve no mundo do futebol.”

Bill Shankly em (The Three Kings, 2020)

No seu tempo o escocês Jock Stein destacou-se pelo seu pensamento sobre o jogo. Como Bertie Peacock, colega de equipa no Celtic referiu em (The Three Kings, 2020), “ele era muito conhecedor do jogo. Ele comia e dormia futebol”. No entanto, nas relações que estabelecia eram as suas qualidades humanas que não deixavam-lhe ninguém indiferente. O respeito que emanava pelo jogo, pelo Celtic, pela equipa, pelo seu trabalho e pelos seus jogadores tornou-o um dos grandes exemplos de Liderança que o Futebol conheceu. 

“De repente uma equipa que não parecia uma equipa, tornou-se uma equipa.”

Jimmy Reid em (The Three Kings, 2020)

Juntando a isto a solidariedade e ambição, tornou-se um dos treinadores britânicos mais brilhantes de sempre. Entre os muitos títulos que alcançou, maioritariamente obtidos no Celtic de Glasgow, destaca-se a Taça dos Clubes Campeões Europeus, também por ela ter sido a primeira a ser conquistada por equipas britânicas.

“É difícil imaginar um líder melhor do que Jock.”

(Alex Ferguson, 2015)

“Tudo influencia. Não há uma parte que joga Futebol”

“Em primeiro lugar temos que entender o fenómeno como complexo, e se o é, jamais poderá deixar de ser complexo o modo como intervimos, reflectimos e actuamos sobre ele. (…) Há que estar perante esta realidade, reconhecendo-a como não linear e assim todo o pensamento tem de ter esta base, não linear.”
(Vítor Frade, 2013)

“Imagina-se a trabalhar numa empresa em que o director ganhe menos do que os seus subordinados?”