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“O jogador português gosta de ter clareza táctica, gosta de ter informação táctica.”

“A geração que está, e quando digo geração estou a pensar nos que têm 17 e 39 anos, é formada por jogadores com cultura tática tão grande que quando falam é uau! É incrível. Têm uma linguagem, conhecimento e uma mentalidade completamente diferente. Tem a ver com isso: cresces com uma cultura, com uma paixão pelo jogo tão grande que este tem de ser o resultado. E isso tem de ser incentivado.”

(Vítor Matos, 2024)

Roberto Martínez toca nas duas principais qualidades que faltavam ao “jogador português” para darmos o salto competitivo colectivo e nos aproximarmos dos troféus. A paixão pelo jogo não é uma delas porque essa, desde que há memória do jogo em Portugal, sempre por cá existiu.

A transposição da competitividade que manifestávamos entre nós, não só noutros contextos culturais, mas também no jogo da “rua” para a competição formal e principalmente, internacional, fez crescer o jogador português para o patamar dos melhores. Dessa forma, hoje, não é surpresa para nós termos portugueses nos melhores clubes e equipas do mundo e que a nossa selecção seja reconhecida como uma das melhores.

Ainda em plenos anos 80’s e início dos 90’s o nosso Futebol vivia um clima de desconfiança no seu potencial, de conformismo com a nossa pequenez geográfica e populacional e de nos posicionarmos num segundo plano internacional no âmbito do jogo. Na realidade, não só do jogo, mas aqui o nosso foco vai para o Futebol. Vitórias sobre as “poderosas” Alemanha e Inglaterra, por exemplo, eram surpreendentes e celebradas como feitos dificilmente igualáveis. Hoje, como o nosso seleccionador e jogadores nos transmitem, são exigência. Dos próprios. A mudança cultural foi então enorme.

Um dos grandes, se não o principal momento desta mudança, foi o trabalho de Carlos Queiroz e Nelo Vingada com as selecções jovens no final da década de 80. De imediato foram colhidos frutos competitivos em campeonatos jovens, mas perante o fulcro do Futebol de Formação, não seriam esses os mais importantes. Passados alguns anos, essas gerações, na equipa principal portuguesa, mas também em vários grandes clubes por toda a Europa alcançaram um sucesso continuado. Esse sucesso influenciou e contagiou quem veio a seguir.

Mas a mentalidade não cresceu no vazio. Para além da criação de grupos coesos e fortes, Queiroz e Vingada, estimularam qualidades e passaram, de forma intensiva, ideias e conhecimento sobre o jogo. Além disso produziram conhecimento para terceiros, que ainda hoje se revela actual. A partir daí, clubes, universidades, jogadores e apaixonados pelo jogo na comunicação social e mais tarde na internet, contribuíram para a revolução a que assistimos e da qual hoje colhemos frutos. Como consequência cresceu a confiança nesse género de processo. Federação e clubes investiram, organizaram-se e proporcionaram contextos de qualidade aos jovens jogadores. Ainda que na maioria dos clubes o processo esteja a ser errático, lento e duro.

O jogador português passou, não só de apaixonado por esse conhecimento, como convicto da sua importância na obtenção de sucesso. A esse conhecimento se tem chamado táctica. Porém, ela não se restringe ao conhecimento teórico, a ideias, ou se reduz ao sistema ou mesmo princípios de jogo. A dimensão táctica que nos elevou ao actual patamar, como defende o professor Vítor Frade, não é apenas uma dimensão. É muito mais do que isso. É uma supra-dimensão. O que significa que engloba todo o comportamento do jogador e da equipa. Comportamento que emerge da interação de qualidades físico-motoras, recursos técnicos, conhecimento do jogo, aptidão emocional e / ou mentalidade. O que isto significa, é que o conhecimento do jogo entre outras qualidades, potenciou o sucesso e consequentemente fez crescer a confiança. E de forma geral, a mentalidade. E desse modo, tal sucesso provocou mais procura por conhecimento. Tal como Roberto Martínez aponta. 

Hoje, o apetite do jogador português por informação não é uma questão de moda. É, junto das outras qualidades, um reconhecimento do caminho que nos levou ao sucesso que actualmente vivemos. É esse todo, a táctica, enquanto supra-dimensão, ou por palavras mais simples, o… “jogar” de… sucesso que jogadores e treinadores perseguem, que faz com que um país tão pequeno como também defendeu o nosso seleccionador na mesma entrevista, se torne incrível e único no mundo do ponto de vista da produção de talento para este jogo. Essa vantagem não é portanto genética, é… cultural!

“O indivíduo todo, inteiro

emerge da cultura táctica

que sustenta o bom jogo, primeiro

no jogar o jogo como prática!”

(Vítor Frade, 2014)

A Inteligência Artificial é uma ameaça ao treinador? Ao jogador? Ao Futebol? À humanidade?

“A IA é potencialmente mais perigosa do que armas nucleares. As pessoas que são chamadas para criar IA precisam aceitar a responsabilidade de que podem estar a criar a nova vida na Terra.”

Demis Hassabis

O tema é extenso e profundo. Mas extremamente actual e importante. Como defende Demis Hassabis CEO da DeepMind, empresa que estuda a Inteligência Artificial à 12 anos, e entretanto comprada pela Google, talvez estejamos perante a invenção mais importante que a humanidade irá vivenciar até à data. Deste modo, pode parecer que pensar nas suas implicações no âmbito do Futebol seja redutor, ou até um pouco ofensivo tendo em conta a tremenda evolução, ou, ao contrário, a tremenda ameaça, que poderemos ter pela frente enquanto espécie. Ameaça, porque no cenário mais pessimista, tal tecnologia poderá ditar o princípio do fim dos seres humanos. Porém, apesar disto, e até ver, o jogo que tanto amamos não pára e interessa-nos também reflectir sobre as consequências da Inteligência Artificial no seu contexto.

Procurámos a perspectiva da própria Inteligência Artificial em relação ao tema, através ChatGPT e Bard, a nova ferramenta de Inteligência Artificial da Google. Ambos defendem que a IA está a revolucionar o futebol de várias formas, e o papel do treinador de futebol não será exceção. Segundo o ChatCPT “a IA pode ajudar os treinadores a tomar decisões mais informadas sobre uma ampla gama de questões, desde a seleção de jogadores até à estratégia de jogo”. A ferramenta destaca ainda a importância crescente da IA na análise do imenso volume de dados associado a uma equipa, como forma de identificar padrões e tendências colectivas ou grupais, mas também na análise do desempenho individual, na prevenção de lesões, identificação de pontos fortes e fracos de cada jogador e consequente prescrição de treino individualizado na procura de maximizar a eficiência individual. No plano da preparação estratégica, também é descrita como uma ajuda preciosa para analisar adversários e desenvolver planos de jogo com o intuito de superar determinada oposição. Mesmo durante os jogos e em tempo real. Até o Scouting é contemplado, “ajudando a identificar jovens talentos com base em características específicas. Algoritmos podem analisar dados de várias fontes para prever o potencial de um jogador antes mesmo de ele atingir o nível profissional”. As possibilidades tornam-se então, imensas. 

Em forma de conclusão, é referido que “em última análise, a IA tem o potencial de transformar o papel do treinador de futebol. Os treinadores que estão dispostos a abraçar a IA e aprender a usá-la terão uma vantagem competitiva significativa”. Por outro lado, “embora a IA continue a desempenhar um papel crescente no desporto, muitos acreditam que a presença humana será sempre essencial no papel de treinador de futebol. A integração bem-sucedida da IA no treino dependerá de como as tecnologias evoluem e de como são incorporadas de maneira eficaz, mantendo o equilíbrio entre as capacidades analíticas da IA e as habilidades humanas únicas”. É praticamente factual que os mais bem sucedidos treinadores da história do jogo tinham em comum enormes qualidades humanas, de liderança, empatia e inteligência emocional. Aparentemente a Inteligência Artificial reconhece isso.

Mas a procura deste equilíbrio não é novidade no futebol. Já no final da década de 70, um dos mais notáveis treinadores da história do jogo, o ucraniano Valeriy Lobanovskyi, que acumulou jogos, vitórias e títulos, principalmente ao serviço do Dínamo de Kiev e selecção da antiga União Soviética, vivia semelhante dilema. De acordo com (Jonathan Wilson, 2016), “Lobanovskyi, enquanto jogador, era um diletante que se opunha aos limites impostos por Viktor Maslov. Ainda assim, o seu racionalismo perfeccionista, a sua ambição e a sua inteligência analítica estavam presentes desde o início. Tratam-se de qualidades que não deveriam surpreender se considerarmos que ele demonstrara talento suficiente como matemático para ganhar uma medalha de ouro ao se formar no ensino médio e, além disso, crescera numa era em que se nutria verdadeira obsessão pelo progresso científico. Nascido em 1939, Lobanovskyi era um adolescente quando a URSS inaugurou sua primeira central eléctrica nuclear e enviou a Sputnik ao espaço, e Kiev era o centro da indústria de computação soviética. O primeiro instituto cibernético da URSS foi aberto em 1957 e rapidamente ficou conhecido como referência mundial em sistemas de controle automatizados, inteligência artificial e modelos matemáticos. Foi lá que um protótipo do computador pessoal da atualidade foi desenvolvido, em 1963. Na época em que Lobanovskyi estava estudando engenharia de aquecimento no Instituto Politécnico de Kiev, o potencial dos computadores e de suas possíveis aplicações em quase todas as esferas sociais tornava-se cada vez mais claro. Eram tempos excitantes, de muita novidade, e não é surpreendente que Lobanovskyi tenha sido contagiado pela onda de optimismo tecnológico. Dentro dele, desenrolava-se o grande conflito entre individualidade e sistema: a sua parte de jogador queria driblar, carregar a bola, inventar truques que deixassem os rivais envergonhados, mas, mesmo assim, como ele admitiria mais tarde, o treino que recebia no Instituto Politécnico impulsionava-o a uma abordagem sistemática, cuja meta seria dividir o futebol entre as tarefas que o compunham”.

Voltando à actualidade, tendo em conta a imberbidade das ferramentas, mas por outro lado demonstrando maior sensibilidade humana que alguns humanos, ChatGPT e Bard sublinham, neste momento, que apesar da crescente importância e papel da Inteligência Artificial no Futebol, torna-se “crucial que a componente humana, como a intuição e a compreensão emocional dos jogadores, continue a desempenhar um papel fundamental no processo de treino e gestão de equipas”. Ora, assistimos sistematicamente, nas televisões, jornais, blogs, etc., a análises desprovidas da tal sensibilidade emocional, ou seja, desprovidas de sensibilidade humana, que interpretam jogadores e treinadores como máquinas. “Analistas” esses, que por vezes, também por não estarem presentes no processo de treino, até ignoram o papel decisivo do mesmo na evolução das equipas e jogadores, na construção de decisões e execuções de qualidade, no desenvolvimento do entrosamento, da coesão, na criação de uma emocionalidade e sentimentalidade decisiva à equipa de qualidade e que se deseja de sucesso. Assim, são “analistas” que tratam então os humanos que jogam de forma mais artificial que a própria inteligência artificial. Não será isto, desde logo um sintoma de que podemos estar em risco de ser ultrapassados?

Entramos então num domínio de ainda maior complexidade. Emoções, intuição, inteligência colectiva. Assim… a “consciência” para o todo complexo que estrutura a nossa realidade é precisamente um dos sintomas de… inteligência. Esta preocupação pela própria complexidade surge da própria IA, referindo que “o futebol é um desporto altamente complexo que envolve não apenas a estratégia tática, mas também a gestão de personalidades, motivação, tomada de decisões rápidas e adaptação a situações imprevisíveis. A componente humana do treino, que inclui compreensão emocional, liderança e comunicação, é difícil de replicar totalmente por meio de algoritmos”. A isto a ferramenta soma o desafio que a intuição e criatividade se constituem à IA, supostamente ainda longe do que os humanos conseguem fazer. E ainda a liderança e as relações complexas, emocionais e inter-pessoais, e por outro lado em garantir um pensamento evolutivo que eleve o jogo a outros patamares. É mesmo referido que “a capacidade de adaptação e inovação é uma característica humana que pode ser desafiadora de replicar por completo em sistemas de IA”. Em tom mais descontraído, parece que tivemos de investir milhões e algumas das melhores mentes humanas para chegarmos à conclusão que afinal, no Futebol, “nem tudo está inventado”…

Esta fusão que a própria Inteligência Artificial propõe seria o cenário perfeito. Numa visão mais profunda, o equilíbrio entre razão e emoção. Como o neurocientista (António Damásio, 2018) aponta, referindo-o como um “vislumbre de esperança”, tendo em conta a “grande diferença entre esforços passados e tentativas futuras, está no vasto conhecimento sobre a natureza humana que agora temos à disposição e na possibilidade de planear uma estratégia mais humanamente inteligente do que no passado. Essa abordagem consideraria a ideia de que a razão deve estar no comando como pura tolice, um mero resíduo dos piores excessos do racionalismo, mas também rejeitaria a ideia de que devemos simplesmente obedecer às recomendações das emoções — sermos gentis, compassivos, raivosos, sentir nojo — sem passá-las pelo filtro do conhecimento e da razão. Promoveria uma parceria produtiva entre sentimentos e razão, enfatizando as emoções salutares e suprimindo as negativas. Por fim, ela rejeitaria a noção da mente humana como um equivalente das criações da inteligência artificial”. Isto, partindo do pressuposto que a Inteligência Artificial poderá apenas replicar com alguma semelhança a grande função do hemisfério esquerdo do nosso cérebro e que não o conseguirá fazer em relação às qualidades emergentes do direito. Mas será essa a evolução da IA? E será o equilíbrio que Damásio refere possível no ser humano? Será a relação entre humano e IA sustentável a prazo? Será que a própria IA não irá desenvolver uma dimensão mais intuitiva, holística, emocional, sentimental (uma espécie de hemisfério direito), atingindo esse equilíbrio e tornando o humano dispensável? São as questões mais importantes. No futebol, mas derradeiramente, para a espécie humana.

No entanto, algo que à maioria parecia impossível, parece estar a concretizar-se. Em regimes de auto-aprendizagem, a Inteligência Artificial está a fazer emergir propriedades não expectáveis. Curiosamente, a Google utiliza o jogo de futebol como forma de a desenvolver. No plano teórico, ao nível do software, mas também aplicando o mesmo à robótica. O programa Toda a Verdade, mostra-nos isso e chamamos atenção para a parte em que Raia Hadsell, vice-presidente da DeepMind, explica que a IA, através de robôs, aprendeu o jogo sozinha. Os investigadores não os programaram para jogar, apenas para moverem-se como os seres humanos. E disseram-lhes que o objectivo do jogo era marcar golo. Tendo isso em conta, a IA aprendeu então a decidir e a executar e, função do mesmo. E segundo a investigadora, está inclusive a chegar a “diferentes e interessantes estratégias, formas diferentes de se deslocar, formas diferentes de receber a bola”.

É incrível quando é demonstrado um rasgo de criatividade. Ou melhor, dois. E em apenas alguns segundos de video. Se a criatividade, segundo o ChatGPT, é a qualidade de pensar de forma original, gerar ideias inovadoras e encontrar soluções únicas para problemas, envolvendo a habilidade de conectar informações aparentemente desconexas, pensar fora das normas convencionais e produzir algo novo e valioso, então, quando no programa, o atacante sem bola simula que vai receber a bola iludindo o seu defensor mais próximo, mas acaba por realizar um espécie de tabela parando a bola de calcanhar para o companheiro, para depois, ainda dar um inesperado passo à sua esquerda que só se pode entender como uma finta de corpo para esconder a posterior desmarcação pela direita, criando uma situação de 2×1, tal mostra-nos criatividade emergente. E… entrosamento. Ou como Hadsell descreveu, coordenação emergente, tal como as crianças vivenciam na sua relação evolutiva com o jogo. Importa sublinhar… tudo isto fruto da Inteligência Artificial… Então, se a coordenação e criatividade se tornam possíveis, porque não será a leitura emocional, a sua interpretação e a inteligência emocional igualmente passíveis de serem aprendidas? Até porque como reconhecido atrás pela máquina, a razão não vive sem a emoção e vice-versa. E sendo assim, fica aberta a “caixa de Pandora”.

O neurocientista (António Damásio, 2020) aponta que “pode parecer paradoxal, porque quando se pensa na inteligência artificial o que vem à ideia é que são criaturas absolutamente invulneráveis, feitas de aço e de plástico em vez da nossa pobre carne humana. À primeira vista pode parecer uma asneira introduzir vulnerabilidade numa coisa que é robusta, no entanto, só a introduzindo teremos a possibilidade de fazer qualquer coisa de mais rico em matéria das reações que esse “organismo” poderá tomar”. Será que a própria Inteligência Artificial não irá então antecipar isso? Ou até já antecipou? Regressando ao exemplo da DeepMind, sem mais informação será um exercício de especulação da nossa parte. Porém, quando o defensor fica na situação de 2×1, não seria expectável que algo estritamente racional e eficiente como uma máquina em auto-aprendizagem, não decidisse que a contenção seria o melhor caminho naquela situação para minimizar as probabilidades de golo adversário? Não decidia, até por definição, esse comportamento, aguardando… “friamente”… o erro adversário para o desarme ou intercepção? Num jogo de 2×2, com certeza que não foi a primeira situação dessas que a máquina experimentou. Se a sua principal função é aprender, o que aconteceu ali? Porque terá o defensor “ido à queima”? Terá sido uma decisão emocional? Noutro exemplo, será que a Inteligência Artificial irá reconhecer que a competência de Jürgen Klopp está imbuída de emoções e sentimentos e sendo assim, não encontrará forma de a reproduzir? Se a resposta for sim a tudo isto, será então a máquina a reconhecer… razão… a Damásio. Quer o tenha lido, ou não…

Há pouco mais de dois anos atrás, o treinador (Miguel Quaresma, 2021) escreveu um artigo em que questionava: “Amanhã, ficará o futebol nas mãos da inteligência artificial? Será o treinador, no futuro, substituído por um avatar? Um Cyber treinador, inteiramente cientifico-tecnológico?” Tal como acreditamos ter sido a posição de Quaresma, se naquele momento defendíamos acerrimamente a importância do humano no processo, hoje não temos a mesma certeza.

Em sentido figurado mas com idênticos potenciais efeitos devastadores à nossa espécie, estamos perante a descoberta de um asteróide que pode estar em rota de colisão com a Terra, e portanto, que pode extinguir os seres humanos. Resta-nos decidir o que podemos e vamos fazer para evitar isso. E se formos bem sucedidos nessa missão, se ainda for possível, procurar extrair os seus eventuais raros e extraordinários recursos naturais.

“Raúl Rojas, especialista em Inteligência Artificial da Universidade Livre de Berlim, participou das primeiras experiências: “Desenvolvemos robôs futebolistas que jogam tão bem futebol que não há maneira de ganhar-lhes”. Em 2013 fez-se uma experiência na qual os jogadores deviam marcar penaltis a um Guarda-Redes robot. Com a exceção de Messi, nenhum futebolista conseguiu marcar mais de um golo ao Guarda-Redes robot.

Em 1997 realizou-se o primeiro Mundial de Futebol de robots. No futuro enfrentar robots humanoides nos treinos gerará mais oposição e se obterão melhores resultados e um maior nível competitivo do que nos treinos e jogos amigáveis atuais. 

Espera-se que em 2050 a equipa de robots humanoides ganhador da Robocup seja capaz de vencer a equipa campeã do mundo dos torneios da FIFA. Esta data coincide com a predição do momento no qual a inteligência artificial superará a humana (singularidade tecnológica). Para o ano de 2075 existe 90% de probabilidades de que as máquinas alcancem a inteligência humana, segundo os resultados combinados de quatro sondagens realizadas por Nick Bostrom, diretor do Future Humanity Institute da Universidade de Oxford.

Esta perspetiva do triunfo dos robots não parece absurda se tivermos como exemplo que em 1997 o supercomputador Deep Blue (desenvolvido pela IBM) venceu Gary Kasparov, campeão mundial de xadrez. O acontecimento repetiu-se em 2006, quando o campeão do mundo Vladimir Kramnik caiu derrotado frente à Deep Fritz. Estes antecedentes são superados pelo ocorrido em 2016, quando um programa informático (desenhado pela filial da Google DeepMind para jogar o jogo de Go) derrotou o melhor jogador do mundo: o sul-coreano Lee Se-dol. Os especialistas afirmam que é muito mais complexo para um computador aprender do Go do que do xadrez.

Os computadores podem inovar? Faz já um tempo que entramos numa era na qual as máquinas estão programadas para aprender de si mesmas. O futurólogo e tecnólogo Santiago Bilinkis o explica com precisão: “Atrás destes mecanismos de ensino conhecidos como Deep Learning escondem-se redes artificiais, inspiradas no funcionamento do cérebro humano. Muitas propriedades destes computadores mostram analogias com as capacidades humanas pelo seu engenho e criatividade”.

(Gérman Castaños, 2018)

Bernardo Silva

“Eu era Sub17 quando começou a era do Barcelona de Guardiola. Ver jogadores como Messi, Iniesta e Xavi dava-me mais força para continuar. Porque eu estava sem jogar pois era mais pequeno que os outros. Assim, ver a melhor equipa do mundo nesse momento e ver que estavam ali três dos melhores do mundo e eram quase mais pequenos que eu…”
(Bernardo Silva, 2019)

Guarda-Redes

“(…) Mourinho elevou os graus de exigência, até para os Guarda-Redes. Aquilo que se espera do Guarda-Redes já não é o mesmo que se esperava. Exige-se mais e melhor, com e sobretudo, sem bola. Por causa de Mourinho e Ca., o jogo dos Guarda-Redes tem mais cérebro, mais sumo que nunca e, prova disso, é o salto estratosférico que a preparação e o jogar dos Guarda-Redes, assim como o rendimento dos mesmos nas equipas de Mourinho deu, nos últimos 20 anos. A José Mourinho e sobretudo, a Silvino Louro, tenho de agradecer. Porque me fizeram perceber desde cedo que, treinar Guarda-Redes não é só rentabilizar o tempo que tenho com eles a “chutar bolas”. É mais, é ter de entender o Jogo, fazer entender o Jogo. Ser um “Catalisador de Vivências”, ser mais Futebol.”
(Pedro Espinha, 2018)

“Um jogo muito táctico”

“(…) dói ver equipas que não se «ligam», que não têm uma aquisição de uns nos outros, porque o jogo é isso! Ou deve ser! Não se trata de jogar bem ou mal, trata-se de JOGAR! Ou seja, haver uma emergência que SENTIMOS COLECTIVA…”

(Marisa Gomes, 2011)

É infindável o número de vezes que ouvimos a expressão “foi um jogo muito táctico”. Desde o mais comum espectador até ao treinador da equipa de primeira liga. Na maioria das vezes a sentença carrega uma grande negatividade, pois identifica um jogo pouco entusiasmante, enfadonho, com poucas oportunidades de finalização e até mal jogado. Provavelmente entre duas equipas que, estratégicamente, aparentaram dar prioridade aos seus momentos defensivos, e não raras as vezes, a expressão avalia um jogo que terminou 0-0. Mas será este o verdadeiro sentido de “táctico”? Algo acessório no jogo, e desligado de quem joga?

Olhando para a realidade do jogo de Futebol, rapidamente compreendemos que é um jogo repleto de intencionalidades e decisões. Se num outro extremo, jogos simples, como o atirar uma moeda ao ar, ou lançar dados retiram ao jogador praticamente toda a decisão sobre o resultado que obtém, por outro lado, jogos complexos como são o caso dos desportos colectivos, remetem quem joga, para um plano em que a sua acção torna-se decisiva no desfecho dos mesmos. Esta acção, ou comportamentos, manifestam-se em campo através de posicionamentos, movimentos e execuções, que resultam das decisões dos jogadores, influenciados por uma intenção colectiva definida pelo treinador. O disruptivo trabalho de Friedrich Mahlo no início da década de 60, publicado na sua obra “O acto táctico no jogo”, veio, pela primeira vez de forma mais profunda, provocar a reflexão sobre estas questões e colocar em causa o que é verdadeiramente nuclear nos jogos desportivos coletivos: a decisão. Decisão esta, que emerge muitas vezes da esfera do subconsciente, mas em muitos outros momentos é tomada de forma consciente, e resultante de uma cultura adquirida em vivências anteriores. O treinador português (Paulo Fonseca, 2016) confessa mesmo que “com toda a honestidade, a exigência de Jorge Jesus fez-me pensar no que eu nunca tinha pensado. Até esse momento eu raramente pensava o jogo, apenas o executava. E eu comecei a pensá-lo. Até esse momento eu pouco sabia o que era a minha tarefa enquanto Defesa-Central e comecei-me a apaixonar pelo treino, pelas questões tácticas”.

Estas ideias são hoje comumente aceites e difundidas, no entanto não o eram “ainda” há cerca de 15 anos atrás, principalmente no contexto específico do Futebol. Actualmente, o processo de decisão, ou seja o táctico, tornou-se vital na cabeça dos melhores treinadores. Um processo intencional de resolução de problemas, uma manifestação de inteligência específica do jogo de futebol. Que perante um jogo que é colectivo, se torna na larga maioria das situações, um processo colectivo. Este é o nosso entendimento de táctica. De acordo com a (Wikipédia, 2018), a “inteligência em sido definida popularmente e ao longo da história de muitas formas diferentes, tais como em termos da capacidade de alguém/algo para lógica, abstração, memorização, compreensão, autoconhecimento, comunicação, aprendizagem, controlo emocional, planeamento e resolução de problemas”. O website (Dreamfeel, 2012) expõe ainda que para o investigador Howard Gardner a inteligência é a capacidade de resolver problemas ou de elaborar produtos que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais ou comunitários”. Por outro lado, a autora (Sofia, 2010) explica que a inteligência manifesta-se na “capacidade de adaptação a situações novas e resolução de problemas, capacidade de pensar abstractamente e capacidade aprender. Estas três capacidades são indissociáveis, complementares, nenhuma delas pode ser analisada de forma independente. Estão interligadas, constituindo diferentes tipos de inteligência. A inteligência é um sistema complexo“.

Deste modo, o contexto específico dos desportos colectivos, solicitará igualmente uma complexa, mas específica manifestação de inteligência. Sendo complexa, ela envolverá outras formas de inteligência, sendo a inteligência emocional um excelente exemplo. Mas tendo em conta o contexto altamente decisional do jogo, faz então sentido falar-se em inteligência táctica. O autor (Garganta, 1997), citado por (Cardoso, 2006), refere que “o Futebol deverá ter como núcleo director a dimensão Táctica do jogo porque é nela e através dela que se consubstanciam os comportamentos que ocorrem durante uma partida”. Cardoso complementa ainda, sustentando que “a dimensão Táctica é causadora de comportamentos e é por estes que o jogo se desenvolve. Nesse sentido, a dimensão Táctica condiciona de uma forma importante a prestação dos jogadores e das equipas. Ainda como salienta (Guilherme Oliveira, 2004) devemos entender por dimensão Táctica o resultado da interacção entre as diferentes dimensões. Se para corresponder tacticamente tenho de estar no sítio certo, no momento certo (implica movimento), com a capacidade para responder (tecnicamente) dentro de uma intenção colectiva então a dimensão Táctica por si só não existe. Ela existe pela interacção das outras dimensões”. O autor (Guilherme Oliveira, 2004), citado por (Cardoso, 2006), explica também que o Táctico “é o elo de ligação que dá sentido e sentimento ao jogo, promovendo uma Especificidade de jogo, uma vez que o jogo é muito mais que um somatório de ocorrências, é um enredo que se pretende criado dessas ocorrências, que, em consequência, promove a criação e o desenvolvimento de conhecimentos colectivos e individuais que lhe são próprios e que vão permitir a melhoria qualitativa de jogo, colectiva e individual”. O professor (Frade, 1998), citado por (Cardoso, 2006) explica que “o táctico não é físico, não é técnico, não é psicológico, não é estratégico, mas precisa dos quatro para se manifestar, ou seja, quando se diz que não se divide tem-se consciência de que o crescimento táctico, tendo em conta a proposta de jogo a que se aspira, ao realizar-se ao operacionalizar-se, vai implicar alterações ao nível técnico, isto é, há que ter consciência que o táctico tem a ver com a proposta de jogo que se pretende, mas não é um táctico abstracto”.

A Supradimensão Táctica surge da interacção entre as diferentes dimensões do rendimento.

 

Este entendimento… complexo… de táctica, leva-nos então a rejeitar novos dualismos, resultantes, uma vez mais, do pensamento analítico enraizado na nossa cultura. São exemplos, do mais sintético para o mais real, a táctica apenas como a estrutura posicional da equipa em jogo, ou como referimos atrás, a táctica como um projecto de um jogo defensivo e fechado, por outro lado, a táctica como um conjunto de regras e condicionantes comportamentais que amarram o jogador e lhe retiram liberdade, individualidade, criatividade e inteligência no jogo, ou ainda, a táctica separada do homem, consubstanciada no “homem está antes da tática” como o professor (Manuel Sérgio, 2014) defendeu. Neste último caso, não é a fundamentação que está em causa. É a conclusão. Não nos restam dúvidas que o homem é a condição máxima em qualquer uma das suas actividades. Concordando com Manuel Sérgio, “se não compreender as mulheres e os homens que saltam e chutam e fintam, não compreenderei forçosamente os saltos, os chutos e as fintas”. Acrescentamos que se também não compreendermos o que é de facto o Táctico, também não compreenderemos as mulheres e homens que… jogam. Foi o que sustentámos recentemente pela perspectiva dos valores humanos: o “jogar” expõe e cultiva valores. Na visão complexa de táctica que Vítor Frade sustenta, se a “supradimensão” táctica não existe só, emergindo da interacção das demais dimensões e criando simultaneamente expressões e adaptações nas mesmas, então… o táctico é o todo comportamental do homem em jogo. Portanto… o táctico é o homem que joga. O táctico não existe sem o homem que joga, como o homem, a partir do momento que joga, se torna… táctico. Recordando o nosso entendimento… o táctico é um processo intencional de resolução de problemas, uma manifestação de inteligência específica do jogo de futebol.

Portanto, não há jogos muito ou pouco tácticos. Se é jogo… o táctico… a decisão… o comportamento, estarão sempre lá. E se a expressão táctica de uma equipa, envolverá “uma proposta de jogo a que se aspira”, o que poderá estar em discussão será a qualidade de cada proposta, tendo em conta as características do jogo que se disputa. O que nos remete para o decisivo trinómio estética-eficácia-eficiência. Expressão táctica que pode ainda ser entusiasmante ou não, se tentarmos isolar a perspectiva estética, porém, neste caso temos que também ter em conta a relatividade desta avaliação perante a cultura e o sentido estético de cada indivíduo que observa o jogo.

Portanto, o táctico por si só é neutro. Pode ser bom ou mau tendo em conta as ideias dão “forma” aos comportamentos da equipa em jogo. Como (Amieiro, 2009) refere, o Táctico é o fio invisível que faz emergir aquilo que reconhecemos como traços marcantes do jogar de uma equipa“.

O Futebol, deve ser entendido como aquilo que realmente é: um sistema complexo. Nesta perspectiva, segundo (Tobar, 2018), “Bertrand & Guillemet (1994) para além de apontarem um sistema como um todo dinâmico constituído por elementos que se relacionam e interagem entre si e com o meio envolvente; são contundentes ao afirmarem que os sistemas revelam um conjunto de pressupostos que os caracterizam, que são: abertura, complexidade, finalidade, tratamento, totalidade, organização, fluxo e equilíbrio”. Destas características, os mesmos autores explicam que a totalidade “significa que um sistema é mais do que a soma das suas partes (sinergia), e isso também implica que os sistemas tenham as suas próprias propriedades, que em virtude das interações, são diferentes das dos seus componentes vistos de maneira isolada”. Assim, o táctico emerge como o tal “mais do que a soma das partes” e a expressão da especificidade do Futebol. Nesta lógica, conceitos como forma… táctica, velocidade… táctica, intensidade… táctica, volume… táctico, etc., irão também, consequentemente emergir a partir daí.

Deste modo a questão não está entre uma eventual dicotomia entre um jogo táctico e outro “bonito”. A questão estará… o que será um jogo mau e outro bom. Ou mais precisamente, um jogo tacticamente mau, e um jogo tacticamente bom.

“Táctica para mim sem talento, sem beleza, não existe. O táctico para mim não tem que ser aquele táctico fechado, aquela coisa automatizada.”

(Vítor Pereira, 2016)

“Fisicamente mais forte”

Quantas vezes ouvimos e lemos a expressão… “o jogador x é fisicamente mais forte”. Mas o que isso significa exactamente no jogo de futebol? A qualificação atribui-se à morfologia? Às qualidades físicas? Ou à influência que a “imagem” morfológica, misturada com a agressividade, terá na mente dos adversários?

Se falamos de morfologia, face às leis do jogo, nas quais o único contacto físico permitido será no ombro a ombro, diga-se, acção rara ao longo do jogo, então a mesma torna-se pouco importante. A excepção é o jogo aéreo, onde ser-se mais alto pode ser relevante. Mas mesmo nesse caso, nem sempre. Antecipar o local onde a bola vai cair, calcular o tempo de salto ideal, garantir a melhor impulsão, ser corajoso para disputar uma bola, muitas vezes, no meio de um aglomerado de jogadores, e a técnica de cabeceamento, são exemplos de qualidades que serão bem mais decisivas na disputa do jogo aéreo do que apenas ser-se mais alto.

Quanto às qualidades físicas, sendo obviamente relevantes, desligadas de boas decisões em jogo, tornam-se no futebol, também obsoletas. Neste sentido, (Sampaio, 2013) defende que “no futebol, ao contrário de muitos desportos, não há um estereótipo de “atleta”. Como exemplo, na prova de 100 metros do atletismo, é normal vermos atletas altos e musculados; na maratona é normal os atletas serem muito magros; no futebol não é assim, o jogador de futebol não é um atleta, simplesmente é jogador de futebol. Alguém pode dizer que Pirlo, Xavi, Aimar, Messi, David Silva, etc., são atletas? Eu não acho que sejam, simplesmente são jogadores de futebol”.

Por outro lado, a influência da dimensão física na dimensão psicológica reflecte, não só a complexidade do jogo, mas no fundo a complexidade humana e o “erro de Descartes” que “segundo Damásio, terá sido a não apreciação de que o cérebro não foi apenas criado por cima do corpo, mas também a partir dele e junto com ele”, (Wikipédia, 2016). Nesta perspectiva, no futebol, o jogador ser fisicamente mais forte, não é relevante. O que será relevante é ser-se complexamente mais forte. E se assumirmos que a dimensão táctica, como Vítor Frade postulou, “não é psicológica, não é física, não é técnica, mas necessita de todas elas para se manifestar”, então, ser-se mais forte neste jogo significa ser-se mais forte tacticamente, que surge da interacção da morfologia com as qualidades físicas, com a mentalidade, com o conhecimento do jogo, o domínio da execução, etc. Conclui-se então que o aspecto ou o desempenho estritamente físico… garante pouco para este jogo.

Lionel Messi, Xavier Hernández, Andrés Iniesta, Andrea Pirlo, Pablo Aimar, Luka Modric e tantos outros, comprovaram tudo isto jogo após jogo, sendo mais fortes que os seus adversários. Aqui, Modric, não necessitou do ombro a ombro para recuperar a bola.

https://www.facebook.com/SaberSobreOSaberTreinar/videos/1828831890479403/

“O indivíduo todo, inteiro

emerge da cultura táctica

que sustenta o bom jogo, primeiro

no jogar o jogo como prática!”

(Frade, 2014)

Jogar com o “físico”

Excluindo as acções de jogo aéreo, a situação mostra uma vez mais que a morfologia, no que respeita ao tamanho ou à “largura” do corpo, tem pouco significado no Futebol. Se uma das razões é o seu regulamento, que permite um contacto muito reduzido entre opositores, outra não menos importante, é a inteligência, que neste jogo se manifesta através da dimensão táctica, e que vai superando constantemente argumentos puramente físico-energéticos.

Modrić percebendo o risco do passe atrasado de Carvajal para Sergio Ramos dada a presença próxima de Thiago Alcântara, ajusta a sua posição, colocando-se no espaço certo para atrapalhar a pressão de Thiago e atrasar a acção do opositor. Uma fracção de segundo que foi suficiente para garantir outra qualidade à acção de Sergio Ramos. No fundo Modrić, usando a inteligência, joga com o físico, o qual não precisou de ser volumoso para ser útil ao jogo da equipa. O autor (Sampaio, 2013), defende que ““no futebol, ao contrário de muitos desportos, não há um estereótipo de “atleta”. Como exemplo, na prova de 100 metros do atletismo, é normal vermos atletas altos e musculados; na maratona é normal os atletas serem muito magros; no futebol não é assim, o jogador de futebol não é um atleta, simplesmente é jogador de futebol. Alguém pode dizer que Pirlo, Xavi, Aimar, Messi, David Silva, etc., são atletas? Eu não acho que sejam, simplesmente são jogadores de futebol. Como diz Klopp, a característica mais importante é mesmo a qualidade técnica e logo a seguir vem a inteligência de jogo”.

“O talento é o aspecto-chave no Futebol moderno. A habilidade natural e o talento são mais valiosos que a força física. Podem colocar em campo 11 jogadores fortes fisicamente, mas isso não será suficiente para vencer. Tem sido sempre assim ao longo dos anos.”

Xavi Hernández

Intensidade no Futebol V

“Jogo de grande Intensidade… Não há pausas! Futebol rijinho… De grande intensidade. A bola até faz faísca.” Imbuída num êxtase incompreensível para quem gosta deste jogo, este foi mais um comentário de um jornalista, proferido nos últimos dias durante a transmissão de um jogo do campeonato brasileiro.

Porém, parece surgir entre os jornalistas e analistas, uma visão diferente da intensidade… no futebol. Consequentemente, ou consequência de…, surge também um entendimento mais evoluído e complexo do jogo. Assim provam que, à semelhança de jogadores e treinadores, esta classe profissional também pode evoluir o seu conhecimento e tornar o fenómeno globalmente melhor.

“Falta Intensidade Táctica. Poderei chamar de Intensidade Táctica, a razão entre o aplicar da minha forma de jogar e o tempo de jogo. Quanto maior for o tempo de jogo que a minha equipa conseguir aplicar a sua forma de jogar, reduzindo a do adversário, é tanto maior a sua Intensidade Táctica.

(…)

Então, é preciso treinar a/em concentração. Como? Treinando com exercícios de complexidade elevada, que exijam concentração, “obrigando” a equipa a estar concertada durante os 90 minutos, cumprindo as missões no jogo, mantendo uma Intensidade Táctica elevada.”

Rui Sá Lemos, 2007, em carta à redacção do website MaisFutebol, portanto há… 10 anos.

Francisco Silveira Ramos

Para os menos conhecedores do futebol português e da evolução metodológica vivenciada, o professor Francisco Silveira Ramos é sem dúvida uma figura incontornável do jogo. Durante os anos 90 e princípio do século XXI, momento em que o treino era determinado pela dimensão física, no qual quem pensava “fora da caixa” era hostilizado pelo pensamento vigente, Silveira Ramos foi um dos poucos, que com coragem, assumiu que a preocupação central do treino deveria ser o cérebro e a decisão táctica. Defendendo a “integração dos factores do rendimento”, a sua visão diferia de forma abissal do “treino integrado” muito típico no Futebol Espanhol, mas também com expressões no Futebol Português. Como sustentámos no tema de Saber Sobre o Saber Treinar, “O treino integrado e sintético” tinha na mesma como preocupação central a dimensão física, porém aqui camuflada por exercícios com bola e acções do jogo. Silveira Ramos não só anteviu outro rumo que hoje se concretiza, como formou muitos técnicos em cursos de treinadores e licenciaturas, e ainda ajudou a crescer, nas selecções jovens portuguesas alguns dos maiores talentos do futebol português. Finalmente, revelou ainda grandes preocupações com o Futebol de Formação e o desaparecimento do Futebol de Rua.

Assumimos que o professor Francisco Silveira Ramos foi decisivo na forma como hoje vemos o jogo e o treino e dos que mais nos inspiraram a criar este espaço. Apesar do facto passar despercebido à maioria da comunicação social, Portugal pode-se orgulhar em contar com alguns dos maiores pensadores deste jogo, que contribuíram para a tal ruptura de conhecimento que já descrevemos. E sem dúvida que Silveira Ramos é um deles. Deixamos várias ideias do professor num recente programa televisivo, que dado o conhecimento dos intervenientes e das ideias abordadas, fugiu à norma do panorama televisivo português.

O Treinador Português:

A dimensão estratégica:

O treinador de “formação”:

O jogo mecânico e a música:

A crescente riqueza comportamental de cada função e a repercursão na dimensão física:

A era das dinâmicas:

Jogo curto e apoiado:

Criatividade defensiva:

Individualização do treino:

“Cabe-nos encontrar as metodologias que permitam que o processo de treino se adapte a essa realidade, adaptando os praticantes às exigências da competição.

Francisco Silveira Ramos, 2003

Um jogo tacticamente rico?

Abordando o tema, e independentemente da perspectiva com que o fazemos, devemos em primeiro lugar, parabenizar um clube e a sua equipa, que com menores recursos, conseguiu dentro do campo ser mais eficaz do que os seus adversários. Não é objectivo deste artigo aferir se pela dimensão táctica, estratégica, se pela sua qualidade individual, mas simplesmente realçar que uma vez mais, se materializou um dos muitos encantos que o jogo proporciona: a possibilidade do mais improvável vencer. No fundo de David derrotar Golias. E independentemente da forma como o jogo exerce atracção sobre cada um de nós, a sua dimensão social é incontornável e também merece este destaque.

Porém o tema é outro. Augusto Inácio, técnico vencedor, referiu numa entrevista, pós jogo, que o mesmo foi “tacticamente rico”. É uma opinião amplamente difundida, que equipas que reconhecidamente não “jogam bem”, que apenas conseguem alguma eficácia no momento defensivo do jogo e que como consequência não permitem oportunidades de finalização ao adversário, mas também não as criam, tornam automaticamente o jogo rico… tacticamente.

Confunde-se organização e / ou eficácia no momento defensivo do jogo com riqueza de jogo, e isto tem sido um tema abordado e discutido nos últimos dias, ao qual voltaremos nos próximos.

Augusto Inácio, acaba também por explicar porque é que o jogo não pode ter sido rico tacticamente. Se as equipas não tiveram qualidade em todos os momentos do jogo, sendo os momentos com bola os exemplos referidos pelo treinador português, então não podemos estar perante um jogo tacticamente rico. Uma justificação para este pensamento generalizado, pode passar pela maior facilidade com que se trabalha o momento defensivo do jogo, pensamento esse que assim entrega os momentos ofensivos à qualidade individual dos jogadores. Nesta lógica, a táctica enquanto organização (uma ideia redutora), estará nesta visão apenas dirigida à Organização Defensiva. No entanto o próprio Inácio, acaba por explicar como é que uma equipa pode ser mais rica, e consequentemente ter capacidade de resposta colectiva, portanto competência… táctica, a diferentes contextos no seu momento ofensivo:

Dois passes que fazem a diferença… táctica

Dois passes que fazem a diferença... táctica - Cruzamento de Eliseu

Trazemos duas situações que têm em comum uma acção técnica: o passe. Mas será que devemos descrever estas acções como técnicas? Não se entendermos a técnica de forma analítica, idealizando uma qualidade que pode viver isolada das demais, materializada naquela visão tradicional do jogador “bom executante”. O passe, demasiadas vezes associado exclusivamente ao domínio da execução, é, como todas as outras acções do jogo, influenciado decisivamente por outras qualidades. Podemos pensar no passe do ponto de vista biomecânico pela forma como o jogador contacta fisicamente com a bola, imprimindo-lhe trajectória e força. Podemos também pensar no passe do ponto de vista psicológico. Quando Pablo Aimar assistiu de “letra” David Suazo, Ronaldinho Gaúcho assistiu de costas Giuly (sim, um passe com as costas) ou Ibrahimovic de calcanhar assistiu Lavezzi, revelou em todos eles um estado emocional acima do normal. Podemos ainda pensar no passe do ponto de vista social, e na comunicação que envolve. Não a comunicação tradicional, a qual Vítor Frade descreve de forma curiosa:

“”Pede, pede…

Pede a bola”,

é gritaria que fede

inibindo até quem tem tola.”

(Frade, 2014)

Mas de uma comunicação, talvez a mais específica do jogo de Futebol. Isto porque estamos perante uma acção de jogo que envolve uma relação entre emissor e receptor, preferencialmente não verbal. Por um lado, num primeiro momento numa comunicação corporal que transmite a disponibilidade para um jogador receber a bola do seu companheiro, por outro e num segundo momento, na bola enquanto mensagem, sendo o seu conteúdo as características do passe, o seu destino, e por vezes até a forma de resolver o problema seguinte, quando falamos do passe orientado, daquele que sugere, ou seja, aquele que indica uma decisão a tomar a seguir. Porém, o que determina a qualidade do passe é a interacção de tudo isto e muito mais, que se constitui numa (supra)dimensão táctica do passe, expressa pela decisão e execução a si acopladas e respectivo sucesso.

Assim, nas duas situações em causa destacamos dois passes, ambos decisivos no seu desfecho. Passes de características diferentes mas determinados por uma qualidade fundamental, a consciência no jogo, portanto a dimensão táctica.

O primeiro, em sub-momento ofensivo de construção, mostrando uma prévia inteligência colectiva na procura do espaço de progressão, e depois pela forma vertical como rompe o bloco adversário e coloca imediatamente a equipa numa situação favorável de criação.

“Tem que se jogar à largura, com paciência, até se encontrar o espaço entre-linhas, o espaço para meter o passe vertical e para acelerar o jogo.”

Vítor Pereira

O segundo, no sub-momento ofensivo de criação, caindo na muitas vezes “zona nublosa” do cruzamento, no fundo um passe horizontal para finalização, no qual a leitura da situação, como a imagem que ilustra este artigo mostra, foi decisiva. Leitura tantas vezes desvalorizada nos cruzamentos, até pelo jogador que, através dela, aqui obtém sucesso.

“O importante não são os números, mas sim a dinâmica da equipa.”

Na conferência de imprensa da selecção portuguesa, João Mário foi ao encontro de uma ideia defendida por nós. À luz do seu conhecimento do jogo, o jogador português descreve que cada vez dá menos importância aos “números”, portanto aos sistemas, e que tacticamente, o mais importante é a dinâmica que a equipa manifesta.

Dada a natural evolução táctica que o jogo apresentou, a estrutura posicional da equipa – sistema táctico, ganhou uma importância nuclear, assumindo-se como a principal referência para transmitir e analisar a organização das equipas. Uma das razões para este facto, foram mesmo as diferentes implicações na dinâmica das equipas e consequentemente na cultura de jogo, que as diferentes mudanças estruturais trouxeram.

Contudo, tal como noutras dimensões da intervenção do treinador no jogo, esta “catalogação” estrutural, foi extremamente redutora. É hoje claro, que o mesmo sistema pode absorver diferentes dinâmicas, diferentes princípios, e até mesmo diferentes culturas e formas de compreender o jogo.

Vamos mais longe e levantamos um problema para nós óbvio quando se caracteriza de forma geral uma equipa atribuindo-lhe um determinado sistema. Já excluindo os momentos de transição e os naturais posicionamentos colectivos mais caóticos que deles resultam, questionamos qual foi o momento de jogo, se a organização ofensiva ou organização defensiva da equipa que esteve na base dessa “fotografia” da estrutura posicional do seu jogo. Isto porque nesta fase da evolução táctica do jogo, todas as equipas apresentam determinados posicionamentos no momento defensivo e outros bem diferentes no momento ofensivo. Dando dois exemplos simples, é comum vermos uma equipa atacar numa estrutura de 1:4:3:3 e defender numa estrutura de 1:4:5:1, e aqui sem caracterizar eventuais posicionamentos altos dos defesas laterais no momento ofensivo. Por outro lado, é também cada vez mais comum vermos equipas em organização defensiva num estrutura de 4 jogadores na sua última linha, e que no momento ofensivo se transforma, com a subida dos defesas-laterais e o recuo de um médio-centro, numa estrutura de 3 jogadores. E como a caracterizamos? 1:4:X:X ou 1:3:X:X? Tomando como referência apenas um desses momentos, não será isso redutor? Não serão os dois momentos igualmente importantes na organização geral e qualidade de jogo da equipa? No pontapé de saída? Mas esse até é um momento estático em que nem se está a jogar, e por outro lado cada vez surgem mais equipas a tentar fazer dele uma oportunidade para utilizarem um esquema táctico, ou seja, uma situação mais ou menos fechada trabalhada previamente, em que os jogadores assumem um posicionamento muito específico.

Por outro lado, se analisarmos os diferentes comportamentos das equipas dentro de cada um desses grandes momentos do jogo, também percebemos que as equipas a esse nível de organização, variam muito de estrutura. Por exemplo, uma equipa pode pressionar alto em determinada estrutura, mas apresenta outra quando se encontra a defender junto à sua área.

Vários autores, nomeadamente treinadores portugueses, como são exemplos José Mourinho, Jorge Jesus, Vítor Pereira e André Villas-Boas, atribuem importância ao sistema enquanto ponto de partida, ou seja, como mais um princípio. São porém unânimes em entender como decisiva a dinâmica criada a partir do mesmo. O nosso ponto é que diferentes momentos e sub-momentos do jogo, logo, diferentes princípios, diferentes dinâmicas e consequentemente diferentes… sistemas. Portanto, é redutor e irrelevante identificar determinada equipa através de um sistema.

No exemplo, provavelmente mais contundente, em 1974, um traço que marcou a Holanda de Rinus Michels e Johan Cruyff, foi a permanente troca de funções e também variabilidade posicional dos seus jogadores, nomeadamente no momento ofensivo do jogo. Como resultado, se hoje fizermos uma pesquisa ao sistema táctico da selecção holandesa presente nesse campeonato do mundo, surgem-nos diferentes estruturas com os mesmos jogadores.

Desta forma, sentimos, para a evolução teórica do jogo, e uma vez mais indo ao encontro da sua natureza complexa, ser importante evoluir para outra caracterização das equipas, pois a actual forma, para além de redutora, é consequentemente um problema para os treinadores, analistas, e naturalmente para os jogadores.