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“O jogador português gosta de ter clareza táctica, gosta de ter informação táctica.”

“A geração que está, e quando digo geração estou a pensar nos que têm 17 e 39 anos, é formada por jogadores com cultura tática tão grande que quando falam é uau! É incrível. Têm uma linguagem, conhecimento e uma mentalidade completamente diferente. Tem a ver com isso: cresces com uma cultura, com uma paixão pelo jogo tão grande que este tem de ser o resultado. E isso tem de ser incentivado.”

(Vítor Matos, 2024)

Roberto Martínez toca nas duas principais qualidades que faltavam ao “jogador português” para darmos o salto competitivo colectivo e nos aproximarmos dos troféus. A paixão pelo jogo não é uma delas porque essa, desde que há memória do jogo em Portugal, sempre por cá existiu.

A transposição da competitividade que manifestávamos entre nós, não só noutros contextos culturais, mas também no jogo da “rua” para a competição formal e principalmente, internacional, fez crescer o jogador português para o patamar dos melhores. Dessa forma, hoje, não é surpresa para nós termos portugueses nos melhores clubes e equipas do mundo e que a nossa selecção seja reconhecida como uma das melhores.

Ainda em plenos anos 80’s e início dos 90’s o nosso Futebol vivia um clima de desconfiança no seu potencial, de conformismo com a nossa pequenez geográfica e populacional e de nos posicionarmos num segundo plano internacional no âmbito do jogo. Na realidade, não só do jogo, mas aqui o nosso foco vai para o Futebol. Vitórias sobre as “poderosas” Alemanha e Inglaterra, por exemplo, eram surpreendentes e celebradas como feitos dificilmente igualáveis. Hoje, como o nosso seleccionador e jogadores nos transmitem, são exigência. Dos próprios. A mudança cultural foi então enorme.

Um dos grandes, se não o principal momento desta mudança, foi o trabalho de Carlos Queiroz e Nelo Vingada com as selecções jovens no final da década de 80. De imediato foram colhidos frutos competitivos em campeonatos jovens, mas perante o fulcro do Futebol de Formação, não seriam esses os mais importantes. Passados alguns anos, essas gerações, na equipa principal portuguesa, mas também em vários grandes clubes por toda a Europa alcançaram um sucesso continuado. Esse sucesso influenciou e contagiou quem veio a seguir.

Mas a mentalidade não cresceu no vazio. Para além da criação de grupos coesos e fortes, Queiroz e Vingada, estimularam qualidades e passaram, de forma intensiva, ideias e conhecimento sobre o jogo. Além disso produziram conhecimento para terceiros, que ainda hoje se revela actual. A partir daí, clubes, universidades, jogadores e apaixonados pelo jogo na comunicação social e mais tarde na internet, contribuíram para a revolução a que assistimos e da qual hoje colhemos frutos. Como consequência cresceu a confiança nesse género de processo. Federação e clubes investiram, organizaram-se e proporcionaram contextos de qualidade aos jovens jogadores. Ainda que na maioria dos clubes o processo esteja a ser errático, lento e duro.

O jogador português passou, não só de apaixonado por esse conhecimento, como convicto da sua importância na obtenção de sucesso. A esse conhecimento se tem chamado táctica. Porém, ela não se restringe ao conhecimento teórico, a ideias, ou se reduz ao sistema ou mesmo princípios de jogo. A dimensão táctica que nos elevou ao actual patamar, como defende o professor Vítor Frade, não é apenas uma dimensão. É muito mais do que isso. É uma supra-dimensão. O que significa que engloba todo o comportamento do jogador e da equipa. Comportamento que emerge da interação de qualidades físico-motoras, recursos técnicos, conhecimento do jogo, aptidão emocional e / ou mentalidade. O que isto significa, é que o conhecimento do jogo entre outras qualidades, potenciou o sucesso e consequentemente fez crescer a confiança. E de forma geral, a mentalidade. E desse modo, tal sucesso provocou mais procura por conhecimento. Tal como Roberto Martínez aponta. 

Hoje, o apetite do jogador português por informação não é uma questão de moda. É, junto das outras qualidades, um reconhecimento do caminho que nos levou ao sucesso que actualmente vivemos. É esse todo, a táctica, enquanto supra-dimensão, ou por palavras mais simples, o… “jogar” de… sucesso que jogadores e treinadores perseguem, que faz com que um país tão pequeno como também defendeu o nosso seleccionador na mesma entrevista, se torne incrível e único no mundo do ponto de vista da produção de talento para este jogo. Essa vantagem não é portanto genética, é… cultural!

“O indivíduo todo, inteiro

emerge da cultura táctica

que sustenta o bom jogo, primeiro

no jogar o jogo como prática!”

(Vítor Frade, 2014)

O talento, a qualidade e a relação da “rua” no desenvolvimento de ambos. E ainda o potencial.

“Que saudades… (de Jackson Martínez e de James Rodríguez). Com os jogadores que fui tendo depois… percebi que não sou Deus…” 

(Vítor Pereira, 2017)

Os treinadores de Futsal, Nuno Silva e Cláudio Moreira, vão ao encontro de uma ideia que temos vindo a desenvolver. O que é o talento, o que é a qualidade individual e a relação da tão falada “rua” no desenvolvimento de ambos.

Apesar de muito referidos, quer por quem joga e treina, quer em bibliografia e por quem pensa o processo, a verdade é que não estão claros. Nem o que realmente significam, nem a sua abrangência. Nós temos uma proposta aparentemente idêntica à visão destes dois treinadores.

“Como família, éramos naturalmente rijos. Os meus pais eram rijos e o ambiente em que crescemos era rijo. Caíamos e voltamos a levantar-nos. E damos sempre o nosso melhor e tentamos ganhar. Detestávamos perder.”

irmão de Michael Jordan, Ronnie Jordan em (The Last Dance, 2020)

Antes, há ainda outra ideia que é a propensão genética. Ou seja, a influência que os genes herdados terão no talento. Uma noção clássica que ditou durante séculos vários papéis sociais e que também surgiu no desporto. Porém, vários autores como por exemplo Daniel Coyle, Anders Ericsson e Robert Pool têm-se dedicado ao tema e têm descrito um papel residual da genética no desenvolvimento do talento. Mais do que uma propensão genética, referem a importância de uma propensão social ou contextual. Seja qual for a sua influência, é o talento que apontamos como o primeiro patamar para obtenção de um elevado nível qualitativo no jogo de futebol.

“O jogador de futebol ‘faz-se’. Levei esta ideia para o Barcelona e foi uma confusão total. Eles acreditavam que o jogador de futebol nasce feito. Quase toda a gente no futebol ainda pensa assim hoje em dia. Veja, perguntei a jogadores de futebol: quantas horas na tua infância, todos os dias, dedicavas ao futebol? As respostas dos mais velhos variavam entre 6 e 8 e os atuais nunca menos de 4. E Maradona e Messi deram-me a mesma resposta: ‘Quantas horas? Todas!!’. Acreditar que o jogador de futebol nasce ensinado é um grande erro, nem mesmo acontece com os grandes craques. Cruyff é um bom exemplo; os que o viram jogar com aquela espantosa facilidade para tornar fácil o mais difícil, pensavam que ele tinha nascido jogador. Não acreditem, Johan teve a sorte de nascer junto ao campo do Ajax e de a sua mãe ser funcionária do clube. Se tivesse nascido num lar eminentemente musical, com pais profissionais e apaixonados por esta arte, Cruyff, dada a sua grande inteligência natural, teria sido um grande músico, mas não jogador de futebol.”

(Laureano Ruiz, 2014)

Em cima da propensão genética e contextual constrói-se então o talento. Para nós este surge principalmente em regime autónomo, em auto-descoberta, auto-aprendizagem e prática intensiva deliberada. Portanto, na rua, em casa, na escola, etc., mas quase sempre em auto-iniciativa e através de um desenvolvimento não assistido e liderado. É no fundo o estado mais puro do jogador de futebol, porque ainda não foi aculturado por nenhum treinador / clube e nenhuma Ideia específica de jogo ou no mínimo cultura de clube. É certo que durante o processo autónomo, naturalmente a criança e o adolescente também não estão imunes a influências culturais, aliás, desde logo estas levaram-no a jogar futebol… no entanto, nesta fase estas serão sempre uma escolha sua e não imposição.

“Ter talento não é suficiente. Porque o Futebol é um desporto de equipa.” 

(Leonardo Jardim, 2017)

Se entretanto a criança ou adolescente entrarem num clube e na prática federada, então, de forma mais ou menos intensiva de acordo com o escalão, ideias do treinador para o Futebol de Formação e eventualmente a Coordenação Técnica do clube, haverá a tal aculturação mais profunda e dirigida por terceiros, conhecimento do jogo transmitido, valores, etc.  Bons e maus. Tudo isso numa procura da optimização da eficiência e eficácia do jogador no jogo num contexto colectivo, portanto, num objectivo de alcançar qualidade. Porém, se nos aludimos ao Futebol de Formação, é seguro referir que durante este processo praticamente todas as crianças e adolescentes, paralelamente, também continuam a praticar o jogo no contexto informal, continuando assim a fazer crescer o seu talento.

“Entre as muitas histórias contadas por Vilà, sobre Messi, Xavi, Iniesta e outros tantos, apareceu uma particularmente interessante sobre Puyol. O defesa, que só chegou aos 15 anos ao Barcelona, não tinha, no entender de quem mandava, qualidades técnicas suficientes para ficar no clube. Mas aquele rapaz demonstrou tanta vontade, tanta determinação, tanto querer… que, no final, acabou por ficar. Foi aprendendo, foi melhorando, foi ficando. E, mesmo já na equipa A do Barcelona, continuava a treinar-se com Vilà, por fora, porque queria disfarçar os defeitos que tinha e, no fundo, ser melhor. E, até ao final da carreira, foi sempre melhorando. Jogadores ou treinadores, estamos sempre a aprender – e isso vai muito além dos resultados. Basta querer.”

(Mariana Cabral, 2019)

Regressando ao contexto do clube, o desenvolvimento da qualidade individual deveria ser objectivo prioritário em idades mais baixas do Futebol de Formação, e a qualidade colectiva de forma progressiva. Nomeadamente ao nível da complexidade e exigência das imposições comportamentais aos jogadores no seio de uma equipa. E finalmente já perto do escalão de seniores, um desenvolvimento, optimização e exigência sobre o seu rendimento. Individual e colectivo. Mas importa referir que qualidade individual e qualidade colectiva são interdependentes, e portanto que uma cresce com a outra, sendo o inverso também constatável. Tantos são os casos de jogadores que apresentam um alto rendimento em determinado contexto e depois noutro cai abismalmente.

“Aqui no City acho que ainda fiz um upgrade. Há uma preocupação enorme pelo detalhe e em perceber como esta equipa joga. Sinto que cresci imenso.”

(Bernardo Silva, 2019)

E aqui chegamos ao potencial. O potencial é a qualidade que perspectivamos, quer individual, quer colectivamente, e que ainda não produz, ou deixou de produzir rendimento. Deste modo, talento obviamente também perspectiva potencial. Mas num estado muito cru. A construção de uma qualidade em cima do talento, fará crescer esse potencial e aproximará a concretização desse talento em rendimento. E mais ainda em equipa. Porque num jogo colectivo ninguém verdadeiramente joga sozinho.

“Aparente paradoxo então

a auto-eco-hetero afirmação

no crescer colectivo

exalta o da individualidade

mas sem equipa consigo

nenhum jogador é bom,

e o inverso pode também

ser verdade

e assim qualidade tem.”

(Vítor Frade, 2014)

“Faltam 30 metros ao futebol português”. De organização e confiança.

“O povo português por vezes se reduz… Reduz a capacidade que realmente tem. Nós dentro da área do futebol, temos muita capacidade. Temos capacidade de improvisar, temos conhecimento, somos competitivos e temos capacidade para liderar. Portugal tem muita qualidade e, muitas vezes, somos nós portugueses quem faz de nós próprios mais pequenos. Nós, treinadores portugueses, jogadores e não só, somos muito melhores do que, em geral, pensamos.“

(Paulo Sousa)

O tema não é novo. Importa declarar que o pensamento não se inscreve em mais uma cruzada em nome de um nacionalismo bacoco. Não aceitar que os seres humanos, independentemente da sua localização geográfica, credos, morfologia, etc., etc., têm mais em comum do que diferenças, representa um passo atrás na nossa evolução. Porém, tal como nas outras espécies, existirão sempre diferenças culturais dentro das mesmas, que promovem qualidades e problemas a um determinado grupo de indivíduos.

O Futebol não é excepção. O autor (José Neto, 2012) declara precisamente isso ao defender que “cada estilo de jogo é produto das idiossincrasias em que se envolveu. A preservação dos traços identitários de cada local são fundamentais para que o Futebol mantenha as suas características genuínas, e, definidoras dos seus “futebóis”. (…) Podemos, por isso, caracterizar por exemplo, as diferentes formas de jogar como decorrentes de um determinado contexto social, cultural, dum tipo de sociedade que lhe dá suporte. (…) a dinâmica imprimida pelas formas de jogar não podem ser separadas do viver das sociedades que lhe estão associadas”. Também José Mourinho sustenta que “Futebol é Futebol. Mas as diferenças culturais são importantes. Não há dois futebóis iguais. O talento na América do Sul nasce todos os dias, mas a organização Táctica e a intensidade do jogo são muito mais altas na Europa. Pelo clima, pela personalidade, pela cultura, pelos árbitros. Há tantos factores que condicionam e fazem o Futebol diferente em todo o mundo”. Falamos então da importantíssima diversidade. Voltando ao plano geral, uma qualidade indiscutível para a sobrevivência das espécies.

Por outro lado, se vamos dando destaque ao tema de forma contínua é porque sentimos que o mesmo é realmente importante, e que consequentemente se torna fundamental convencer aqueles que ainda não o estão. Nomeadamente quem decide e investe. Até porque como diz Paulo Sousa, um dos traços culturais do povo português é a fragilidade da nossa auto-confiança, a facilidade com que nos reduzimos e a forma como facilmente nos deslumbramos com caminhos para o sucesso aparentemente mais fáceis. Aparentemente.

Constituição das equipas em jogos com Benfica, FC Porto, Sporting e Braga hà cerca de 10, 15 anos atrás.

Noutra modalidade, o Rugby, mas trazendo-nos à memória  episódios da Selecção Nacional de Futebol durante o século passado, Sérgio Figueiredo citado por (Carlos Filipe Mendonça, 2006), defende que “(…) os portugueses não sabem ganhar. Não sabem ganhar, porque não acreditam e cedo viram as costas à luta. Ou seja, antes de Tomaz Morais tomar conta da equipa nacional, o nosso rugby perdia quase sempre por uma questão de temperamento. É verdade que os portugueses são uns derrotistas natos. Uns pessimistas compulsivos; e convocam esse pessimismo tanto para as questões mais essenciais, como para as circunstâncias mais simples do dia-a-dia”. O próprio Tomaz Morais, citado pelo mesmo autor declara que Portugal “não cresce por culpa do individualismo, da inveja e do pensamento negativo de quem nos lidera”. Isabel Vaz, em (Luís Lourenço, 2010) reforça, descrevendo que “não gostamos de vencedores, fomos educados a venerar a mediania e a nivelar por baixo como sinal de democracia”.

Apesar de alguns feitos pontuais, no Futebol, o resultado desta forma de pensar e liderar levou-nos, ao nível das selecções e dos clubes, ao insucesso colectivo durante décadas. Mas do ponto de vista individual, fomos sempre produzindo talento, quer por “geração espontânea” quer por fruto de investimento e ocasionais trabalhos de qualidade. O que reforça a ideia de que o talento… esteve sempre presente. Deste modo, talvez estejamos mesmo perante o tema mais importante do nosso futebol e porque não, da nossa sociedade em geral. A nossa incrível capacidade de gerar talento e a forma como acreditamos nele, o potenciamos e rentabilizamos.

Mas o que fundamenta esse talento? A resposta irá sempre ser discutível, relativa e até subjectiva. Porém, é interessante a ideia de Agostinho da Silva, de que “a principal matéria-prima do povo português torna-se aquilo que tem entre as orelhas”. Tal sustentará não só o reconhecimento actual do jogador português como um “produto” de qualidade, como também do próprio treinador português e numa perspetiva mais lata, dos muitos portugueses que proliferam no topo das mais diversas áreas, quer em Portugal, quer no estrangeiro.

Assim, o talento como algo construído pela interacção da cultura com as vivências, “armazenado” na relação corpo-mente, é uma ideia sustentada pelo estudo e trabalho de diversos autores como Daniel Coyle, Matthew Syed, Geoffrey Colvin, Anders Ericsson, Robert Pool, entre tantos outros. Durante muitos anos defendeu-se uma “apetência genética” para o Futebol. Contudo, o jogo de qualidade, ao qual hoje é-lhe inclusive reconhecida a fundamental importância do cérebro, não pré-existe ao homem. O jogo é uma construção cultural humana, assim, nem na mais transgressora ideia epigenética o Futebol estará inscrito nos nossos genes. O próprio (Leon Teodorescu, 1984), referência fundamental no desenvolvimento do pensamento sobre os Jogos Desportivos Colectivos, defendeu que “o desporto é um fenómeno social. O desporto é uma criação do homem, que apareceu e se desenvolveu simultaneamente com a civilização. O conhecimento e a prática do desporto constituem actos de cultura”. Noutro exemplo, os 580 milhões de norte-americanos têm produzido pouco talento no Futebol em comparação com outras regiões e países mais pequenos. Será que têm falta de genética para o Futebol? Geneticamente, divergiram assim tanto, em tão poucos séculos dos europeus que colonizaram a região? Ao invés, na América do Sul, desenvolveu-se uma carga genética incrivelmente superior? Ou simplesmente… não será tudo resultado de predisposição cultural?

Por outro lado, à luz do tradicional dualismo corpo-mente, o qual temos vindo a rebater ao longo do tempo, isolando então a inteligência como factor decisivo na produção de talento, o psicólogo (Eduardo Sá, 2016) explica que “não há crianças “burras”! Eu sei que há termos ásperos, como este, para todos nós. Mas é importante que sejamos claros: tirando raríssimas exceções, de crianças com quadros genéticos ou neurológicos muito graves (e que são, realmente, raríssimas!) não há crianças que nasçam “burras” como, desde sempre, se foi imaginando ou formulando. Recordo que algumas das crianças consideradas assim, que viveram a escola de forma penosa, com resultados catastróficos e com experiências humanas humilhantes, se transformaram em grandes empreendedores, grandes empresários e pessoas cuja singularidade trouxe, realmente, mais-valias ao mundo”.

 

 

Assim, de acordo com o espanhol (Laureano Ruiz, 2014) “o jogador de futebol “faz-se”. Levei essa ideia para o Barça e que confusão que se gerou. Eles acreditavam que o jogador de futebol nasce. Quase todas as pessoas do futebol ainda hoje pensam o mesmo. Olha, eu já perguntei aos jogadores de futebol: quantas horas na sua infância, por dia, você se dedicou ao futebol? As respostas dos antigos variavam de 6 a 8 e os atuais nunca menos de 4. E Maradona e Messi me deram a mesma resposta: “Quantas horas? Tudo!!””.

Segundo (Reuters, 2020), “o caso de amor de Maradona com o futebol ficou claro desde o início. Presenteado com a primeira bola de futebol quando criança, ele dormiu com ela debaixo do braço”. O testemunho do próprio Diego confirma o relato. O argentino, citado por (Leandro Stein, 2020), descreve que “tudo o que eu fazia, cada passo que dava, tinha a ver com isso, com a bola. Se Tota me mandava buscar algo, eu levava qualquer coisa que se parecesse com uma bola para ir jogando com o pé: podia ser uma laranja, bolinhas de papel ou trapos. Assim subia as escadas da ponte, pulando em uma perna e chutando o que fosse com a canhota. Assim ia até ao colégio. As pessoas cruzavam comigo e me olhavam, não entendiam nada. Os que me conheciam já não se surpreendiam”. Também Lionel Messi, de acordo com (Wikipédia, 2022), “desde criança demonstrava grande apego à bola, a ponto de negar-se a ir às compras com a família quando não lhe deixavam levar alguma bola. (…) Quando completou sete anos, ingressou então nas divisões menores do clube do coração, o Newell’s Old Boys. Ainda assim, não se contentava em jogar na Lepra, jogando regularmente futebol na rua da casa ao lado dos irmãos mais velhos Matías e Rodrigo Messi e dos primos maternos Emanuel e Maxi Biancucchi Lionel àquela altura conseguia jogar contra adversários de dezoito anos”.

“Jogávamos sempre à volta da minha casa, em “Las Siete Canchitas”. Era um descampado enorme com vários campos. Uns tinham balizas e outros não. “Las Siete Canchitas” era como um desses centros desportivos com relva sintética e tudo! Não tinha relva nem sintéticos, mas era para nós uma maravilha. Era de terra, de terra bem pura. Quando começávamos a correr, levantava-se tanto pó que parecia que estávamos a jogar em Wembley e com neblina.”

(Diego Maradona, 2001) citado por (Hélder Fonseca & Júlio Garganta, 2006)

Mais tarde, após ter-se apaixonado pela bola, de milhares de horas de relação com ela e de jogos com outras crianças nas “Siete Canchitas”, Maradona foi prestar provas ao Argentinos Juniors. O técnico responsável pela sua avaliação, Francis Cornejo citado por (Leandro Stein, 2020), recorda o momento explicando que “dizem que pelo menos uma vez na vida todos os homens assistem a um milagre, mas a maioria não se dá conta disso. Eu, sim. O meu aconteceu numa tarde de um sábado de março de 1969 sobre a grama molhada do Parque Saavedra quando um garoto baixinho, que me disse que tinha oito anos — e eu não botei fé — fez maravilhas com a bola. Coisas que eu nunca vi ninguém fazer. Tem uma que nunca vou esquecer porque fecho os olhos e continuo vendo como se fosse ontem. Ontem, eu disse? Não, ontem, não. É como se estivesse vendo agora mesmo. Quando a bola chega a um jogador vindo alta no ar, o que ele faz é baixá-la com o pé e depois a deixa cair no chão, então ele chuta ou passa. Isso é o que todos fazem. Mas aquele menino, não, aquele menino fez outra coisa; dominou-a com a canhota no ar e, sem a deixar tocar no chão e com o pé ainda no ar, voltou a pegá-la para dar um chapeuzinho num adversário e disparar rumo à baliza contrária”.

Diego Maradona e companheiros nos primeiros passos no Argentinos Juniors.

Novamente Laureano Ruiz, reforça que “acreditar que o futebolista nasce ensinado é um grande erro, não acontece nem com os grandes craques. Cruyff é um bom exemplo; quem o viu jogar com aquela facilidade assombrosa de facilitar as coisas mais difíceis, achava que ele nasceu jogador. Não acredite, Johan teve a sorte de nascer ao lado do campo do Ajax e a sua mãe era funcionária do clube”.

“A psicologia da aprendizagem ensina que o conhecimento, ou movimento, uma vez aprendido fica armazenado no neocórtex sob forma de engrama (impressão deixada nos centros nervosos pelos acontecimentos vivenciados, activa ou passivamente, pelo indivíduo), que consiste num determinado padrão de ligação entre os neurónios. O engrama, que é sempre utilizado, fica cada vez mais “nítido” e “forte”, ao passo que aquele que não é utilizado, enfraquece e pode até extinguir-se. Se um gesto desportivo for repetido com constância, o seu engrama ficará tão forte ao ponto de permitir a execução do gesto de forma reflexa, através de uma rápida comparação entre as reacções neuromusculares e o engrama. Este aspecto está ligado a mielinização das fibras nervosas e à velocidade de condução dos impulsos, e à caracterização dos tipos de movimentos.”

(Alcino Rodrigues, 2017)

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Deste modo, o talento para determinada área não pré-existe, no máximo existirá uma predisposição na qual se torna extremamente difícil distinguir a genética da influência cultural. Portanto, o talento é também uma construção. No fundo, podemos-nos aproximar de uma ideia de que resulta de muitas horas de prática deliberada de qualidade (pode e deve ser muitas vezes em regime de autonomia e auto-descoberta como o contexto que as brincadeiras individuais de relação com bola e os jogos e futebol de “rua” proporcionam), em cima de uma decisiva motivação intrínseca à qual se podem juntar outras, extrínsecas. Esse talento torna-se então uma apetência, digamos, em bruto, para determinada actividade. A partir daí pode ser esculpida e transformada em qualidade individual e principalmente coletiva no caso dos desportos colectivos, o que necessitará depois de treino “organizado” de qualidade e da figura do treinador, assim, de um conhecimento e experiência mais aprofundadas na área.

 

 

Então o que nos diferencia culturalmente do resto do mundo? O que possibilita que um país com muito menos população que a maioria, com baixos índices de prática desportiva, subsistentes problemas no sistema desportivo, pouco investimento, um sistema educativo caducado e problemas sociais, tenha subido ao patamar dos melhores? Um pensamento divergente, criatividade, capacidade de improvisação e momentos de coragem invulgares, alicerçados por um passado cultural de conquistas, aventuras, “descobertas”, muitas vezes através de meios e estratégias que inventámos porque não dispúnhamos do que outros possuíam. No Futebol em particular: uma enorme paixão pelo jogo e consequentemente muitas horas de prática, de estudo, de discussão, etc., etc.. Como disse Kobe Bryant, paixão tal, que se transforma muitas vezes em obsessão, com os consequentes potenciais perigos acoplados.

 

“É difícil de acreditar! Eusébio, Luís Figo, Cristiano Ronaldo e eu conquistámos prémios de topo e talvez Fernando Santos seja o próximo. Benfica e FC Porto venceram títulos europeus e Portugal conquistou o Europeu. Um pequeno País com vista para o Atlântico, é incrível! Talvez o segredo seja a nossa paixão.”

(José Mourinho, 2017)

Juntando revoluções metodológicas e de liderança idealizadas e postas em prática por cá, passados cerca de 10 a 15 anos do início do impacto das Academias de Benfica, FC Porto e mais recentemente do Braga, que se juntaram ao trabalho anterior desenvolvido pelo Sporting em Alcochete, a solidificação do papel importantíssimo das equipas B, a criação das equipas de Sub23 e o exemplo e desafio que Benfica, Sporting, Porto e Braga também trouxeram aos demais clubes, catapultou a produção de talento em Portugal a um nível nunca visto antes. No entanto, ainda subsistem problemas e desafios. Talvez o principal seja convencer muitos dirigentes que, mesmo assim, ainda não acreditam no talento do jogador português, ou, não têm paciência para esperar por algo que leva o seu tempo. Como disse Leonardo Da Vinci, existem “três tipos de pessoas: as que vêem, as que vêem quando lhes é mostrado, e as que não vêem”. Restará perceber se não vêem porque não conseguem mesmo, ou porque não querem…

Segundo (Wellington Moreira,2012) “o talento é mais facilmente identificado nas empresas que estão em franco crescimento. Aquelas que se encontram estagnadas ou que avançam a passos lentos não fornecem condições de desenvolvimento nem exigem padrões superiores de desempenho para seus colaboradores com elevado potencial. Resultado: além de nivelarem todos os membros da equipa para baixo, não conseguem atrair os melhores”. Assim, o autor conclui que “pesquisas apontam que grande parte dos talentosos brilha quando sua competência encontra o contexto adequado, isto é, suas conquistas são decorrentes de uma cultura organizacional apaixonante, que confere autonomia, estimula a criatividade das pessoas e ainda patrocina um bom clima de trabalho”. Hoje crescemos, principalmente no plano técnico, em organização, qualidade metodológica, qualidade relacional e pensamento colectivo. Isso trouxe sucessos colectivos e individuais, e esse sucesso trouxe exemplos inspiradores, “desbravou caminho” e fez com que as gerações seguintes acreditassem ser possível atingir esse nível, portanto, fez crescer a auto-confiança. E a partir daqui, em cima do que já produzíamos no passado, vamos tendo ciclos de retroalimentação, cada vez de maior sucesso.

Tanto que hoje vivemos sucessos regulares ao nível de todas as selecções, temos ainda uma incrível dificuldade de escolha dada a incrível abundância de jogadores para as mesmas, “vendemos” jogadores para o estrangeiro a valores tremendos (haverá alguma indústria em Portugal em patamar semelhante?) e somos reconhecidos e admirados pela nossa qualidade no jogo e no Futebol de Formação pelos melhores treinadores do mundo. Curiosamente, desenvolveu-se um sucesso paralelo no Futsal e Futebol de Praia…

 

 

Dando também como exemplo a Liga Inglesa pela sua reconhecida competitividade, qualidade e exigência na contratação de estrangeiros, no virar do século, época 2000/2001, José Domingues e Abel Xavier eram os únicos Portugueses a jogar na Premier League, posicionando-se no 40º desse ranking. É factual que esse número oscilou para mais nos anos antes e depois, mas sempre muito longe dos 23 jogadores actuais, que representam o 5º lugar do ranking, apenas atrás de Inglaterra, Brasil, França e Espanha, países de muito maior dimensão, prática desportiva e consequente capacidade de recrutamento.

 

Constituição das equipas no jogo Wolverhampton x Manchester City em Setembro de 2022.

Se há cerca de 10, 15 anos atrás tínhamos jogos entre Benfica, Sporting, Porto e Braga com 5 portugueses nos dois onzes iniciais das equipas, hoje temos um jogo da Premier League com o dobro dos portugueses.

 

“(Um futebol que tem Ronaldo, Figo, Ricardo Carvalho ou Rui Costa) é milagre, mas também fruto de alguma coisa. É o milagre da criatividade dos portugueses, da cultura dos portugueses. Hoje sei que há pouca rua, mas são os frutos do nosso futebol de rua, da aprendizagem espontânea, da aprendizagem sem o adulto a estragar. Sem essa cultura teremos muitos jogadores como a Noruega ou a Dinamarca, aqueles futebolistas de laboratório, com processos muitos lineares. Mas sem o futebol que nos apaixona, da imprevisibilidade. De fazer as coisas que os outros não são capazes de fazer.”

(Silveira Ramos, 2017)

Bernardo Silva

“Eu era Sub17 quando começou a era do Barcelona de Guardiola. Ver jogadores como Messi, Iniesta e Xavi dava-me mais força para continuar. Porque eu estava sem jogar pois era mais pequeno que os outros. Assim, ver a melhor equipa do mundo nesse momento e ver que estavam ali três dos melhores do mundo e eram quase mais pequenos que eu…”
(Bernardo Silva, 2019)

Saber sobre o saber jogar II

“Ser um atleta excepcional, ou até genial, é sem dúvida distinguir-se, pelos primores técnicos, pela inteligência táctica e pelo alto rendimento, em relação aos demais colegas de equipa, mas é também estar essencialmente em relação com todos eles. Fora desta dialéctica de distinção e integração, o atleta excepcional não se compreende. A autonomia do singular não constitui um dado absoluto, dado que assim se lançaria ao esquecimento a plurideterminação do real”.

(Manuel Sérgio, 1991) citado por (Neto, 2012)

https://www.facebook.com/SaberSobreOSaberTreinar/videos/408987793265145/

“(…) esta transformação só é possível graças à nossa neuroplasticidade, que é a capacidade que temos de reorganizar estruturas nervosas e mentais em resposta a estímulos e necessidades. É um fenómeno fisiológico que tem uma relação muito forte com a aprendizagem. Um exemplo clássico de neuroplasticidade está nos cegos: eles compensam a falta de visão desenvolvendo a audição, o olfato e o tato para níveis acima da média. (…) Ericsson explica que, para desenvolver expertise sobre algo, é preciso um investimento de tempo e prática para que nossos corpos e mentes desenvolvam processos cognitivos eficientes e rápidos, com base em redes de neurónios, músculos e esquemas mentais fortalecidos e aprimorados depois de um longo processo de trabalho. É preciso se submeter a uma determinada atividade por muito tempo, de forma regular e sistemática, para garantir que as estruturas fisiológicas e mentais que facilitam a prática nao se desfaçam. (…) 10 mil horas é uma eternidade. Significa que qualquer progresso visível só vai surgir depois de muito tempo de treino. É como se sentir eternamente na estaca zero depois de praticar uma escala de dó maior no piano por horas. A impressão que fica é que a primeira coisa a se treinar é a determinação e a motivação para não desistir durante uma prática tão longa”.

(Monteiro, 2012)

https://www.facebook.com/SaberSobreOSaberTreinar/videos/1643703102440141/

“Toda a diferença está na concepção de quem enaltece o supérfluo e não o essencial: o esforço só faz sentido quando se joga verdadeiramente; o músculo só conta se o cérebro estiver a funcionar; a velocidade só tem importância se quem a utiliza souber travar, tal como a coragem só serve de arma enquanto houver gente com medo.”

(Dias, 2002)