A “carne toda no assador”

A frase do genial Quinito, recentemente também usada por Carlos Carvalhal na Premier League, tornou-se uma das marcas do Futebol Português. Apesar de no sentido lato percebermos o seu contexto, se pensarmos na interpretação e conhecimento do jogo de cada um, no sentido restrito a mesma pode conhecer diferentes expressões. Muito provavelmente, a que mais se generalizou, foi a substituição, de jogadores de outras funções por “avançados”. Outra ideia, directamente associada a esta, é a mudança, na forma de jogar da equipa, de um jogo paciente, criterioso e curto, para um mais vertical, aleatório e directo. Sublinhamos a palavra aleatório, uma vez que um jogo mais vertical e directo, quando treinado, quando crença, e em determinados cenários, também pode ser bem sucedido. A questão aqui residirá… que ideias poderão ter maior probabilidade de sucesso perante o jogo que o futebol é, consequência daquilo que o ser humano também é, nomeadamente em “sociedade”.

Apesar de não encontrarmos notícias sobre razões, que não táctico-estratégicas, para a substituição de Emil Forsberg por Martin Olsson na selecção Sueca no jogo dos quartos de final do Campeonato do Mundo contra a Inglaterra, não conhecendo com exactidão o contexto e não possuindo a real justificação para a substituição, correremos sempre o risco, de errarmos logo à partida na interpretação da decisão. No entanto, para nós o interessante não é a análise desta decisão concreta, mas o que ela pode significar numa perspectiva mais ampla. Precisamente, essa ideia que se generalizou no jogo, que perante um resultado adverso e dificuldades nos sub-momentos ofensivos de Construção e Criação, trocar o tal critério, paciência e criatividade, por aleatoriedade, inquietação, pressa e um jogo desprovido de imaginação, seria a eterna principal solução nesse cenário. Mas mais do que aquilo que a substituição em causa significava, mais importante no fundo foi a forma como influenciou o jogar da Suécia, que defrontava um adversário que manifestava conforto na sua última linha durante o momento defensivo, quer pelo número de jogadores que na situação colocava, como pela significativa qualidade dos seus comportamentos.

Todas as acções ofensivas de Emil Forsberg no Suécia x Inglaterra do Campeonato do Mundo de 2018.

Todas as acções ofensivas de Martin Olsson no Suécia x Inglaterra do Campeonato do Mundo de 2018.

O número de perdas de bola de Olsson foi muito superior ao de Forsberg, ainda por cima tendo em conta que o último esteve mais tempo em jogo e envolvido em bastantes mais acções com bola. Mas se este pode não ser um dado relevante ao nível individual, uma vez que se torna fundamental compreender o contexto de cada acção e as suas relações com os companheiros e adversários nesses momentos. Um problema tradicional das análises quantitativas. Porém, a quantidade de perdas tem, habitualmente, reflexos mentais e fisiológicos negativos… no todo, que é o desempenho – a qualidade do jogo da equipa e consequentemente do jogador. Aqui nem se trata do bater de asas da borboleta, mas de acontecimentos mais significativos que perturbam os momentos seguintes do jogar da equipa.

Transportar a equipa para um maior caos… será eficaz e a resposta na maioria das situações? No fundo estaremos a trocar a racionalidade pela emocionalidade… a zona de conforto, o trabalho e o entrosamento… por potencial desconforto, improvisação e desorganização.

Porém… “a carne toda no assador”, à imagem da nossa perspectiva do conceito intensidade, pode não passar por fazer mais, de forma mais agressiva, mais directa, se isso significar… fazer pior tendo em conta o jogar da equipa. Deste modo, no contexto de uma cultura que privilegie o critério, “a carne toda no assador” poderá significar, por exemplo, garantir maior velocidade à circulação de bola, maior número de jogadores no interior do bloco adversário, combinações a menos toques e consequentemente mais rápidas, mais soluções de ruptura, decisões de último passe de maior risco de perda da bola e decisões de finalização em condições mais difíceis, excluindo destas as que se incluem nas más decisões. Do ponto de vista individual, poderá não significar a troca de um jogador de uma função por outro de outra, mas sim a aposta em jogadores de maior criatividade, de cariz mais desequilibrador, mas que em contrapartida também fazem crescer o risco de maior acumulação de perdas de bola. Foi, por exemplo, o caso da entrada de Ricardo Quaresma no jogo Portugal x Uruguai.

Se perguntássemos a Quinito o sentido que dava à sua expressão… Quinito o homem que se tivesse dinheiro comprava Pedro Barbosa para o ver a jogar no seu quintal e que se declarava “um amante da arte, da magia e beleza estética”, apostamos que responderia… “é colocar lá dentro os mais talentosos, ofensivos e criativos”.

“É de estética vazia

e o Futebol assim jaz…

Jogo directo nada cria

correm, correm, mas nenhum sabe o que faz.”

(Frade, 2014)

A “posse de bola” e os números

O autor desta opinião, e o seu nível de conhecimento, não são importantes para o caso. O conteúdo, como milhões de outros, também poderia não ser. Torna-se relevante, para nós, porque é um género de opinião que tende a generalizar-se, consoante… os resultados. Agora, no passado e com certeza, no futuro.

Se o que influencia este género de opinião são preferências por uma “estética” de jogo diferente, a crença em ideias menos pacientes e mais directas no momento ofensivo, ou até a hostilização das equipas que se tornam dominadoras no jogo e a consequente menor imprevisibilidade e emocionalidade que isso traz ao espectador, não podemos saber. O que sabemos é que defendê-la com premissas, para nós, tão irrelevantes como as apresentadas, são autênticos atestados de ignorância… no mínimo… táctica. É também por isto que é extremamente difícil construir uma equipa que assente a sua qualidade de jogo, não na posse bola… mas na qualidade da sua posse de bola. Pegando no exemplo do Barcelona de Guardiola, a autora (Gomes, 2012) sustenta que a sua qualidade na posse “só é possível quando realmente se gosta muito da bola e faz com que o valor da bola seja superior à precipitação do adepto, à pressa do adversário e à ânsia em fazer a bola andar pelos espaços em disputas”.

Estamos perante mais um bom exemplo, no qual, os números e a estatística na análise do jogo, continuam, como tantas outras áreas, impregnadas pelo pensamento mecânico e analítico. Impregnada, e não completamente irrelevante, porque a estatística, aliada ao conhecimento do jogo, nomeadamente na identificação de regularidades comportamentais, pode ter um papel útil ao treinador, ajudando-o no construção do jogo que idealiza para a equipa. Por exemplo, num artigo anterior, defendemos que a perda de bola será um dado estatístico no jogo, muito interessante.

Não é difícil entender que uma média elevada de posse de bola não é sinal de controlo do jogo, portanto, de qualidade de jogo. O controlo do jogo pode ser obtido de diferentes formas, em função de diferentes ideias, crenças e consequentemente, formas de jogar. Recordamos as equipas italianas, na década de 90, que naquele momento da evolução do jogo, o controlavam os jogos de forma exímia pela sua Organização Defensiva e Transição Ofensiva, e emocionalmente sentiam-se extremamente confortáveis nessas ideias. Portanto, claramente abdicando de possuírem a bola na maior parte do tempo de jogo. Porém, hoje, ter qualidade no momento ofensivo, tornou-se impreterível. Assim, possuir a bola, mas fora do bloco adversário, portanto, estar a maior parte do tempo na Fase I do momento ofensivo, chegando poucas vezes à Fase II e praticamente nunca à Fase III com certeza que não ameaçará o adversário, aumentando-lhe o conforto e a confiança. Uma excepção, poderá ser fazê-lo, perante uma equipa que, precisamente e, devemos dizer, perigosamente, as suas ideias passam apenas pelo momento ofensivo do jogo e assim se desorganiza quando não a tem. No resto dos casos, ter mais posse de bola não significa, por si só, ser-se melhor no jogo. É um dos passos nesse propósito, o segundo é saber… o que fazer com ela. Johan Cruyff, citado por (Amieiro, 2009), explica que “ter a bola não significa tê-la e pronto. Há que saber o que fazer com ela. Quando eu digo que enquanto nós temos a bola o adversário não a tem e, portanto, não pode marcar, o que quero dizer é que nós mandamos e temos a iniciativa do jogo. E como tenho a bola, eles têm que a tentar roubar e, com isso, consigo criar espaço”. Também para o treinador português (Luís Castro, 2017), “a posse de bola não é um objectivo, é uma consequência… do meu jogo”.

Portanto, circular a bola pela primeira linha, mesmo que já no meio-campo adversário, sem ideias, mobilidade, mudanças de velocidade, agressividade e criatividade, é totalmente diferente do que tê-la, com essas qualidades todas, e conseguir ainda penetrar diversas vezes no interior do bloco adversário e / ou ameaçando também, com critério e regularidade, a sua profundidade. Este segundo cenário, consequentemente, levará a equipa a poder criar situações de finalização, não permitindo que a equipa adversária esteja tranquila, confiante, portanto, emocionalmente estável no jogo.

Todavia, num segundo pensamento sobre os dados apresentados, seria para nós muito mais interessante perceber quem é que treinava, num dos maiores clubes desse país, os jogadores mais influentes no jogo da Espanha, campeã do mundo em 2010, e da Alemanha, campeã do mundo em 2014. E perceber, depois disso, o declínio do seu jogo. Por outro lado, podemos também tentar compreender a forma como Pep Guardiola está a influenciar a cultura inglesa. Depois, se pensarmos ainda no papel decisivo que o trabalho de José Mourinho no F. C. do Porto teve, na qualidade de jogo e no rendimento da selecção Portuguesa no Europeu de 2004, e noutros exemplos similares, também podemos questionar que margem de intervenção e que papel terá um seleccionador / treinador nacional.

“Por muito que nos vendam estatísticas que queiram quantificar performances individuais, o jogo, o bom jogo, está completamente longe de poder ser interpretado ou quantificado por números que queiram trazer avaliações qualitativas. Porque não se pode quantificar a qualidade do que mais importa! As decisões!”

Pedro Bouças, 2017

“Odeio o “tiki-taka”. A posse de bola é apenas um método para organizar a equipa e desmontar o adversário…”

Pep Guardiola, 2014

“De Guardiola
p’ro Barcelona e selecção espanhola
do Bayern à selecção d’Alemanha,
e Guardiola sempre ganha
continuando a revolucionar,
o jogar…
Quem gosta de jogar à bola
Quem gosta de ir ver jogar,
Só pode reconhecer em Guardiola
O melhor p’ra tudo isto melhorar.”
(Frade, 2014)

O segundo dado estatístico mais relevante do jogo de Futebol

“O privilegiar o jogo apoiado permite à Espanha não ter que andar sistematicamente em transições por perda de bola e quando isso acontece, encontram-se perto, o que lhes permite fazer uma aproximação (pressão) mais rápida.”

(Marisa Gomes, 2010)

Num artigo publicado recentemente, referia-se que jogar bem é bastante mais que “ter momentos de brilhantismo e criatividade”. Segundo o autor “jogar bem tem tudo a ver com a percentagem de acerto das acções que se realizam. Fazer três golos e perder noventa bolas na mesma partida, não é jogar bem”. Não podemos estar mais de acordo.

O pensamento tradicional e a perspectiva do jogo enquanto espectáculo, empurra-nos a todos para as acções que envolvem a bola, nomeadamente para o centro do jogo, e aí, em particular para as acções, que como o autor referiu, “tenham impacto no resultado”, ou então, que promovam para o espectador, a espectacularidade do jogo, o que é sempre relativo. São muitas vezes esquecidas tantas outras acções, dento e fora do centro do jogo, que embora pareçam mais simples, são cruciais para a estabilidade do jogo de uma equipa. Deste modo são desvalorizadas perdas de bola resultantes de más decisões se o jogador em causa entretanto teve um rasgo de habilidade, criatividade ou marcou um golo. Como o autor sublinhou, não que estas acções não sejam importantes no jogo, mas essencialmente porque as perdas de bola também o são e a maioria dos espectadores, muitos jogadores e até treinadores, não compreendem como as mesmas afectam o jogo de uma equipa.

Pensando o jogo de forma complexa, ou seja, procurando as relações entre os seus acontecimentos, constatamos que a acumulação de perdas de bola, pela equipa, ou por um jogador em particular, aumentam o número de momentos de transição, consequentemente, os momentos de desorganização posicional, a necessidade de deslocamentos e de velocidade na reorganização posicional. Consequência de tudo isto, cresce o desgaste, na sua relação físico-emocional, aumenta a dificuldade da decisão e da execução. O jogo torna-se, portanto, mais difícil. Reforçando, perante jogos com estas características, normalmente assiste-se à acumulação de mais perdas de bola nos próprios momentos de transição e a situações de descontrolo emocional que levam os jogadores a comportamentos desviantes em relação ao próprio jogo.

Se, por outro lado, pensarmos na equipa que perde poucas vezes a bola, podemos extrair daí várias consequências no seu jogo. A equipa permanece mais junta, joga em menos espaço, potencialmente desgastar-se-á menos, mantém-se mais junta nos momentos de perda, empurrará o adversário para junto da sua baliza, potencialmente retira confiança ao mesmo e emocionalmente exercerá um papel dominante no jogo. Neste contexto, (Bouças, 2011) defende que “para qualquer equipa que se pretenda dominadora, jogar com os defesas tão próximos da linha do meio campo, é um risco claramente compensatório, se os restantes jogadores se mantiverem concentrados e capazes de impedir que o adversário tenha demasiado tempo para decidir e executar. Jogar tão alto, retira imensa capacidade para poder ser clarividente ao adversário. Ninguém, particularmente quando a qualidade não abunda, arrisca em zonas demasiado recuadas. Não raras vezes, após a perda de bola, se torna a recuperar rapidamente a sua posse, somente porque o adversário se vê obrigado a jogar longo e sem nexo, por forma a não arriscar perdas em zonas tão recuadas do campo. E esta é indubitavelmente a fórmula correcta para subjugar os adversários. Mesmo em dias menos inspirados, estar sempre tão próximo da meta, poderá revelar-se determinante”. Porém, para garantir este cenário, é fundamental não perder a bola até garantir a invasão do meio-campo adversário. E finalmente, o mais importante. A equipa que perde poucas vezes a bola, obviamente terá mais tempo a bola e deste modo estará mais próxima de cumprir o objectivo máximo do jogo e de não sofrer golos.

É certo que existem equipas fortes nos momentos de transição. Porque são constituídas por jogadores com essas características e / ou, porque treinam o seu jogo nesse sentido. Contudo, se as observarmos a longo prazo, percebemos que são potencialmente fortes em jogos em que não são impelidas a ter iniciativa no momento ofensivo, conseguindo, por vezes, desempenhos interessantes em competições de eliminação. Porém em competições de muitas jornadas, onde a regularidade é fundamental e onde por vezes defrontam adversários com mentalidade de jogo similar, apresentam normalmente dificuldades em obter classificações elevadas. Nos momentos de transição ofensiva, uma equipa pode perder poucas vezes a bola? Pode se nesses momentos a situação terminar em golo ou remate falhado para fora do campo e consequentemente trouxer uma situação de bola parada. O que, naturalmente, é extremamente difícil de acontecer. Caso contrário a bola passa para o adversário e a equipa encontra-se dispersa pelo campo, tendo que recuperar o seu posicionamento defensivo no mínimo tempo possível.

É comumente aceite a negatividade da perda de bola, mas paralelamente sentimos que à mesma não é dada a importância que na realidade tem, pela forma como afecta todo o jogo da equipa e a relação com o adversário. É constantemente desvalorizada em favor de outros comportamentos. Sendo a estatística hoje muito debatida, um dado geral, que depois carecerá de um contexto em relação à forma de jogar da equipa e provavelmente à função ou espaço onde se encontra o jogador que perde a bola, sentimos que a perda de bola, poderá talvez ser, a seguir aos golos marcados e sofridos… o dado estatístico mais importante do jogo.

“Temporizar é muito importante. Para mim é fundamental. Decidir bem. Posso dar um exemplo: muitas vezes nós falamos no designado “contra-ataque”, para mim, para transitar bem para o ataque e rápido, é preciso fazê-lo com boas decisões, porque na maior parte das vezes, o transitar rápido com perda de bola no primeiro ou no segundo passe, tem a consequência de apanhar a equipa a abrir para atacar, e levarmos com golo logo a seguir”.

(Vítor Pereira, 2014)

“Sempre que joga, tem estado em alto nível.(…) Ficará muito tempo. Enquanto aqui estiver, ele não sai. Ficará comigo. (…) Os bons jogadores adaptam-se em qualquer lado e muito rapidamente. Ele tem golo e assistência. E não perde a bola, o que é muito importante para mim.”

(Guardiola, 2017 & 2018) sobre Bernardo Silva

O lendário pontapé de bicicleta e o lendário… Cristiano Ronaldo II

Dois dias após o nosso artigo sobre o golo histórico de Cristiano Ronaldo, o genial Ricardo Araújo Pereira partilhou a mesma opinião e sentimento.

“(…) o nome foi a única vantagem com que Cristiano Ronaldo nasceu. É um nome que indica ao seu proprietário a carreira que deve seguir. Um nome psicotécnico: um arquitecto Cristiano Ronaldo sabe que nunca vencerá o Pritzker, e um engenheiro Cristiano Ronaldo nunca será quadro de topo da Mota-Engil – a menos que tenha sido ministro das Obras Públicas, mas infelizmente o cargo de ministro também está vedado a Cristianos Ronaldos, como é óbvio. Não, assim que um miúdo recebe o nome de Cristiano Ronaldo, pode começar a engraxar as chuteiras: já sabe que vai ser jogador de futebol.

Foi a única vantagem com que Cristiano Ronaldo nasceu. Tudo o resto foi conseguido por ele. É por isso que, ao contrário do que parece ser a opinião geral, considero que Cristiano Ronaldo é modesto e casto. Modesto e casto, digo bem. E justifico: Ronaldo nasceu, há 26 anos, num lugarejo esquecido da Madeira. À custa exclusivamente do seu esforço, conseguiu ser considerado o melhor do mundo no seu ofício. É isso que faz dele modesto. No lugar dele, tendo feito os sacrifícios que ele fez e obtido o que ele obteve, eu teria mandado fazer um cartaz, todo em néon, com os dizeres “Eu sou o grande Cristiano Ronaldo” e uma seta fluorescente a apontar para mim, pendurava-o ao pescoço e não saía de casa sem ele. Que ele, de vez em quando, dê uma entrevista em que arrisca um tímido elogio a si mesmo, para mim, é sinal de humildade.”

Ricardo Araújo Pereira, 2011

O lendário pontapé de bicicleta e o lendário… Cristiano Ronaldo

“(percebi que ia ser o melhor avançado) porque tinha desenvolvido desde baixo tudo o que era preciso. Revelava capacidade de finalização extraordinária, tanto com o pé direito como com o pé esquerdo ou com a cabeça. Tinha drible, remate, enganava adversários, tinha poder atlético no choque. Naquela geração não tínhamos mais nenhum assim como avançado, como ponta-de-lança.”

Francisco Silveira Ramos, 2017

Quantos de nós… na nossa infância… rebobinaram vezes sem conta a cassete de VHS, no momento em que Pelé, no filme Fuga para a vitória“, marca de pontapé de bicicleta aos nazis? Eternizando o momento e sonhando um dia reproduzi-lo no campo da nossa escola? Não sabemos se Ronaldo foi um deles, mas a realidade é que materializou o sonho de qualquer criança fascinada pelo jogo. No nosso imaginário, marcar de pontapé de bicicleta era o derradeiro degrau que imortalizava a lenda. Fosse durante a 2ª Guerra Mundial, na nossa rua, no clube da cidade ou na Liga dos Campeões. Aquele momento… tal como no filme… em que o jogo e a competição passavam para segundo plano, a Arte assumia o papel principal e os adversários nos aplaudiam de pé.

https://www.facebook.com/SaberSobreOSaberTreinar/videos/2018805774815346/

Segundo a (Wikipédia, 2018), “na maioria dos idiomas, a manobra recebe um nome similar aos movimentos do ciclismo e da tesoura, devido à plasticidade da acrobacia. A sua complexidade e seu uso incomum nas partidas de futebol fazem com que a bicicleta seja uma das mais célebres habilidades avançadas do desporto. (…) O remate de bicicleta já foi reproduzido em diversas obras de arte, bem como em esculturas, filmes, propagandas e na literatura.” Deste modo, entre tantos outros feitos, Cristiano Ronaldo sublinhou a sua imortalidade. Desta vez com talvez a acção individual mais célebre do jogo.

Crescemos e fomos educados sob constante avaliação. Nos jogos e brincadeiras com os amigos, na escola, no desporto, na vida profissional e até sentimental. É portanto natural, que tenhamos a tendência para procurar distinguir os melhores nas mais diferentes actividades. No Futebol, torna-se até fundamental, se estamos no domínio da escolha de um plantel ou de um onze, por exemplo. Contudo, a permanente discussão e comparação entre Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, sendo sempre possível, perde sentido. Tendo em conta a sua individualidade, naturalmente terão qualidades similares e tantas outras diferentes. Até se pode tornar interessante discutir a influência de ambos nos diferentes sub-momentos de jogo das suas equipas. Porém, ambos atingiram uma tal dimensão qualitativa, que a discussão sobre a sua importância no jogo das suas equipas, e até na história do jogo deixou de fazer sentido. Ambos entrariam em qualquer equipa da história do Futebol.

Deste modo, à luz do trinómio Estética-Eficácia-Eficiência Ronaldo e Messi figuram entre os melhores da história nas dimensões Eficácia e Eficiência. Como a dimensão Estética, referida no artigo sobre o tema, torna-se “subjectiva e relativa à individualidade, cultura e preferência pessoal de cada indivíduo”… então Ronaldo e Messi são incomparáveis… podem ser uma preferência pessoal, mas no fundo o que importa é que ascenderam ao estatuto de lendários e estão no panteão dos deuses do Futebol.

Nos seus traços e evolução vivenciada, o autor (Lumueno, 2013), acredita que Cristiano Ronaldo “é o jogador mais completo do mundo no momento de finalização. É um fora de série pela eficácia que demonstra nos momentos de decisão. É um tremendo jogador”. O treinador português Fernando Valente, em entrevista também a (Lumueno, 2015), descreve que “Ronaldo formatou, à base de “hard work”, o seu corpo para se tornar uma máquina de execução técnica que lhe permite estar a um nível altíssimo na execução e antecipação de situações de finalização…” Também neste contexto, (Bouças, 2015) acrescenta que “ainda que Ronaldo seja de facto um monstro físico, é ser um monstro de execução técnica que o separa do comum dos mortais. Quantos outros futebolistas não são tão ou mais rápidos, não têm tanta ou mais força, ou não são mais ágeis que o prodígio português? A forma persistente como trabalha fisicamente para ser cada vez melhor é louvável. Mas, quantos não o farão em igual proporção? Ronaldo fisicamente é tudo o que se diz. Mas e como tão bem referiu Fernando Valente é por se ter tornado uma máquina de execução técnica que tem o sucesso que tem. Que marca a infinidade de golos que marca. É na excelência do seu gesto técnico, sobretudo a finalizar (e com qualquer superfície de contacto com que toca a bola!!) que Ronaldo é absolutamente estratosférico! Foi no evoluír do seu gesto técnico a finalizar que atingiu e atinge marcas outrora impensáveis. E não no incrementar das suas capacidades físicas. Ser mais rápido e mais forte não garante sucesso na hora em que o pé toca na bola”.

Aquele que é um dos melhores finalizadores de toda a história do futebol mundial, porque antecipa espaços, porque percebe antes de todos onde a bola vai cair, porque é um animal de movimentos na grande área, e acima de tudo porque coloca em cima da forma como “adivinha” um gesto técnico seja a rematar ou a cabecear como muito pouco visto antes na história do jogo, entendeu oportunamente o espaço que poderia encontrar para ficar como um jogador marcante, recordado até daqui por cem anos.

Pedro Bouças, 2017

Um Real engano

“(…) o trabalho sobre a análise do jogo tem-se focado, predominantemente, no uso de descrições simples e associações entre variáveis, levando à investigação do fenómeno sem considerar os aspetos dos sistemas complexos, dinâmicos e interativos, que poderão caracterizar melhor o rendimento num jogo de futebol.”

Hugo Sarmento citado por Luís Cristóvão, 2017

Tem sido constante o ataque ao rendimento de Karim Benzema pela escassez de golos marcados do jogador Francês. O próprio Cristiano Ronaldo também tem sido alvo de criticas similares dado o menor número de golos marcados na presente época desportiva.

“Esta é uma crise sem precedentes dos habituais goleadores do Real Madrid nos últimos anos. Na mesma altura da época passada, Ronaldo e Benzema somavam 12 golos no campeonato. Em 2014/15 já tinham apontado 27 golos no mesmo número de jogos. Agora estão ao nível dos piores da Europa e longe dos melhores. Neymar e Cavani, do PSG, somam 22, enquanto Suárez e Messi, do Barcelona, já marcaram 17.”

“Ronaldo e Benzema são a pior dupla da Europa”

“Quando Ronaldo não se encontra na melhor forma é fácil perceber a má forma do Real Madrid à frente das balizas. No entanto, a seca de golos de CR7 não pode ser o único motivo que explica o mau momento pelo qual passa a equipa de Zidane. (…) Mais que Ronaldo, Benzema está a ser obliterado pelas críticas à maneira como pouco tem contribuído com golos para a equipa. O francês não está a acertar com a baliza e quando o faz, não consegue dar seguimento com boas exibições. Sendo um dos principais elementos da badalada BBC, Benzema tem apenas seis golos marcados esta temporada, o que para um avançado do Real Madrid é um número fraco. O avançado já leva 22 partidas disputadas e conta com apenas três assistências.”

“Um Real Madrid que está em crise e já não consegue disfarçar”

Porém, os que procuram explicar o menor rendimento colectivo do Real Madrid por um fragmento da realidade ignoram outros números. O facto é que o Real Madrid, colectivamente, é a quinta equipa com mais golos marcados na Europa.

Equipas mais goleadoras da Europa – 26 de Fevereiro de 2018 (SportTV, 2018)

Portanto, se os golos marcados pela equipa não são a explicação para o seu menor rendimento global, não serão com certeza os golos, nem as assistências, do ponto de vista individual. O objectivo do artigo não é procurar a explicação para o momento do Real Madrid. Pela análise ao seu jogo, é um exercício sempre interessante, mas difícil. Pior ainda se tivermos em conta a complexidade que envolve a dinâmica de uma equipa de futebol. O dia-a-dia, o treino, o plano individual, as relações internas, externas, etc. O propósito é, uma vez mais, sublinhar como o pensamento reducionista está sempre presente na forma como observamos a realidade. Se tivermos em conta a proposta por nós apresentada, o jogo de futebol acontece em 12 sub-momentos.

Momentos e Sub-Momentos do jogo.

A finalização da equipa só está presente em dois deles, assim como a “assistência”. No que toca ao que é visível no campo, não estarão possíveis explicações para o rendimento do Real Madrid nos outros 10 sub-momentos? E será que os jogadores criticados, não serão importantes noutros sub-momentos do jogo? Por se posicionarem na maior parte do tempo de jogo mais perto da baliza adversária, têm obrigatoriamente que ser os melhores marcadores da equipa?

Parece-nos clara a resposta à última questão. Depende da forma de jogar da equipa. Se a mesma proporcionar situações de finalização a esses jogadores e os mesmos falharem-nas sistematicamente, logicamente que isso é um dado negativo do ponto de vista individual. Porém se a mesma os usar como “um meio para chegar a”, então a crítica individual é absurda. Não tendo oportunidades para marcar, não poderão com certeza somar golos. Voltando ao contexto particular do Real Madrid, talvez Benzema e Ronaldo não estejam no melhor momento no que toca à sua eficácia. Porém, não estarão, mais do que nunca, a dar uma maior importância ao jogo colectivo da equipa? Pelo menos no momento ofensivo? A própria decisão, no passado fim-de-semana, de Cristiano Ronaldo ceder a marcação de uma grande penalidade a Benzema talvez reflicta isso mesmo. E não se tratou de uma assistência. Mas de uma preocupação com o outro. A tal relação interna. O próprio José Mourinho, em 2011, quando treinou o Real Madrid descrevia assim Benzema:

“Karim está a trabalhar mais do que nunca, sobretudo na fase defensiva, e é um jogador nada egoísta e que faz jogar a equipa.”

José Mourinho, 2011, citado por João Paulo Godinho, 2011

Segundo o autor (Amado, 2010), “o Futebol é tudo menos um jogo simples e um avançado tem mais para fazer em campo do que ser o elemento mais avançado de uma equipa. O Futebol, jogado como um todo, não pode estar refém de jogadores com funções específicas; uma equipa, para fazer golos, não pode estar refém do seu atleta mais adiantado. Tem de ser capaz de tornar complexo o seu jogar a ponto de ser absolutamente indiferente quem faz ou não faz os golos”. O avançado espanhol, Fernando Torres, citado por (Bouças, 2012), a propósito do seu papel na selecção espanhola, descreve que “é preciso ter paciência. É complicado jogar. Deves fixar o central, é um papel secundário, porém é o melhor para a equipa. É um luxo jogar nesta selecção. Aqui pode acontecer que te contenhas mais na partida e não faças golos, mas é o melhor para a equipa. Há dias que pensas: “Que partida fiz! Oxalá jogue assim sempre.” E ouves críticas por todos os lados. E no dia em que estás lento, mal e erras, mas marcas dois golos, aplaudem-te. Aprendi a viver com isto.” Pedro Bouças sustenta que estamos numa era em que perceber o futebol é muito mais complexo que o que na realidade parece. Há onze jogadores, e todos devem ser responsáveis por tudo dentro do campo. Uns dias ganhas notoriedade, noutros parece que o jogo te passa ao lado. Há é que decidir bem a cada instante. Se assim for, a equipa estará sempre mais próxima do sucesso”.

Na sua obra, Edgar Morin, explica que “a palavra compreender vem do latim, “compreendere”, que quer dizer: colocar junto todos os elementos de explicação, ou seja, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos. Mas a compreensão humana vai além disso, porque, na realidade, ela comporta uma parte de empatia e identificação. O que faz com que se compreenda alguém que chora, por exemplo, não é analisar as lágrimas no microscópio, mas saber o significado da dor, da emoção. Por isso, é preciso compreender a compaixão, que significa sofrer junto. É isto que permite a verdadeira comunicação humana. A grande inimiga da compreensão é a falta de preocupação em ensiná-la. Na realidade, isto está-se a agravar, já que o individualismo ganha um espaço cada vez maior. Estamos a viver numa sociedade individualista, que favorece o sentido de responsabilidade individual, que desenvolve o egocentrismo, o egoísmo e que, consequentemente, alimenta a autojustificação e a rejeição ao próximo. A redução do outro, a visão unilateral e a falta de percepção sobre a complexidade humana são os grandes empecilhos da compreensão. Outro aspecto da incompreensão é a indiferença. (…) Por isso, é importante este quarto ponto: compreender não só os outros como a si mesmo, a necessidade de se auto-examinar, de analisar a autojustificação, pois o mundo está cada vez mais devastado pela incompreensão, que é o câncer do relacionamento entre os seres humanos.”

“Mourinho dizia-me: Tranquilo, não precisas de marcar golos para ser o homem do jogo.”

Didier Drogba citado por (Bouças, 2013)

“Pergunto-me por exemplo, quantos não serão os “dados” existentes à cerca da pergunta seguinte: Quais são, os elementos estruturais de todo o jogo de futebol? A estrutura de acção não é mecânica, no entanto, o saber compartimentado do “nosso” futebol segregou já demasiadas previsões especializadas. Deve continuar o “futebol”, a deixar-se cegar pelo erudito reducionismo? Para nós, a formulação de MODELOS DE INTELIGIBILIDADE afastados da FRAGMENTARIDADE DOMINANTE, e ajustados à natureza complexa do objecto empírico, parece-nos de premente necessidade.”

Vítor Frade, 1990, no seu projecto de tese de doutoramento, em 1990

“Sem equipa

nenhum jogador cresce,

mas só boa equipa fica

se ser bom jogador acontece.”

(Frade, 2014)

Cultura de jogo III. “Atrás não se brinca”.

“Atrás não se brinca”. Um dos tantos lugares comuns que fazem parte da cultura de jogo tradicional. Mas na realidade, brinca-se. Brinca-se por todo o campo, porque o futebol, é antes de tudo o resto… prazer… divertimento. A expressão pode no entanto querer identificar zonas, sectores, funções, nas quais os “riscos” das consequências da perda da bola, podem ser mais elevados. Contudo, à imagem da saída curta do Guarda-Redes, tudo depende do contexto. Das ideias… ou qualidade colectiva, da qualidade individual e dos adversários. Assim, uma vez mais não há uma receita. Existem diferentes decisões, perante diferentes contextos.

Johan Cruyff, no momento mais importante até à data do seu país no Futebol – a final do campeonato do Mundo de 1974 na Alemanha, decidiu, logo após o pontapé de saída da sua equipa, na primeira posse de bola que a sua equipa dispunha, enquanto “último homem” da sua equipa, driblar e penetrar no bloco adversário até à grande-área, acabando por sofrer grande penalidade. O penálti, convertido por Neeskens, viria a garantir o primeiro golo do encontro para a Holanda. Cruyff assim o decidiu dada a sua qualidade individual e a mobilidade que a sua equipa protagonizava, que arrastou as marcações individuais alemãs. Decidiu-o em função do contexto, ignorando os preconceitos vigentes, e influenciado pela sua conhecida irreverência.

Quase 50 anos depois, no mesmo país, Frenkie de Jong, aos 20 anos, provavelmente influenciado pelas mesmas ideias de jogo que ainda pairam no Ajax de Amesterdão, apresenta a mesma cultura de jogo. Sem receio, conduz, fixa, dribla e penetra sistematicamente a primeira linha de pressão adversária. Derruba, novamente, preconceitos enraizados na nossa cultura.

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Segundo video realizado por ty.

O website (Tactic Zone, 2013), cita Josep Guardiola no tempo de treinador do F. C. de Barcelona, que aconselha:gastem dinheiro com os defesas, sobretudo com os centrais!” e justifica: “pode parecer paradoxal, uma equipa com um futebol ofensivo, de posse, de muitos golos e tem que investir em defesas? Claro, é onde tudo começa. Se defesas (e Guarda-Redes dizemos nós) não conseguem construir, todo este conceito se complica e o jogo já não será o mesmo. Nas minhas ideias o Guarda-Redes e defesas centrais são os primeiros avançados. E um central ter a capacidade de construir não é ter boa capacidade técnica. Tem que ter um grande entendimento do jogo ofensivo e ser muito bom na capacidade de decisão. Por isso, é tão difícil encontrar centrais para este tipo de jogo. Por isso, o Barcelona opta muitas vezes por colocar médios na posição de defesa central”.

O autor (Bouças, 2013), sustenta que “ter jogadores capazes de desequilibrar ofensivamente logo desde trás no primeiro momento da construção será cada vez mais decisivo. Feliz de quem pode contar com defesas centrais para desbloquear situações e adversários.  Em equipas que passem demasiado tempo no momento de organização ofensiva, defesas centrais com tamanha qualidade ofensiva são tão importantes para se chegar ao golo, quanto os avançados. É que o jogo começa demasiadas vezes desde trás, e passa garantidamente, mais vezes nos pés dos centrais que nos de qualquer outro jogador”.

“Johan Cruyff dizia: o mais importante no Futebol é que os melhores jogadores sejam os defesas. Se estás com a bola, consegues jogar; se não, não fazes nada. Johan diz que a bola equilibra uma equipa. Se perde a bola, a equipa se desequilibra; se perde pouco, consegue manter o equilíbrio.”

(Gonzalez, 2012)

Drible Vírgula

Organização Ofensiva | Acções individuais ofensivas | Drible + Vírgula | Marco Asensio 2018

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O treinador português: um “produto” de qualidade

“Há sempre que estudar mais. Não compreendo o treinador de futuro sem estudo.”

Manuel Sérgio, 2017

Numa reportagem de Janeiro de 2017, um canal de desporto brasileiro procurava explicar a “moda” em que se tornou o treinador português.

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Num artigo de Fevereiro do mesmo ano, tocávamos na questão.

“(… ) é evidente a enorme a evolução que o jogo, o treino e a liderança das equipas registaram, resultado da qualidade que muitos treinadores portugueses hoje apresentam, colocando-os no top mundial. Simultaneamente, em todos os níveis do jogo muitos outros crescem, nas ideias e na experiência e preparam-se para mais uma vaga, quem sabe ainda melhor. Facto, valorizado ainda, pela menor dimensão do país, no número de praticantes e de equipas, comparativamente com muitos outros. Também não é assunto novo neste espaço, pois ainda noutro artigo recente, trazíamos o professor Silveira Ramos elogiando o treinador português, pelo seu conhecimento do jogo e pensamento estratégico. Hoje, em vários pontos do mundo o treinador português é visto como sinónimo de qualidade. Constitui-se como mais um “produto” português de enorme sucesso.”

A reportagem foca o processo formativo. Conhecendo o mesmo, reconhecemos a sua evolução e incontestável contributo para este sucesso. Mas este é um processo que não se reduz aos cursos de treinadores. Passa também pelo trabalho desenvolvido das Universidades nas últimas décadas, por diversas obras publicadas por inúmeros autores e actualmente pelos inúmeros espaços na internet que desenvolvem ideias, debatem e contribuem de forma decisiva para a exponenciação do conhecimento. Como grande exemplo, reconhecido por muitos treinadores, alguns deles até focados na reportagem, está o incontornável www.lateralesquerdo.com, online há quase uma década e percursor de centenas de outros espaços, de ideias e até linguagem que hoje se tornou convencional.

Porém, esta é só uma parcela da explicação. Desde logo, (Manuel Sérgio, 2012) descreve que “em Portugal não é a mesma coisa ser treinador de Futebol ou treinador de Basquetebol… as pressões são outras. O autor (Bouças, 2016) sustenta este pensamento com “os rótulos que os “carneiros” sempre colocam quando alguém que não entendem nem querem esforçar-se para entender foge da norma. Será sempre assim, até que a realidade lhes bata de frente. Por isso há quem vá à frente, afirme, defenda e prove. E há os que atrás se limitam a acenar concordando sempre com o que estará mais aceite e enraizado no pensamento global”. Sem dúvida que José Mourinho marcou uma nova era para o treinador português, indo com enorme coragem mais “à frente, afirmando-se, defendendo-se e provando”. Segundo o treinador (André David, 2017), “após Mourinho aparecer no nosso futebol, a imagem do treinador e da formação dos treinadores ganhou especial relevância e notoriedade, ao ponto de actualmente haver imensos jovens a quererem ser treinadores de futebol”.

Neste âmbito, é também fundamental sublinhar a base metodológica de José Mourinho. A Periodização Táctica idealizada por um homem que personifica todas as qualidades e genialidade do treinador Português. O ex-treinador e professor Vítor Frade. O treinador português (Jesus, 2010), defende que Portugal tem uma metodologia de treinos que está dez anos avançada em relação ao resto do Mundo. (…) No futuro vão aparecer mais Mourinhos”. O próprio (José Mourinho, 2001), explica que os dados actuais, indicam que a componente Táctico-técnica e cognitiva sejam as que direccionam todo o processo de treino e um projecto de jogo. Estão assim criados os pressupostos para que seja efectuada uma ruptura epistemológica na periodização e planeamento do processo de treino, e por conseguinte designarmos o novo processo de treino como Periodização Táctica”. De acordo com (Tamarit, 2007),a “Periodização Táctica” é uma Metodologia de Treino que surge há mais de trinta anos na cabeça do Professor Vítor Frade quando, através de experiências que lhe ocorreram, começa a questionar as Metodologias de Treino existentes até o momento”. O autor acrescenta que Frade exerceu, durante trinta e três anos, como professor na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto e foi treinador adjunto em várias equipas da primeira liga Portuguesa, nomeadamente no F. C. do Porto durante mais de vinte anos. Xavier Tamarit ressalva que, portanto, esta metodologia, “não surgiu de um dia para o outro, como por magia, nem é algo extraído de qualquer outra área e extrapolado para este fenómeno de massas chamado Futebol”. Finalmente Tamarit sublinha que “ele é o criador da metodologia de treino conhecida como Periodização Táctica, transgressora com a lógica que era aceite como verdade absoluta pelas teorias e metodologias de treino, assim como, possivelmente, pela totalidade dos desportos. Esta “nova” metodologia surgiu há aproximadamente trinta anos, porém começou a ser mais conhecida através dos êxitos conseguidos pelo treinador português, (…), José Mourinho, que junto da sua equipa técnica conseguiu levá-la à excelência ao nível prático.

Por outro lado, Paulo Sousa, citado por (Ferreira, 2014), justifica a qualidade dos treinadores portugueses com múltiplas presenças nos níveis competitivos mais elevados. O técnico português sustenta que “é extraordinário e isso só confirma o que disse, que temos qualidade e estamos preparados. Claro que há factores que determinarão os resultados que cada um deles irá obter mas isso não porá em dúvida a competência de todos eles que, com o tempo, irá sendo cada vez maior”.

Assim, segundo Jorge Jesus, citado por (Braz, 2009) e abordando os melhores, “os treinadores portugueses são dos melhores do mundo, ao nível dos holandeses e dos italianos”. O treinador português (Jorge Jesus, 2013), reforça esta ideia, colocando os treinadores “à frente dos outros, mas que estão a frente é garantido. Todos querem aprender connosco”. Ainda (Jorge Jesus, 2015), vai mais longe e opina que os treinadores portugueses, são actualmente os melhores treinadores do mundo, são os que têm mais conhecimento em todas as áreas que definem o crescimento de uma equipa de Futebol, e portanto se tiveres a possibilidade de trabalhar numa equipa que tem condições financeiras para teres isto tudo, eles têm muito mais facilidade de ganhar esses títulos que qualquer outro treinador do mundo. Tirando o Pep Guardiola porque também penso que é um pouco parecido com os treinadores portugueses”.

Para (Silveira Ramos, 2015), o treinador português encontra-se à frente de colegas de outros países, pois para o treinador e autor, há décadas que o treinador português perspectiva o treino de uma forma mais global, mais holística, contrariando o pensamento analítico e a divisão das dimensões do rendimento protagonizada pela maioria das outras culturas futebolísticas. Porém, para tal, o autor defende que foi preciso errar, foi preciso “trilhar o caminho”, foi necessário inovar, e também aí o treinador português foi corajoso e pioneiro. Qualidades conjugadas com a inteligência. Segundo o treinador português (Nuno Manta, 2017), “o treinador português é super inteligente. Sabe trabalhar o músculo principal, que é o cérebro, e põe o jogador a pensar, português ou não. Independentemente da nacionalidade, os jogadores vêm para cá e normalmente crescem aqui, antes de dar o salto para a Europa”.

Neste enquadramento, novamente (Silveira Ramos, 2017) descreve que “há algo que herdamos da chamada velha guarda dos treinadores portugueses: a estratégia. Portugal foi pioneiro nessa capacidade de aliar a vertente estratégica às metodologias de treino de vanguarda. Isso produziu alguns dos melhores treinadores do mundo. Não percamos isso, não nos agarremos a preconceitos. Identidade não é jogar sempre com os nossos argumentos expostos. Nenhum grande general faria isso… Estratégia é utilizar o que temos de melhor. Uma frase mais para a tal simbiose entre velha guarda e os tempos modernos. Os treinadores portugueses eram aqueles bons malandros, no bom sentido do termo. Eram atrevidos e essas características espero que nunca se percam porque é a nossa natureza e também a explicação para a afirmação de muitos deles no estrangeiro“.

O treinador português (Leonardo Jardim, 2017) acha que o treinador português é um treinador muito bem visto em toda a Europa e todo o mundo pelo seu conhecimento e pela sua capacidade de adaptação. Nós portugueses temos esta capacidade. Nós temos famílias de emigrantes e temos capacidade de nos adaptar. Mesmo em cenários de alguma dificuldade nós conseguimo-nos adaptar e ultrapassar essas dificuldades e fazer aquilo que mais gostamos que é o nosso trabalho, e apresentar resultados. Ao contrário do que no passado podíamos pensar, a adaptação é uma mais valia.

O autor (Luís Freitas Lobo, 2010), parece subscrever esta ideia ao defender que “tacticamente, o treinador português é dos mais inteligentes do mundo. Domina o treino e a leitura de jogo. É multicultural, sem complexos de ouvir outras escolas mas, ao mesmo tempo, tem um orgulho pessoal que não o deixa converter-se, pelo que, no fim, impõe a sua filosofia”. Lobo, acrescenta que o treinador português, “prova, como diz Capello que “o melhor treinador é o maior dos ladrões”. Aprende em todos os sítios e com todos os outros técnicos, mas, no fim, aproveitando tudo, mete a suas ideias e cria uma filosofia própria global. O Futebol português, não duvidem, sempre esteve cheio de grandes “ladrões””. O autor (Pinheiro, 2013) destaca três pontos que fortes no treinador português:

  • Trabalho realizado em ambiente de adversidade. O autor refere que “treinador português está acostumado a trabalhar com poucos recursos, tanto ao nível humano quanto ao material. Vejamos o exemplo de algumas equipas fantásticas que se alicerçam em jogadores “aparentemente” normais, mas que com grande rigor e organização conseguem resultados fantásticos”;
  • Formação académica. Para Valter Pinheiro, “o advento de técnicos com formação em Educação Física trouxe ao futebol maior rigor e cientificidade”;
  • Capacidade de adaptação. Finalmente o autor sublinha “a capacidade “camaleónica” do treinador português, capaz de se adaptar a contextos difíceis e muitas vezes hostis. Já se tornou normal ver equipas com muitos meses de salários em atraso que em campo revelam uma motivação feroz. Em muitas destas situações o treinador assume-se como a pedra angular que congrega a união da equipa”.

Portanto, no fundo o que faz a diferença no treinador português é o conhecimento que este conquistou, fruto da sua ambição, coragem, inteligência, criatividade, experiências e ideias produzidas, num contexto tão competitivo e adverso como o Futebol Português.

“Sempre fui muito autocrítico e nunca me chega aquilo que faço. Quero sempre mais porque sei que consigo mais. É como o nosso cérebro: nós só exploramos uma parte muito pequena do nosso cérebro. E eu sinto que bem estimulado e motivado sou capaz de virar uma equipa de pernas para o ar.”

Vítor Pereira, 2017

Drible Cruyff turn

Organização Ofensiva | Acções individuais ofensivas | Drible + Cruyff turn | João Carvalho 2017

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O todo… organização defensiva… que está nas partes… sectores e jogadores

É notória a evolução que o Futebol manifestou nos últimos anos. Na liderança, no jogo e no treino. Contudo, o pensamento analítico sobrevive e ainda influencia as três dimensões. Naturalmente, porque como Vítor Frade referiu no I Congresso da Periodização Táctica “foram 400 anos de pensamento analítico ou cartesiano”.

Não é por acaso que Miguel Cardoso, e o seu processo… no fundo, o resultado da interacção da sua liderança com a sua visão do jogo e da forma como treina, tem demonstrado qualidade. Tem demonstrado qualidade no critério, na nossa opinião, mais importante para um treinador. A qualidade de jogo da sua equipa. Porque esta é o grande resultado do seu trabalho e será esta a conduzir a uma regularidade nos resultados. Na conferência de imprensa após o Porto x Rio Ave para a Taça da Liga, a questão do jornalista procurou separar a equipa nos que defendem e nos que atacam. Miguel Cardoso, mostrou o porquê da qualidade das suas ideias.

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O treinador do Rio Ave demonstra, dentro e fora do campo, pensar o jogo como um todo. Num artigo que publicámos recentemente, o responsável técnico pelo ciclismo na Federação da modalidade defendia que o atleta era um todo. Sendo o jogo composto por vários homens, consequentemente também o é um todo. Entendê-lo em complexidade é procurar compreender esse todo. E procurar ir ao plano do detalhe e perceber as suas partes, implica não lhes ignorar as relações e a interação que estabelecem entre si e as consequências que isso provoca no todo. Neste sentido (Azevedo, 2011) explica que “ (…) de acordo com Gaiteiro (2006) podemos afirmar que aquilo a que chamamos “parte” é apenas um padrão numa teia inseparável de relações, não existindo portanto, partes em absoluto”Um dos principais defensores do pensamento complexo, Edgar Morin (2003, p. 108, 109), citado por (Tamarit, 2013), esclarece que “num holograma físico, o ponto mais pequeno da imagem do holograma contém a quase totalidade da informação do objecto representado. Não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte. O princípio hologramático está presente no mundo biológico e no mundo sociológico… a ideia de holograma ultrapassa, quer o reducionismo que só vê as partes quer o holismo que só vê o todo”. O mesmo autor acrescenta que “então pode enriquecer-se o conhecimento das partes pelo todo e do todo pelas partes, num mesmo movimento produtor de conhecimentos”. Xavier Tamarit reforça que parece especialmente relevante para o futebol sobretudo se tivermos em consideração o facto de que como sugere, “a relação antropossocial é complexa, porque o todo está na parte, que está no todo”. Importa contudo salientar que da relação do todo com as partes podem resultar estados diversos de complexidade do todo. O todo pode ser menos que a soma das partes, pode ser igual à soma das partes e pode ser mais que a soma das partes. Mas só o todo organizado será maior que a soma das partes“. No fundo foi o que Miguel Cardoso explicou quando expôs a sua visão do jogo e a forma como identificou os problemas da sua equipa.

“É da problemática da complexidade

a natureza do que é nela interacção,

esfacelar tal realidade

é o que promove a mono explicação.”

(Frade, 2014)

Qualidade de jogo II

Na passada semana demos destaque ao Shakhtar Donetsk e ao trabalho desenvolvido por Paulo Fonseca e a sua equipa técnica. Pelo apuramento para os oitavos de final da Liga dos Campeões, mas principalmente pela qualidade de jogo apresentada. Ainda por cima quando disputava esse apuramento contra duas das actuais melhores equipas da Europa. É notória e notável a qualidade ofensiva da equipa Ucraniana, que esteve em grande destaque no derradeiro jogo contra o Manchester City. Porém, como sublinhámos nas palavras de Vítor Frade, no futebol actual, é fundamental a preocupação por um equilíbrio entre os vários momentos do jogo. Apenas dessa forma uma equipa consegue ser consistente e apresentar qualidade de forma regular.

Jorge Maciel, em 2011, referia um aspecto muito importante, “que passa pela coerência e pelo respeito pela inteireza inquebrantável que o jogar deve manifestar de modo a que se expresse de forma fluída, dinâmica, ou seja que revele ao nível da matriz conceptual articulação de sentido com um determinado sentido”. Desde modo, Maciel defendia que uma sua equipa “deve evidenciar um padrão zonal pressionante, capaz de provocar erros nos adversários forçando desse modo a perda da posse de bola. Não nos devemos acomodar à ideia da necessidade de defender, de um modo “extremista”, a equipa deve ter aversão a defender, ou seja deve ter repulsa relativamente à necessidade de defender, mas simultaneamente e paradoxalmente tem de se sentir confortável quando o tem que fazer. Para isso tem de defender com qualidade para que os momentos em que se vê obrigada a defender sejam curtos, porque induzimos o adversário a errar, mas claro sempre com critério e organização colectiva, respeitando uma organização posicional que melhor nos permita atacar e estar compactos quando temos de defender, o que passa por um escalonamento em várias linhas tanto em profundidade como em largura. Além disso, a equipa tem de reconhecer indicadores de pressão saber atrair e direccionar os adversários para pressionar com êxito, reduzir o campo sabendo nessa intenção jogar com o fora-de-jogo, o que é diferente de jogar em fora-de-jogo. Fundamentalmente, queremos “mandar sempre”, mesmo quando não temos bola.”

Se tal já sucedia no Braga de Paulo Fonseca, também no Shakhtar os momentos defensivos são de grande qualidade e estão ao nível dos ofensivos. Tanto, que o realizador do jogo focou a “dança” da última linha dos ucranianos em determinado momento da partida.

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Em 2014, Matías Manna, a propósito do Bayern de Munique de Guardiola, explicava que este assumia “riscos como ninguém. Boateng mantém a linha, sempre atento ao brasileiro. Na arte da defesa em linha, as equipas de futebol, que são corajosas em todos os momentos do jogo, também podem dar um bom espectáculo. Quando uma equipa adversária faz um passe para trás, Guardiola gesticula para a sua equipa subir. Quando o adversário que tem a bola e está pressionado pelos Avançados e Médios do Bayern, a Defesa sobe. Quando o adversário procura jogar longo, os Defesas-Centrais esperam, aguardam, e passam para a frente dos Avançados adversários, deixando-os fora-de-jogo. Não há espaço. Gestão do espaço é um conceito de Cruyff. Outro conceito para os Alemães que decidiram sempre fazer outra coisa na Defesa. Contra-cultural ou contra-natural. Guardiola decidiu extremar comportamentos para não dar espaço aos seus adversários. Tudo sob o olhar temeroso de Beckenbauer, acostumado a outros hábitos (…)”. O autor (Bouças, 2017) reforça que “encurtar o espaço entre sectores, aumentando o espaço que fica nas costas da última linha requer uma concentração mental permanente, e um jogo de orientação corporal eficiente, para que se possa baixar rapidamente sem perder metros para os avançados que se movem para receber entre defesas e guarda redes.”

“É isto que faz a diferença. É perceber o momento em que a bola está sem pressão e está em condições de entrar na profundidade. Esse é que é o momento de controlar a profundidade. Porque antes disso tem de ser de redução da profundidade, tem de ser de ganho da bola, tem que ser de ataque à zona da bola para ganhar.”

Vítor Pereira, 2016