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O magnífico golo de Jovan Sljivic. Pela execução e escondendo a decisão. A não linearidade da percepção-leitura-execução.

“(…) é possível considerar uma simultaneidade de decisão e de acção, visto que é necessário responder constantemente aos constrangimentos colocados pelo jogo.”

(Joaquim Pedro Azevedo, 2011)

A situação passou-se no jogo da Youth League entre Estrela Vermelha e Manchester City de 13 de Dezembro passado. O jogador que a protagonizou é um talentoso médio sérvio, Jovan Sljivic.

Imediatamente fez-nos recordar o fantástico e disruptivo trabalho de Friedrich Mahlo de, imagine-se… 1970. Apesar da colonização do pensamento linear e mecânico durante o século passado, o autor já imaginava o comportamento táctico de forma complexa.

“o processo de percepção e de análise da situação, assim como a solução mental do problema, fazem-se em movimento (em corrida, durante um passe, uma finta ou um pontapé). Pode-se falar aqui duma modificação contínua da actividade motora como consequência de processos intelectuais. A actividade motora é modificada na sua qualidade, na sua quantidade e na sua orientação espacial.”

(Friedrich Mahlo, 1970)

Se virmos com atenção as repetições em câmara lenta da situação, Sljivic lê a situação, especialmente a baliza adversária, 2 segundos antes de rematar, o que é muito tempo tendo em conta o contexto e processo de leitura, decisão e execução no jogo de futebol. Apesar disso, adapta-se no tempo-espaço para ajustar o remate (solução motora do problema de acordo com Mahlo), realizando-o de forma perfeita. Isto invalida o pensamento linear porque a decisão e os ajustamento da mesma em função da nova posição no espaço, têm de suceder continuamente até de facto a execução suceder.

Salientamos também um dos benefícios do jogador não estar permanentemente a ler a baliza ou a solução que procura: esconder a decisão e consequentemente provocar a dúvida e atrasar a resposta adversária. Perante a acção de Sljivic em sub-momento de Criação ou Finalização, até ao derradeiro momento da execução instalou a dúvida sobre a opção pelo remate, combinação ou último passe / cruzamento.

“Enquanto se resolvem mentalmente as situações, devem subsistir relações mútuas entre as três fases de acção (percepção e a análise da situação, solução mental do problema e solução motora do problema), graças às percepções marginais da situação exterior e da sua, própria motricidade. Pode-se, assim, ter em conta, a todo o momento, a dinâmica da situação. Esta percepção marginal pode conduzir a uma percepção central nova, uma modificação, ou um aperfeiçoamento da situação mental e da acção motora. Graças a ela, a continuidade da percepção encontra-se assegurada durante toda a acção e, logo, durante a actividade em jogo.”

(Friedrich Mahlo, 1970)

Um contra-ataque 3×2+GR

“A sorte está nos detalhes.”

(Jorge Maciel, 2017)

Entre as muitas situações de jogo que se passaram no passado fim-de-semana, destacamos esta, que ocorreu no jogo entre Wolverhampton e Newcastle. Trata-se de uma situação de contra-ataque 3×2+GR, portanto, na nossa sistematização do jogo, situa-se no momento Transição Ofensiva, sub-momento Contra-Ataque. A pertinência da mesma prende-se com a elevada taxa de insucesso com que esta situação é resolvida no jogo, e simultâneamente, com o potencial que possui para que a equipa crie uma extremamente favorável oportunidade de finalização.

Trazendo a realidade do Futsal, na generalidade, o contra-ataque 3×2+GR, é uma situação que é resolvida de forma muito mais eficiente, e consequentemente, mais eficazmente. A explicação parece-nos simples: há conhecimento para a resolver e é-lhe dada muita relevância no treino. E provavelmente, é-lhe dada essa importância porque existe uma consciência dos treinadores que a situação se repete muitas vezes ao longo do jogo. No Futebol, ao invés, não é uma situação frequente. Porém, se por norma, nos jogos de Futsal sucedem mais golos que nos de Futebol, então, no caso do Futebol, uma boa resolução de apenas uma situação, pode-se tornar decisiva no desfecho de um jogo. Foi muito provavelmente, o que se passou neste jogo.

Este é mais um exemplo da enorme complexidade do jogo de Futebol. Mais número (jogadores), mais espaço, mais tempo, tornam-no rico em diferentes situações de jogo, que elevam o caos, e consequentemente a sua aleatoriedade. Pegando no exemplo da situação de contra-ataque que trazemos neste artigo, se num jogo de Futsal de GR+4×4+GR, o contra-ataque já assume muitas configurações diferentes, um jogo de GR+10×10+GR irá exponenciar a variabilidade desta situação. Assim sendo, o seu treino torna-se também muitíssimo mais complexo. No entanto, e pensando de forma geral, a capacidade de adaptabilidade e o limite ao desgaste são similares para ambos os desportos, porque o homem que o joga é o mesmo. Torna-se portanto decisivo para o treinador, não só o conhecimento do jogo e do treino, mas também a selecção de conteúdos e a sua dose, para que de facto se crie a adaptação mais favorável ao melhor desempenho.

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  1. No primeiro momento em que o vídeo pára, identificamos oportunidade para Diogo Jota acelerar a condução e fixar um dos dois defensores. Optando pelo mais próximo do eixo central do campo, permitiria mais espaço e melhor enquadramento de finalização ao companheiro de equipa à sua esquerda. Fixando este defensor, Jota deveria, simulando um drible, a finalização ou a condução de penetração entre os dois defensores, provocar o defensor de forma a que este trocasse os apoios e assim surgisse a oportunidade para realizar o último passe para as suas costas, deixando-o em enormes dificuldades para recuperar e garantir contenção ao segundo atacante. Este ficaria assim, numa condição privilegiada para finalizar com sucesso.
  2. Precipitando o passe para o companheiro à sua esquerda, possibilidade que o defensor trocasse facilmente a contenção para Dendoncker, Diogo Jota toma depois uma segunda decisão muito boa, que acabaria por corrigir a primeira, através de uma desmarcação circular pelas costas do companheiro, garantindo-lhe assim, uma solução de último passe fácil que colocaria Jota num enquadramento muito favorável de finalização. “Bastava” que para isso, Dendoncker temporizasse, permitindo que o companheiro completasse o movimento, e ao mesmo tempo que fixasse o defensor. Ao contrário, o belga optou por um passe longo para Raúl Jiménez, de mais difícil execução e recepção, e que simultaneamente permitiria tempo, não só para que os dois defensores ajustassem a contenção / cobertura, como por outro lado, para que mais defensores recuperassem defensivamente, perdendo-se assim uma situação, de número e espaço, altamente favorável.

O treinador português Paulo Fonseca, entrevistado por (Rosmaninho, 2015) descreve o seu antigo treinador Jorge Jesus como extremamente exigente e preocupado com o detalhe, sendo as desmarcações um bom exemplo. Paulo Fonseca refere que Jesus faz o jogador pensar, o quando, o como e onde é que tem de receber a bola, para onde é que se tem de movimentar, em que momento, em que timing, e isso faz toda a diferença em certos momentos do jogo. Eu acho que a identificação deste detalhe não está ao alcance de todos”. Está patente que o conhecimento do jogo evoluiu abruptamente nos últimos anos. O autor (Romano, 2007), aludindo-se a um pensamento com mais de 15 anos, refere que “Queiroz (2003a) indica que, nos níveis de maior exigência, o treino evolui ao nível da complexidade e da especificidade do detalhe”. Na mesma linha de pensamento surge (Esteves, 2010), descrevendo que “quanto maior o nível de exigência, menor é a diferenciação qualitativa, e mais importância assume o elemento «detalhe»”. Também (Mourinho, 2010), descreve que “quando estamos a trabalhar algum exercício, estamos a trabalhar todas as vertentes. O mínimo detalhe entra no mínimo exercício, mesmo que possa parecer um exercício simples”. Porém, o autor (Campos, 2008) ressalva que a riqueza que deve surgir no detalhe deve ter sempre como pano de fundo os princípios de jogo“. Torna-se, portanto, cada vez mais importante dominar o detalhe, no enquadramento específico de um Modelo de Jogo, e fazê-lo emergir no treino, rentabilizando ao máximo cada sessão.

“O jogo de qualidade tem demasiado jogo (detalhe, imprevisibilidade) para ser ciência mas é demasiado científico (organizado) para ser só jogo.”

(Frade, 2003) citado por (Romano, 2007)

João Félix… o mago da intensidade II

Escrevíamos num artigo publicado em Setembro de 2018, que “em tempos comentámos que Félix fazia lembrar Cruijff na gestualidade, no drible, na pausa, na provocação quando fixa o adversário. De facto… mas não só. Cingindo-nos apenas a exemplos do Futebol Português, lembra-nos Aimar, Rui Costa, Deco ou Pedro Barbosa. Entre tantas coisas fantásticas em comum, destacamos uma. A pausa. Quando o jogo a pede. A tal que muda por completo a definição de intensidade no Futebol… a tal intensidade táctica… a tal intensidade específica do jogo. A tal que significa fazer bem e no tempo certo e não obrigatoriamente muito e depressa. Na forma como constrói, mas também como cria. O próprio drible é muito na essência da pausa, da mudança, da descontinuidade na execução que provoca e perturba emocionalmente o adversário”. O prodígio português trouxe-nos mais um momento delicioso… repleto de… intensidade.

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“(…) o futebol é como a música: a música que é toda do mesmo ritmo a gente não ouve durante muito tempo. O futebol precisa de nuances, tem tempos, tem timings, tem momentos, tem espaços que é preciso utilizar e criar.”

(Miguel Cardoso, 2018)

A falta táctica

Recentemente, num programa televisivo, discutia-se a falta… particularmente a que se vulgarizou na gíria, como “falta inteligente”. Se logo à partida existe uma conotação que a pode identificar como um comportamento inteligente, revela que na opinião de muitos, falta pode significar uma boa decisão. Porém, evidentemente que isso por si só, não nos diz muito. O que não faltam no futebol são lugares comuns, tantas vezes repetidos e que não se questionam.

Se a falta marca presença no regulamento do jogo, obviamente faz parte do mesmo. A sua génese é simples. Numa análise fria, como sucedeu em todos os desportos, e num contexto mais amplo noutros domínios da sociedade, a determinado momento surgiram indivíduos que quiseram obter sucesso na actividade em causa recorrendo a a formas de actuar que a maioria condenou. Com tal, essa maioria criou leis e regras de forma a penalizar esses comportamentos. Ignorar esses comportamentos nesses momentos, não seria certamente a atitude certa para a evolução do jogo ou, na perspectiva mais ampla, de uma sociedade. Tal como ignorá-los agora, não será com certeza a atitude certa de forma a dar continuidade a essa evolução. Defende-se muitas vezes a ideia de que a evolução táctica do jogo, sucedeu nos seus momentos defensivos por resposta a novas ideias ofensivas, e vice-versa. Então o mesmo sucederá com a sua regulamentação.

Um exemplo concreto foi a situação do atraso de bola para o Guarda-Redes, recorrendo aos pés. Durante quase um século de jogo foi um comportamento permitido. Até que, a determinado momento, as equipas perderam um eventual “constrangimento moral”, ou então, noutra perspectiva, ganharam lucidez táctica, e uma vez mais numa análise fria e objectiva, utilizaram essa possibilidade que o jogo oferecia para manterem a posse de bola e evitarem que o adversário atacasse. Os opositores teriam então que pressionar muito alto para evitar a situação, algo que também devemos ter consciência, não muito habitual no jogo da época, pelo menos de forma organizada, o que trouxe problemas ao jogo das equipas. Outra leitura da situação, mais “romântica”, é que as equipas estariam a incorrer em comportamentos anti-desportivos e estavam a abdicar de jogar. A questão é que, na realidade, jogar, é tudo o que as leis do jogo permitem e sancionam. Enquanto se está em jogo… joga-se. Da forma “A”, “B”, “C”, etc… fazendo-se mais ou menos faltas… mas, joga-se. Jogar, não é o que a perspectiva, ou cultura, que cada um de nós tem do jogo, indica como importante. Todos nós formamos opiniões e convicções sobre cada jogar. Se é mais estético, se é mais eficiente, se é mais eficaz. Se esse jogar também expressa os valores humanos que nos alicerçam. Mas não é isso que está aqui em causa.

Portanto sublinhamos: enquanto um jogador está em campo e o jogo decorre, ele joga. Movimentando-se, posicionando-se, ou por exemplo, realizando uma intercepção, um passe, um remate… ou mesmo fazendo uma falta. Repetimos, não estamos a tecer juízos de valor às diferentes decisões que o jogador pode tomar em campo. Mas a realidade é que as leis do jogo permitem que o jogador possa decidir a falta como eventual recurso. Caso contrário seria expulso de imediato. Em determinado momento, o jornalista (Tadeia, 1999), identificou “a proliferação da falta táctica, estratégia usada para impedir o desenvolvimento do futebol do adversário sem causar grandes mossas no cadastro da equipa que as comete”. O mesmo autor opina ainda que “a falta táctica é um flagrante exemplo de benefício do infractor, uma vez que obriga o adversário a recomeçar a sua movimentação, pois permite a recolocação da defesa da equipa que a comete. Por isso, é urgente que este tipo de infracção seja punida nas leis do jogo”. Paralelamente, (Torrijos, 2001) descreve que “a “falta táctica” é efectuada mais pelos médios do que pelos defesas. A falta táctica é a cometida numa zona do campo pouco perigosa de forma a parar um contra-ataque e permitir tempo a que a equipa que a efectua se reorganize. A questão plantou-se quando Albelda fez dez faltas a Zidane no arranque da Liga. O resultado  do castigo (livre directo no centro do campo) é menos penoso que a ameaça de contra-ataque”. Foi então, nessa fase da evolução do jogo, identificado um problema com a acumulação de faltas deste género por determinado jogador. Nessa altura foi então solicitado às equipas de arbitragem que fossem menos permissivas e punissem, disciplinarmente, um jogador que recorresse sistematicamente à falta. A partir daí vemos o árbitro mostrar cartão amarelo enquanto sinaliza gestualmente a acumulação de faltas desse jogador. Um exemplo da evolução do jogo perante um problema identificado. Assiste-se hoje a uma redução no número dessas faltas, o que obrigou as equipas a desenvolverem outras formas de minimizar os contra-ataques perigosos do adversário. Serem mais rigorosas ao nível posicional e na gestão do espaço no equilíbrio defensivo no ataque, é um bom exemplo.

Assim, a discussão pode ser realizada em torno do peso da penalização em determinadas situações de jogo, mas sempre com a consciência que a penalização máxima por qualquer falta, nunca sucederá. Caso contrário, estaríamos perante outro jogo, que não Futebol. Desta forma, enquanto subsistir a falta que não expulsa o jogador da partida, não prejudicando com isso a sua equipa de forma grave, ela será sempre uma possível decisão. E como tal, entrando então no campo da cultura de jogo de cada um, determinada falta, poderá então ser perspectivada como má ou boa decisão. Como decisão inteligente ou não. Neste contexto o autor (Bouças, 2017), dá um exemplo, defendendo que “sem situação controlada em termos numéricos e de espaço, surgem as faltas tácticas como uma marca bem definida das equipas mais inteligentes. No passo à frente, encostar nas costas, e parar em falta com portador sem enquadramento, significa que não há sequer risco de admoestação disciplinar, e de transição defensiva, o jogo pára e entra-se no momento de organização. Onde é substancialmente mais difícil ferir quem tem os melhores, sobretudo quando bem organizados”. Também o espanhol Jesús Botello em (The Tactical Room, 2019), explica que acumulando muitos jogadores em organização ofensiva no meio-campo adversário, “a falta táctica afigura-se vital para evitar contra-ataques”.

Então, se a táctica se constitui como todo o comportamento voluntário em campo. A falta… nessas circunstâncias, torna-se assim, táctica. Prevendo e aceitando depois, o jogador e a equipa, as suas consequências. Na obra “Guía para jugar a fútbol”, os autores (Benigni et al., 2016) também concordam com esta perspectiva ao referirem que “uma das circunstâncias que ocorre cada vez mais no futebol moderno é a chamada falta táctica, que consiste em realizar uma acção voluntariamente incorreta para cortar uma acção contrária, que, continuando, coloca em grande perigo a equipa. Fala-se de uma falta táctica, porque a acção ocorre longe da grande-área, ou seja, na zona de meio-campo, onde, teoricamente, ainda não constitui um grande perigo para a equipe que defende”. O treinador Fran Beltrán em (Club Perarnau, 2013), vai mais longe e explica que o seu Modelo de Jogo “variará se sei que em determinado país são mais ou menos permissivos com o cartão amarelo perante a falta táctica”.

Para nós, a falta enquanto comportamento opcional tem de estar circunscrita aos valores que alicerçam o nosso jogo. Nunca colocando em risco o bem estar físico do adversário, nunca de forma a ludibriar o árbitro e as leis do jogo. Portanto aceitamos e definimos a falta como uma possível decisão, sempre como último recurso em situações nas quais outras acções falharam, e também sempre conscientes das respetivas penalizações que as mesmas enfrentam. Assim, trata-te para nós de uma decisão pontual e não recorrente, mas sim, uma decisão, que em determinadas circunstâncias, se revela… inteligente.

O jogo de Futebol não é aquilo que desejamos que seja. O jogo de Futebol é aquilo que de facto é. Ignorar isto é, ignorar as regras do jogo e jogar em desvantagem. E devemos ter a consciência que os mesmos que apelam ao romantismo do jogo sem faltas, serão os mesmos a crucificar esse romantismo quando o mesmo enfrentar o insucesso.

João Félix… o mago da intensidade

“O valor das coisas não está no tempo em que duram, mas na intensidade com que acontecem. É por isso que existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”

Fernando Pessoa citado por (João Romano, 2007)

Torna-se fundamental um ponto prévio. Vivemos num período em que o Futebol Português toca no fundo em termos éticos, consequência de uma quase total ausência de valores, traço que neste momento marca muitos dos agentes desportivos que nele actuam, nomeadamente aqueles com mais poder e responsabilidades de decisão. No entanto não podemos sonegar que há uma clara interdependência entre estes agentes, os adeptos e a restante sociedade. O Futebol, no que toca a esses valores, não é um nicho que vive desfasado da restante sociedade. Vivemos um período em que há uma clara guerra entre clubes, que se extremou, onde tudo serve como arma de arremesso. Este artigo, independentemente de pegar num exemplo específico exclui-se totalmente deste panorama. É verdade que procuramos produzir conteúdos que se procuram afastar da doença emocional que vai crescendo neste meio, porém, por vezes, há casos incontornáveis que devemos abordar e sublinhar. Nomeadamente por boas razões. João Félix é um deles. E enaltece precisamente a perspectiva contrária à negatividade que polui o Futebol: a paixão pelo jogo.

Se depois da apelidada “geração de ouro” nos questionávamos se aquele tinha sido apenas um fogacho momentâneo, hoje talvez tenhamos uma resposta diferente. Entre tantos problemas, dificuldades e paupérrimas condições oferecidas à Expressão Motora, Educação Física, Futebol de Rua e Futebol de Formação, continua a emergir imensa qualidade, nomeadamente em jogadores e treinadores. Pegando em “matéria prima” praticamente a “custo zero”, oferecendo condições precárias de trabalho, e deste pensamento excluímos obviamente Sporting, Benfica, Porto e Braga, mas que no entanto também se alimentam do trabalho desenvolvido nos restantes clubes, devemos perguntar qual é a área de actividade em Portugal que apresenta o mesmo sucesso financeiro e impacto internacional que neste momento o Futebol de Formação Português evidencia de forma clara? A resposta, pensamos ser… nenhuma. Nenhuma atinge o sucesso do Futebol. A questão interessante será… até que ponto as dificuldades vividas por jogadores e treinadores potenciam este sucesso. É uma questão para a qual não conseguimos ter uma resposta.

É portanto incrível, perante todas estas condições e a dimensão do país, a quantidade de jogadores de qualidade que estão a emergir do Futebol de Formação. Entre eles surge, João Félix. O seu antigo treinador no Futebol de Formação do FC do Porto, (Miguel Lopes, 2017) descreve-o como “mais dotado, extremamente inteligente, muito instintivo e tinha capacidade para decidir bem nos contextos mais difíceis. Sempre foi um miúdo capaz de tirar um coelho da cartola, fazer aquela jogada que ninguém espera, o golo que ninguém espera”. Em tempos comentámos que Félix fazia lembrar Cruijff na gestualidade, no drible, na pausa, na provocação quando fixa o adversário. De facto… mas não só. Cingindo-nos apenas a exemplos do Futebol Português, lembra-nos Aimar, Rui Costa, Deco ou Pedro Barbosa. Entre tantas coisas fantásticas em comum, destacamos uma. A pausa. Quando o jogo a pede. A tal que muda por completo a definição de intensidade no Futebol… a tal intensidade táctica… a tal intensidade específica do jogo. A tal que significa fazer bem e no tempo certo e não obrigatoriamente muito e depressa. Na forma como constrói, mas também como cria. O próprio drible é muito na essência da pausa, da mudança, da descontinuidade na execução que provoca e perturba emocionalmente o adversário.

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“Somos la última generación que ve partidos enteros. […] Porque están más acostumbrados a lo efímero. El partido de PlayStation dura 5 o 7 minutos apenas. Están acostumbrados a los resúmenes. A ver en el celular los goles de todo el mundo. Son víctimas de este estímulo.”

(Pablo Aimar, 2017)

O autor (Pedro Bouças, 2017) descreveu que hoje o futebol está subjugado por uma “pressa por uma emoção rápida que se zanga com quem pensa ou quer pensar o lance, o jogo. O “bruaá” em forma de desaprovação quando a bola não viaja tão rápido no sentido da baliza adversária quando tal é o desejo comum a uma toda bancada, a forma como não se entende que nem sempre o caminho mais rápido é o melhor, continuará a condicionar decisões aos melhores”. Será este um dos grandes méritos de jogadores como João Félix. A resistência a esta emocionalidade e irracionalidade, “ao pânico e à velocidade do Futebol actual” como o treinador português (Villas-Boas, 2009) identificou. Segundo ele “há pressão em torno dos treinadores de vencer, há pouca capacidade de pensar, como falávamos há bocado dos jogadores, há o sentido de urgência que o jogo actual tem…é tudo pânico, é tudo velocidade… e transmite um bocado a ideia do que é a sociedade actual”.  Também (Jorge Sampaoli, 2016), citado por (Luís Cristóvão, 2017) defendeu, que hoje o futebol “vive-se como sofrimento, porque se prioriza o êxito ou o ganhar acima do jogo. Hoje dizem-te que há que ganhar como seja e ganhar como seja significa jogar com níveis muito elevados de stress. […] Ataca-se a serenidade, ataca-se o prazer. Eu creio na minha ideia porque tenho muito amor pelo jogo, não porque padeça pelo jogo”.

Talvez essa seja uma das chaves de João Félix. A sua paixão pelo jogo superiorizou-se à pressão, ao stress, ao pânico, à irracionalidade. E garantiu-lhe uma racionalidade, mesmo que no domínio do subconsciente… um saber fazer… que lhe transmitiu que o jogo não pode ser jogado sempre à mesma velocidade, porque como o treinador português (Miguel Cardoso, 2018) referiu, “o futebol é como a música: a música que é toda do mesmo ritmo a gente não ouve durante muito tempo. O futebol precisa de nuances, tem tempos, tem timings, tem momentos, tem espaços que é preciso utilizar e criar”. Um saber fazer que associado a uma enorme qualidade de execução, lhe trouxe o domínio do tempo e do espaço. Um saber fazer que lhe trouxe a boa decisão… consequentemente… o sucesso. Essa será muito provavelmente a outra chave da qualidade de João Félix.

Podemos estar redondamente enganados, mas arriscamos que num determinado momento da sua vida, alguém disse… “ele tem imenso talento… mas falta-lhe… intensidade”.

“No Boxe bateres muito no teu opositor poderá trazer-te a vitória por pontos. O futebol é um jogo completamente diferente. Não é por bateres muito no muro, ou correres mais que o golo aparece, ou sequer as melhores oportunidades. O melhor jogo não é o que entra à bruta, mas o que explora subtilezas.”

(Pedro Bouças, 2017)

“O que define a intensidade

é o concreto onde o jogar

p’ra expressar máxima qualidade,

tal contexto tem de superar.”

(Vítor Frade, 2014)

Boa e má decisão…

…ao contrário do que a bancada pedia.

Num primeiro momento André Carrillo parece temporizar, aguardando soluções de passe dos companheiros mais avançados, dada a distância dos mesmos, mas provavelmente também pela presença de três adversários que lhe podiam realizar oposição caso optasse pela condução. A sua decisão revelou-se de qualidade, pois conseguiu continuar a progressão do contra-ataque pelo corredor central, num passe vertical para Mitroglou. Tudo isto perante a impaciência da bancada que lhe pedia para acelerar em condução, na sempre presente vertigem pela velocidade descontextualizada. Perdeu 3 segundos de deslocamento, mas ganhou uma melhor situação de ataque à baliza adversária. Ironicamente, o pedido foi satisfeito logo a seguir por Sálvio, que acaba por perder a bola…

Ainda recentemente, o Pedro Bouças escrevia aqui que “demasiadas são as vezes, em que porque o essencial é invisível ao olhos, que o talento escapa. Os melhores também terão a sua cota parte de responsabilidade. Porque percebem mais rápido o jogo e entendem a sua superioridade intelectual, sentem-se eternamente injustiçados e deixam de arregaçar as mangas. O mundo não os percebe e conspira. E o talento entrega-se”.

Qualidade de execução ou de decisão? E a Intensidade.

Este golo marcado por Nicolás Gaitán levanta uma questão colocada muitas vezes quando se procura identificar e descrever a qualidade de um determinado jogador. Nesta e em situações similares, foi prontamente elogiada a “qualidade técnica” do argentino, portanto a sua qualidade de execução.

Em primeiro lugar é fundamental entender, que tal como noutro qualquer fenómeno complexo a relação entre táctica e técnica, ou seja, entre decisão e execução, é permanente e interactiva. Elas não existem separadas na acção de jogo, e afirmá-lo é incorrer no mesmo erro epistemológico que dividiu o treino nos diferentes “factores”, é no fundo também errar como Descartes, quando postulou o dualismo corpo / mente. Assim, um jogador que apresenta qualidade, deve-a às duas dimensões e sua interacção. Importa ainda acrescentar que são qualidades estruturadas também pelas dimensões físicas e mentais do indivíduo em causa. Porém, em algumas acções é perceptível a prevalência de uma delas no seu sucesso.

Neste caso, é fácil perceber que Nicolás Gaitán não protagonizou nenhuma acção técnica de difícil execução. Recebe de forma orientada para a baliza com um pequeno toque, e perante a oposição de dois defensores e do guarda-redes dá mais quatro pequenos toques, tirando todos do caminho, finalizando no 6º toque, num “passe” para a baliza. Talvez as acções técnicas mais complexas tenham sido a simulação na recepção e uma pequena simulação de finalização no meio da acção. Aqui, o que fez a diferença foi o timing de cada toque na bola e de cada gesto motor, portanto, as sucessivas decisões perante o envolvimento. Segundo (Bouças, 2012), jogadores fortes na tomada de decisão são, por exemplo, “jogadores que não se precipitam” e que sabem definir com exactidão o timing das suas acções, e que percebem os momentos em que devem segurar e esperar, ou progredir e investir”.

Recordando um texto da autora e treinadora Marisa Gomes de 2011, “as relações e interAcções dos jogadores têm lugar num instante que é vital. A passagem contínua e invariável do tempo faz com que cada instante tenha uma singularidade que comporta em si a dinâmica que podemos fazer do tempo. Obviamente que falamos da temporalidade do tempo, aquela que nos permite fazer dele uma arte. O tempo de jogo refere-se ao tempo regulamentar. A temporalidade refere-se àquilo que queremos fazer com o decorrer do mesmo”. Segundo a autora, “ter capacidade para interagir tendo em conta as circunstâncias é que torna os seus intervenientes artistas. Sobretudo se isso convergir para aquilo que se pretende. Adequar as escolhas é aquilo que se reconhece nos melhores jogadores e nas melhores equipas. Aceder a essa capacidade exige um trabalho dirigido, concentrado e objectivo para aquilo que se pretende. Deste modo vamos sentindo que as escolhas se fazem nos instantes apesar de serem projectadas por aquilo que foram as vivências anteriores. Então, jogar é manusear os instantes preenchendo-os com um sentido, através das intencionalidades que se expressam nos movimentos. De forma espontânea, os melhores adoram jogar para o poder fazer. Antecipam, simulam, escondem, provocam e Sobredeterminam o seguimento das circunstâncias. A qualidade do tempo ganha assim UM sentido que não se desenvolve sempre do mesmo modo. Concorrer para a qualidade fundamental dos jogadores é educá-los desde muito cedo para isso. Desde quando? Desde sempre!”.

Johan Cruyff, citado por (Grove, 2015) terá defendido que “técnica não é conseguir dar 1000 toques na bola. Com treino qualquer um consegue fazer isso. Depois poderá trabalhar no circo. Técnica é passar a bola ao primeiro toque, com a velocidade certa, e para o pé certo do companheiro de equipa.” Apenas preferimos qualidade individual” ao invés de “técnica” e trocamos“ao primeiro toque”, por no momento certo“…

Esta reflexão leva-nos a uma segunda questão, a qual está hoje na “moda”: a Intensidade. A mesma foi sempre associada à qualidade das acções, porém tem sido também, insistentemente associada ao rápido deslocamento, à velocidade de execução, ao pressing, à agressividade física, etc., portando uma Intensidade alicerçada na visão física do jogo. Contudo, se o pensamento complexo leva-nos a uma interpretação e visão multidimensional do jogo e do treino, por arrasto, conceitos como a Intensidade necessitam também de uma nova abordagem, igualmente multidimensional.

Na situação aqui ilustrada, impondo a tal “intensidade físico-técnica”, Gaitán precipitaria a sua acção para uma rápida finalização ou drible, não descobrindo, como o fez, a melhor decisão. Decisão essa que incluiu temporizações em que simplesmente não executou, mas que aumentou a probabilidade de êxito na conclusão da acção. Portanto, não ter agido, naquele envolvimento, revelou-se melhor do que fazer muito ou do que fazer rápido. Deste modo, mantendo a Intensidade associada à qualidade das acções, porém enquadrando-a numa visão complexa do rendimento, Intensidade poderá ser nalguns casos, não se deslocar e executar? Sim, se ao contrário de fazer muito e depressa, for entendida como fazer o necessário para fazer bem.

Iremos em breve, abordar de forma mais profunda a Intensidade.

“Temporizar é muito importante. Para mim é funtamental. Decidir bem.”

(Vítor Pereira, 2014)

Critério

Neste artigo abordamos a necessidade do critério no Futebol. Sendo também uma das qualidades da tomada de decisão de dirigentes e treinadores, aparece aqui, essencialmente associada à explicação do rendimento do jogador de futebol. Assim, procuramos através de diversos autores, as suas perspectivas sobre o tema.

“É incrível a harmonia que pode pôr, numa equipa inteira, alguém que movimenta a bola com precisão, com critério, com a indiscutível autoridade do talento.”

“(…) Pirlo, outro jogador de aparência frágil que se agiganta com a bola. Fazendo girar a equipa em seu redor, falhou o seu primeiro passe ao vigésimo minuto do segundo tempo.”

Jorge Valdado sobre os jogadores Diego e Pirlo, citado por (Gomes, 2009)

Na opinião de (Sá, 2011), é habitual juntar à “”intensidade” outra palavra ouvida recentemente, a “paciência”. Intensidade, no sentido que se pretende aqui dar ao termo, é sempre positiva. Implica concentração, e reactividade de pensamento. Paciência, não. Paciência é um condimento, e não o prato principal, pode ser positiva, se for colocada em cima de qualidade e intensidade, mas pode ser negativa, se não o for. Pessoalmente, prefiro a expressão “critério“, que é menos dogmática e mais aberta à especificidade do jogo. “intensidade” e “critério””.

De acordo com (Garganta, 2001) “a palavra critério provém do termo grego – krino – que significa separar. Os critérios funcionam como padrões que nos permitem identificar, seleccionar e avaliar as coisas (Marina, 1997). Em ciência os critérios funcionam, a um tempo, como peneira ou separadores e como aglutinadores de sentido, o que faz com que se apresentem como algo paradoxal”. Segundo o professor de Neurociência português António Damásio citado por (Carvalho, 2006), onde existe uma necessidade de ordem, haverá uma necessidade de decisão, deverá exisitir um critério para se tomar essa decisão”. Na opinião da treinadora Marisa Gomes, em entrevista a (Rocha, 2008) o critério “dá a selectividade. Dá a orientação das escolhas para o lado eficiente. E este lado eficiente é o lado valorizável. E o eficiente valorativo é o nós estarmos a jogar e sabermos que para ganharmos temos de jogar daquela forma. E que não é a questão de ser bonito ou feio. Não. É a questão de que é assim que se joga. É assim que somos eficazes”.

O autor (Cardoso, 2006)  descreve que “existem jogadores que são reconhecidos pela sua assertividade táctica, pelo seu critério decisional”, para Cardoso é uma capacidade “de errar pouco nas decisões”.  A treinadora Marisa Gomes citada por (Montenegro, 2008) explica que ter critério é ser selectivo. Assim, o autor (Bouças, 2013) sustenta que o “critério é a melhor resposta para cada situação que se enfrenta. Quando ambas as respostas são igualmente boas, diferencia os jogadores a velocidade a que as dão”. Valdano, citado por (Amieiro, 2009), defende “que para dirigir o jogo, como para dirigir uma equipa, como para dirigir um clube, antes da experiência faz falta critério”. De acordo com (Sienosiain, 2009) o treinador argentino Marcelo Bielsa admira jogadores que decidam o jogo com objectividade e critério. Segundo o técnico argentino, “o futebolista deve ter raciocíonio, ser inteligente, ter capacidade interpretativa de cada um dos momentos do jogo. A inteligência deles não deve ser obrigatoriamente a inteligência cultural”. Ainda assim, (Sienosiain, 2009) descreve que Bielsa também “aprecia os jogadores que, fora do campo, decidam a sua vida com critério, porque crê que os que vivem sob essa lógica também o farão no futebol. Se pensar já é difícil, fazê-lo correndo é ainda mais difícil”. Por outro lado, (Cerqueira, 2009) evidencia que o critério também surge no comportamento sem bola. Segundo o autor, analisando um determinado modelo de jogo, um “sub-sub-princípio parecia promover regularmente trocas posicionais entre jogadores e movimentações com critério e sentido posicional para que se garantisse o «timing» certo de resposta ao passe realizado para concluírem as jogadas”.

O jogador argentino Fernando Redondo marcou o futebol pela sua qualidade técnica, mas principalmente pela qualidade das suas decisões.

O jogador argentino Fernando Redondo marcou o futebol pela qualidade das suas decisões.

 Dando um exemplo, e não sendo logicamente uma relação linear, (Bouças, 2012) descreve que um jogador que remate muito, poderá manifestar pouco critério na sua tomada de decisão e na procura de soluções de finalização melhores para a equipa. Segundo o autor, nestes casos estão aqueles “que ainda crêem que o jogo está mais nos pés que na cabeça”. Neste contexto, para (João Paulo, 2013) em comentário a (Bouças, 2013), “jogar com critério rodeado de gente que joga aleatóriamente é complicado…” Este problema surge muitas vezes quando o jogo de uma equipa está demasiado mecanizado, faltando-lhe assim capacidade adaptativa a novas circunstâncias e portanto à realidade complexa e caótica que o jogo contempla. Assim, quando o comportamento cai fora de determinado padrão que os jogadores mecanizam, estes deixam de saber como agir. Nestes casos, a treinadora Marisa Gomes citada por (Montenegro, 2008) defende que os jogadores não têm sensibilidade nem critério.” Marisa Gomes justifica que “cada vez que uma equipa ou um jogador tem comportamentos mecanizados, estão a negar a sua capacidade de ajustamento, a dele e a dos colegas. E um treinador que faça jogadores assim, primeiro está a tirar o critério de realização dos jogadores, e portanto, é ele o “cérebro” da equipa. Mas é um cérebro que não joga. Isto não é jogo, jogo enquanto dinâmica emergente e adaptativa”. Percebemos assim que, apesar de por necessidade evidente o critério de resolução de cada situação de jogo estar condicionado a uma lógica de resolução colectiva definida pelo modelo de jogo, deverá por outro lado ter abertura suficiente para permitir uma resposta inteligente do jogador em resposta adaptativa a novos contextos e permitir ainda que da sua criatividade surjam novas solução de sucesso.

Numa prespectiva mais simplista, jogar com critério é decidir bem, é portanto, jogar bem. Porém podemos analisar o critério sob duas perspectivas. Uma mais geral, procurando um “jogar bem” no cumprimento dos princípios fundamentais e específicos do jogo de futebol descritos em (Queirós, et al., 1982), entendimento esse que deverá ser comum à generalidade das equipas e outro, de maior especificidade, relativo a cada ideia / modelo de jogo. Assim, segundo (Lobo, 2006) “o jogador é livre para agir, mas não pode agir livremente. A sua liberdade acaba quando choca com a ordem colectiva superior que rege o «jogar colectivo». Os princípios de jogo são, assim, as balizas e os limites dessa liberdade. Se não forem mecânicos, standardizados e permanentemente repetidos eles dão critério à liberdade e ao talento individual que, de outra forma, estaria desenquadrado, não teria ordem e sairia fora do conceito colectivo do «jogar», tornando-se inócuo e até subversivo em relação aos tais princípios de jogo”. Esta visão é partilhada por (Cardoso, 2006) ao referir que a táctica deve ter/ser uma referência e um critério, tornando-se específica de uma forma de jogar”. Fernando Cardoso explica que “deverá existir um critério que valorize mais umas interacções em detrimento de outras, para que a solução encontrada se situe dentro de uma determinada lógica colectiva. Os jogadores terão de possuir um afinador/critério que distinga a informação e a hierarquize num formato de leitura mais acessível num curto espaço de tempo. Entre esse turbilhão de informação que se encontra no envolvimento, o jogador deverá encontrar uma solução que faça parte de um projecto colectivo de jogo, com uma determinada lógica”. Nesta lógica, o o autor (Moutinho, 1991) citado por (Silva, 2006) acredita ser importante a análise do jogo de forma a “identificar e compreender os princípios estruturais do jogo, os critérios de eficácia de rendimento individual e colectivo, e a adequação dos modelos de preparação”, isto porque a definição de objectivos, no quadro do planeamento do treino desportivo decorre, obrigatoriamente, dos critérios de referência para o êxito na modalidade em causa. Desta forma, João Carlos Pereira em entrevista a (Pereira, 2006) defende que “a equipa para jogar bem tem de ter um guião com directrizes muito bem claras e definidas e, toda a gente tem que entender os princípios e os critérios bem definidos e, a partir daí, andamos à volta disso”.

De forma geral, o autor (Rodrigues, 2009), descreve que “nos tempos que correm parece tornar-se muito comum ouvir que um futebolista de qualidade deve passar por ter a bola e sabê-la usar com critério”. O autor reforça que “assim, mais que a posse de bola a utilização criteriosa desta ganha especial relevo nos vários momentos do jogo”. Recorrendo a exemplos específicos, tentar a progressão em situação de 2×4+GR é na maioria dos casos uma má decisão, independentemente do modelo de jogo da equipa. Por outro lado, na situação inversa (4×2+GR), será uma boa decisão acelerar a progressão, atacando rápido, procurando a criação de uma situação de finalização, mesmo que o modelo da equipa assente em grande posse e circulação da bola. Caso a situação seja bem resolvida pelos atacantes, as probabilidades de sucesso da segunda situação serão muito superiores às da primeira, na qual o risco de perda da bola é demasiado alto. Por outro lado, noutro exemplo simples e abordando o critério específico a um modelo de jogo, na marcação do pontapé de baliza um guarda-redes de uma determinada equipa decidirá bem pela saída curta dados os apoios garantidos através do posicionamento dos seus companheiros, pois assim tornam elevada a probabilidade de sucesso de uma sequente progressão, enquanto para outra equipa esse critério não será tão ajustado uma vez que concentra muitos jogadores junto ao meio-campo, e faltarão depois opções para o segundo e terceiro passe.

Deste modo, na óptica da tomada de decisão sob um referencial colectivo que um modelo de jogo propõe, torna-se fundamental para o treinador a definição clara desse modelo para que surjam critérios de êxito às decisões dos jogadores. Sendo o critério de êxito uma ferramenta usual na Educação Física, muitas vezes associado à execução motora, pode também ser aplicado nos Desportos Colectivos, de forma a direcionar os comportamentos dos jogadores em jogo, num determinado sentido que um modelo de jogo aponta.

Assim, (Carlos, 2005) conclui que “o sucesso de quem dirige uma equipa em relação ao insucesso de outros é que os primeiros evidenciam maior capacidade para levar os seus atletas a decidirem, fazendo uso da sua percepção e análise das situações momentâneas do jogo e não das tomadas de decisão de quem está de fora, neste caso o treinador. Treinar exige conduzir o jogador à independência futura, consubstanciada num critério colectivo, a que eu chamo EQUIPA”.

 “(…) com a bola buscava a baliza adversária, tocando-a com paciência e critério, até encontrar o momento e o lugar para acelerar e agredir. Se o adversário cometesse um erro posicional, descobriram-no em cinco toques, se o rival não se deixava distrair, voltavam a começar as vezes que fossem necessárias da única  maneira que se conhece: tocavam a bola para trás e tentavam por outro sector”.

Jorge Valdano sobre a equipa do Ajax de Johan Cruyff, citado por (Soares, 2009)