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Free the Kids III

“O futuro é imprevisível… todos nós sabemos que as crianças têm extraordinárias capacidades, capacidades para a inovação. Temos crianças que são fantásticas, que para mim encontraram o seu talento. Todos os miúdos têm talentos fantásticos e nós estragamo-los impiedosamente.”

Ken Robinson

Vivemos num tempo de grande sedentarismo e as crianças sofrem por isso. É um tempo de analfabetismo motor, porque elas não têm de facto uma literacia corporal adequada, porque o tempo de brincar na rua desapareceu, está em vias de extinção. As crianças hoje não têm tempo para brincar, explorar com os amigos a rua, não jogam à bola – porque uma coisa é jogar futebol, outra coisa é jogar à bola. É preciso dizer que há declínio enorme nas últimas décadas do ponto de vista de tempo e espaço para brincar. Para ter uma ideia, 70% das crianças em Portugal brincam menos de uma hora por dia. As crianças hoje têm menos tempo para brincar do que os prisioneiros nas prisões, que têm mais tempo de ócio fora das celas. Tempo, na infância, passou a ser um treino muito organizado, muito estruturado, muito limitado. Temos currículos escolares muito extensos e intensos, e a criança passa muito tempo sentada e quieta, sem mexer o corpo. É uma criança sedentária por princípio, devido ao facto de se terem criado agendas muito organizadas.” 

(Carlos Neto, 2017)

Recuperamos ainda um vídeo publicado num artigo de 2016.

“Life is not linear, it is organic. We create our lives symbiotically as we explore our talents in relation to the circumstances they helped to create for us.”

Ken Robinson

“Errar é aprender”

Como vem sendo debatido, parece hoje haver um excessivo proteccionismo com a criança, vedando-lhe, por vezes, a experimentação do erro. Simultaneamente, surge a rotulação da mesma perante esse erro, como se houvesse uma necessidade urgente de a avaliar, seriar, compartimentar e traçar os “diferentes” destinos desde muito cedo. Consequentemente é condicionada a sua aprendizagem, auto-estima, crescimento e influenciada a sua personalidade. Contrariando a história evolutiva do ser humano, perspectiva-se o erro como um problema e não como uma oportunidade de aprendizagem.

Obviamente que este não é um tema exclusivo do ensino escolar. É indiscutível a importância que a Escola deve ter no desenvolvimento da criança, porém, deve ser consciente de todos, a enorme influência que o desporto de formação tem formação da personalidade do jovem desportista. Desde logo pela motivação e escolha que a criança por ele transporta e realiza, por vezes até antagónicas à própria Escola.

Procurando outras consequências, o autor (Maciel, 2011) defende que “o erro é parte importante em qualquer processo de aprendizagem e para mim o treino é isso mesmo, um processo de ensino aprendizagem. Perceber porque se erra, alertar para o que está subjacente ao erro são aspectos determinantes, mas para isso o processo tem de permitir o erro, o problema é que muitas vezes a tensão criada pelos treinadores é tão grande que o jogador acaba por ter medo de errar, e claro, erra ainda mais, ninguém lhe dá pistas para corrigir o erro, e fica sem condições para lidar com o erro, entra numa espiral corrosiva. Além disso parece-me que os treinadores querem sempre tudo muito direitinho, têm a vertigem pelo controlo pleno das situações de treino, querem ser deuses de Laplace quando na verdade a essência do Jogo não é essa. O Jogo tem erro, tem ruído, tem inopinado e se treinarmos tentando diminuir isto ao máximo estamos a esterilizar uma realidade que não pode ser colocada num tubo de ensaio. Se vivido in vitro os jogadores errarão menos certamente, mas tornar-se-ão muito menos criativos e sucumbirão perante as novidades e imponderáveis que emergem da estrutura acontecimental do jogo. Tornar o erro fecundo, saber lidar com o erro e criar contextos que não o hipotequem é também uma forma de potenciar a criatividade dos jogadores. Além disso há a intervenção do treinador, que por vezes pode servir-se do erro como catalisador das aquisições que pretende, e tal intervenção poderá servir não somente para quem erra como também para os restantes jogadores. E aqui importa também salientar aquele que é um dos grandes propósitos da Periodização Táctica, o desenvolvimento concomitante de um saber fazer com um saber sobre esse saber fazer, pois é esse saber sobre esse saber fazer que vai levar o jogador a tomar consciência que errou, ou que determinado tipo de ajustamento ou resposta que dá ao contexto, segundo aquele saber fazer é desajustado. Mesmo que tal não fosse noutro jogar, ou relativamente àquilo que poderia ser anteriormente (com outro treinador) uma prioridade, mas que agora se assume como um erro. O que reforça a dimensão relativa do erro e a necessidade de sintonização com o que se pretende. Por exemplo a maior parte das pessoas diz “que para trás anda o caranguejo” e quando vêm um passe atrasado abanam logo com a cabeça, mas isso em determinadas circunstâncias pode ser algo que revela um critério congruente com aquilo que eu posso desejar, logo não valorizo como erro”.

Olhar para o erro/fracasso como uma derrota é meio caminho andado para o surgimento de outros problemas, desde a baixa da auto estima à desistência. Erros e fracassos deveriam, pelo contrário, ser considerados oportunidades de aprendizagem. Algumas questões importantes se podem colocar com esse objetivo: O que correu mal? O que poderia ter sido feito para o evitar? Se este caminho não foi bem escolhido, quais são as alternativas possíveis? Quais são as vantagens e os inconvenientes de cada uma? Como se pode desdobrar o objetivo que não foi atingido em objetivos intermédios mais exequíveis? Diz-se que “errar é humano”. Aceitar os erros também o deve ser. Não uma aceitação passiva, mas uma aceitação ativa centrada no desejo de aprender e de melhorar, conjugada com os verbos “analisar”, “tentar”, “persistir” e “conseguir”.”(Azenhas, 2011)

Free the Kids

A propósito da apresentação de Sir Ken Robinson sobre a actual educação das crianças, que publicámos neste espaço:

www.sabersobreosabertreinar.com/2015/03/ensino-individualidade-criatividade.html

Uma recente campanha, baseada num estudo realizado em dez países, a mais de 12000 pais de crianças entre os 5 e os 12 anos, trouxe esta conclusão que reforça a visão de Robinson.

“O autor (Carvalhal, 2010), baseando-se em Sir Ken Robinson, explica que “existe a necessidade de construir um novo Paradigma educacional, centrado no descobrir e desenvolver as competências individuais de cada ser humano, criticando o paradigma vigente relativamente à educação e à forma como “produzimos” cada vez mais Tecnocratas. (…) Por aqui podemos aferir a importância de desenvolver os sentidos e de experimentar as sensações em contacto com o meio (perspectiva ecológica) de forma a testarmos todas as nossas capacidades fazendo do ensaio/erro uma autodescoberta. A individualidade é assim um conceito obrigatoriamente agregada à noção de criatividade: o que vivencio enquanto jogador potencia as minhas qualidades, exponenciando-as; faz com que codifique de determinada forma o significado do que vivi, determinando também a conexão que farei com episódios semelhantes no futuro. Em suma, a autodescoberta é resultado de UM percurso singular, percurso, esse que poderá exponenciar as minhas CAPACIDADES (únicas), através da minha INTELIGÊNCIA. Só esse processo bem singular e CONSCIENTE de autodescoberta me tornará um criativo ÚNICO E NÃO REPRODUTÍVEL. Por isso, Sir Ken Robinson referiu que “As comunidades humanas dependem de uma diversidade de talentos e não de uma ideia singular de capacidade. O mais importante dos nossos desafios é restabelecer a nossa noção de capacidade e inteligência”. A noção de capacidade e inteligência de cada um!”.

“Joguei à bola todos os dias da minha vida desde os três anos”.
Lionel Messi

Horst Wein

Faleceu Horst Wein, antigo seleccionador de Hóquei em campo, treinador de Futebol de Formação, formador de treinadores, e autor de várias obras dedicadas ao ensino do jogo, das quais destacamos “Fútbol a la medida del niño” publicado pela Federação Espanhola, “Developing Game Intelligence in Soccer“. Detentor de um impressionante currículo, destacamos porém, as ideias que procurava transmitir.

Em entrevista à revista DOZE em 2010 explicou que no Futebol “tudo começou quando me encontrava  a estagiar com a selecção de hóquei em campo, perto do Nou Camp, o estádio do Barcelona. Carlos Rexach – antigo jogador, treinador e director-técnico dos “blaugrana”, n.d.r. – viu os treinos, começámos a falar e acabei por estar uma semana a ensinar os meus métodos aos treinadores do clube.  Os meus livros são publicados pela Federação Espanhola há 20 anos. O antigo treinador de Xavi, actual jogador do Barcelona, reconheceu o meu trabalho e fiquei satisfeito quando me ligaram a contar que Guardiola tinha comprado os meus livros”. Wien na mesma entrevista, relatou ainda que ficou também muito feliz “quando Arrigo Sacchi – treinador de clubes como o AC Milan, n.d.r – recomendou o “Futebol a la medida del niño”, um dos meus livros, e isso é sinal que o meu trabalho é importante”.

Horst Wein.

Horst Wein.

Participou em várias acções de formação em Portugal, mas faz agora precisamente dez anos, que falou na Universidade Lusófona num seminário internacional dedicado ao treino de jovens futebolistas. Acoplado ao recém sucesso de José Mourinho, vivia-se um momento de ruptura na história do treino dos Desportos Colectivos no qual a essência da Periodização Táctica do professor Vítor Frade finalmente conquistava a confiança de  muitos treinadores e aspirantes à função. Paralelamente a Frade, vários autores como Wein, travavam a mesma batalha ideológica, na qual elegiam a decisão, a inteligência, consequentemente a táctica como dimensão estruturante do jogo e do treino dos desportos colectivos. No entanto, muitos agentes desportivos e até consagrados professores universitários, não perceberam naquele momento a mensagem do autor alemão, o que revelou o carácter transgressivo das suas ideias face ao paradigma vigente.

Modelo competitivo proposto por Horst Wein.

Modelo competitivo proposto por Horst Wein.

Horst Wein teve a particularidade de dedicar a sua obra à especificidade do Futebol de Formação. Entre muitas ideias centradas no desenvolvimento da inteligência táctica e da criatividade da criança, salientamos a defesa dos valores do Futebol de Rua, a sua proposta de progressão formativa e competitiva do jovem futebolista, o treino orientado para o jogo, a defesa do protagonismo do jogador no treino e no jogo e a apresentação de problemas e não de soluções pelos treinadores, ao que a Periodização Táctica chamou Descoberta Guiada. Neste enquadramento foi também o criador do jogo reduzido que denominou por Mini-Futebol, jogado originalmente em situação de 3×3 sobre 4 mini-balizas, o qual propunha maior contacto com a bola, permanente participação do jogador no centro de jogo e o consequente desenvolvimento da inteligência e lateralidade.

Jogo de Mini-Futebol proposto por Horst Wein.

Jogo de Mini-Futebol proposto por Horst Wein.

Passados dez anos, ideias que parecendo hoje óbvias para muitos, foram na realidade de uma importância tremenda pela ruptura que manifestaram e evolução que proporcionaram ao treino do Futebol. Outras ideias, aguardam no entanto, uma ainda maior mudança de mentalidades, nomeadamente ao nível de quem define a filosofia, organização geral e os modelos competitivos do Futebol de Formação. No fundo, orientadoras das prioridades no desenvolvimento da criança em geral, e no jovem futebolista em particular.

“No futebol, um grama de tecido cerebral pesa mais que cem gramas de músculo.”

Horst Wein

“O miúdo deve ser o maestro, o descobridor. Um bom professor deve ajudar os seus alunos a descobrir o que eles pretendem. O jogo é que deve ensinar-te: não o treinador.”

Horst Wein

“A natureza decreta que as crianças devem ser crianças antes de se tornarem adultos. Se tentarmos alterar esta ordem natural, elas vão chegar prematuramente a adultos, mas sem conteúdo nem força.”

Jean-Jacques Rousseau citado por Horst Wein

Ensino, Individualidade, Criatividade…

Antigamente, sobravam tempo, espaço e oportunidades para as crianças jogarem longe das regras dos adultos. Nesses espaços não havia limite de toques ou caminhos proibidos. Muito menos caminhos obrigatórios.

Paulo Sousa

Animação adaptada de uma palestra dada na RSA por Sir Ken Robinson.

“Jogar de forma destruturada, em espaço livre, com reduzida supervisão é o berço de qualquer criança. Para que a próxima geração cresça saudável, equilibrada e apta para beneficiar da sua educação, devemos assegurar que as crianças vão para a rua jogar”.

Sue Palmer, escritora e especialista em crianças, citada por (Cooper, 2007)

A Descoberta Guiada surge na mesma linha do método psicogenético, um ideal educativo criado por Lauro de Oliveira Lima, estruturado a partir das descobertas científicas de Piaget. Este método defende que “O professor não ensina; ajuda ao aluno a aprender”. Segundo (Bello, 1995), “professor deve deixar de lado sua postura de “professor-informador” para assumir a postura de “professor-orientador“, assim como um “técnico de Futebol”, que organiza a equipa em campo. A discussão entre todos é a didáctica fundamental”, e citando (Lima, 1972), “trabalho, deixando de ser manual para ser intelectual, deixando de ser individual para ser grupal, deixando de ser linha de produção (linear) para ser uma decisão (circular), transformar-se-á em discussão”. Assim sendo, o “indivíduo irá aprender através de actividades planeadas pelo professor como, por exemplo, pesquisas, leituras, passeios, etc., sempre orientados pelo professor. Atentando-se que estas actividades são sempre grupais para que todos possam educar a todos, construindo o conhecimento na interacção entre eles”. Bello fundamenta a necessidade deste método de ensino com a imprevisibilidade que o futuro nos traz, portanto há que preparar o indivíduo para resolver situações-problema. Bello explica através de um exemplo prático, citado pelo professor Lauro de Oliveira Lima: “as criança estavam utilizando o escorrega com perfeição, subindo pela escada e descendo pelo escorrega. O professor Lauro sugeriu que a professora estimulasse o inverso: subir pelo escorrega e descer pela escada. Com esta atitude a professora estará incentivando a criança a se superar, a sair daquele estágio em que se encontra para alcançar um outro nível de complexidade de desenvolvimento. Se as crianças estavam cumprindo a tarefa de subir pela escada e descer pelo escorrega com perfeição, elas estavam acomodadas naquele nível de desenvolvimento. Quando a professora sugere uma tarefa de complexidade superior ela está ajudando as crianças a assimilar um novo nível de equilíbrio”. Com este exemplo, Bello expõe que “a professora poderia “mostrar como se faz” para as crianças, o que não teria nenhum valor no esforço de conquista da nova aprendizagem a ser enfrentada pelos alunos. Portanto, a aula expositiva (conhecida no jargão pedagógico como “aula de salivação”) é incompatível com o esforço para inventar que deveria estar sendo empreendido pelos alunos. Para Lauro de Oliveira Lima todo desenvolvimento requer esforço para que se possa construir estruturas ou estratégias de comportamento cada vez mais complexas”. José Bello vai mais longe e sustenta que “a aula expositiva torna-se então quase um “anti-estímulo” à criatividade ou uma ofensa contra o aluno, já que pressupõe uma incapacidade de interpretação e leitura de mundo por parte dele. O surgimento do livro condenou a aula expositiva à morte”. O treinador (Mourinho, 2009), corroborando a aprendizagem através da dinâmica de grupo ao invés da aula expositiva, explica que, em conversa com ex-colegas universitários, “no outro dia, quando falámos lá no ISEF, chegámos à conclusão que aprendemos muito mais entre nós e nos intervalos entre as aulas”. Num programa televisivo não identificado, o psiquiatra português Daniel Sampaio reforça esta ideia através das mudanças sociais e tecnológicas das últimas décadas. Segundo Sampaio, até aos anos 80/90 as crianças cresciam perante fontes de informação limitadas e essencialmente expositivas como eram por exemplo, os poucos canais de televisão disponíveis. Após a revolução tecnológica que a Internet, os computadores, os tablets, os próprios telefones, a televisão por cabo e a sua enorme oferta trouxeram, as crianças tornaram a descoberta do conhecimento um processo de enorme interactividade. Porém, Daniel Sampaio explica que os métodos de ensino não acompanharam esta evolução e consequentemente tornou-se muito difícil manter crianças concentradas em aulas de uma ou duas horas nas quais o professor debita o conhecimento e o aluno interage e descobre pouco.

“O treinador é importantíssimo por todos os conhecimentos que poderá transmitir. Mas se fizer mal as coisas, será mais interessante juntar as crianças e deixá-las organizar a sua própria actividade. Verá que se dividirão por duas equipas e jogando descobrirão o caminho.”

(Bouças, 2013)