Quantidade não significa qualidade II. Um contra-ataque em 5×2+GR.

Memórias do Futebol de Rua. O golo ao ângulo.

A infância e adolescência imprimiu-nos memórias incríveis. Num plano de imaginação e criatividade infindável, as brincadeiras e os jogos que realizávamos na rua tinham um poder fenomenal para nos fazer sonhar. O futebol, culturalmente o jogo de maior impacto na maioria das sociedades, absorvia muitas crianças nesses contextos, fazendo-as visualizar feitos incríveis no próprio jogo da rua. Porém, em paralelo, também um dia num grande estádio numa final de uma grande competição.

Mas essa imaginação levava-nos a sonhos concretos. Na galeria dos mais notáveis, tínhamos o golo em pontapé de bicicleta, o golo em em remate “de primeira”, a jogada em que driblávamos todos os adversários e marcávamos ou assistíamos, a intercepção imperial sobre a linha de golo, o desarme limpo em tackle a um adversário que se preparava para ficar isolado, o túnel perfeito, o drible que desorientava por completo o adversário, a defesa do guarda-redes completamente em voo que interceptava um remate extraordinariamente colocado, e claro está… o fenomenal golo ao ângulo da baliza. Indiscutivelmente um local místico do campo de futebol. Símbolo da perfeição, de lendas e de mitos.

O golo ao ângulo da baliza ou lá próximo, era até antecedido por uma sensação de sucesso na execução de quem rematava, imediatamente após a bola sair do seu pé. Era como que uma espécie de premonição do que estava para acontecer. E nesse caso, no mínimo a bola encontrava o poste ou a barra da baliza, o que não providenciando eficácia, seria na mesma espectacular.

Na rua, ou no jogo de rendimento, este golo lendário promove uma sensação de admiração e êxtase entre jogadores e adeptos, pois é visto como um momento de pura genialidade. Assim, é muitas vezes lembrado e revivido, tornando-se parte da história e da mitologia do jogo.

O Celtic de Jock Stein e a histórica vitória do Jamor

A primeira Taça dos Clubes Campeões Europeus ganha por um clube Britânico aconteceu em Lisboa, mais precisamente no Estádio do Jamor, a 25 de maio de 1967. No Diário de Notícias podia-se ler: “Uma das mais belas tardes do Jamor: o “duche escocês” apagou o Inter… Um jacto que durou 90 minutos e deslumbrou milhões de espectadores”.

O Celtic enfrentou a então poderosa equipa italiana do Inter de Milão, liderada pelo revolucionário Helenio Herrera, treinador argentino-italiano conhecido pela sua abordagem táctica inovadora, descrita como “catenaccio”. Herrera foi uma figura icónica no futebol, tendo conquistado vários títulos importantes durante a sua carreira de treinador. No entanto defrontavam-se dois treinadores lendários. O Celtic, liderado por Jock Stein, conquistou a vitória por 2-1, tornando-se então o primeiro clube britânico a vencer a competição. Este foi um momento histórico não só para o futebol escocês, mas para toda a Grã-Bretanha. Mas perante tal confronto de culturas, a vitória do Celtic foi celebrada em toda a Europa.

Isto porque o Celtic era visto como um clube representante do “futebol dos homens comuns”, uma vez que sua equipa era principalmente composta por jogadores da própria Escócia e de outras partes das Ilhas Britânicas, em contraste com o Inter de Milão, que contava com uma equipa de jogadores icónicos internacionais. Além disso, a vitória do Celtic quebrou a hegemonia dos clubes italianos, espanhóis e portugueses, que vinham a dominar a competição até então. Isso trouxe uma sensação de renovação e esperança para os fãs do futebol de outras partes da Europa e culturas, que se viram representados por um clube menos tradicional nestes contextos e menos poderoso.

Deste modo, a disparidade cultural e táctica refletiu-se no estilo de jogo apresentado pelas equipas. O Celtic apresentava uma abordagem mais ofensiva e apaixonada, enquanto o Inter de Milão jogava numa estratégia mais cautelosa e defensiva. Portanto, o confronto não foi apenas sobre futebol, mas também sobre diferentes filosofias e ideologias que cada clube representava. Deste modo, a vitória do Celtic, derrotando na final uma equipa tão forte como o Inter de Milão com uma exibição apaixonada, emocionante e determinada, contribuiu para que a sua vitória transcendesse fronteiras e rivalidades clubísticas.

“Se algum dia vão ganhar a Taça dos Clubes Campeões Europeus, então este é o dia e este é o lugar. Mas não queremos apenas ganhar esta taça, queremos fazê-lo a jogar bom futebol – para fazer os neutrais contentes por termos ganho, contentes por se lembrarem como o fizemos.”

(Jock Stein em discurso à equipa antes do jogo)

O Manchester United de Matt Busby

No passado dia 6 de Fevereiro fizeram-se 66 anos desde o terrível desastre aéreo que a então equipa do Manchester United sofreu, no qual perderam-se 23 vidas, das quais 8 eram jogadores da primeira grande equipa de Matt Busby. Reconhecido como um incrível líder de valores humanos excepcionais, Busby ergueu-se das lesões e tremenda amargura sentida e voltou a reconstruir a equipa levando-a novamente ao sucesso. Sucesso que ficou marcado com a conquista da Taça dos Campeões Europeus frente ao Benfica em Wembley, passados 10 anos do acidente, constituindo o Manchester United como o primeiro clube Inglês a vencer a competição.

O video, extraído do filme The Three Kings,  relata uma das grande histórias que o jogo viveu. Aqui publicamos a primeira parte, ficando a promessa de publicarmos a segunda brevemente.

“O desastre aéreo de Munique tornou-se parte da alma do Manchester United. Está lá enraizado com o sonho de Matt Busby quando ele estava nas ruínas bombardeadas de Old Trafford em 1945 e na realização desse sonho com os Busby Babes. No seu cerne há uma paixão e uma determinação inabalável; uma paixão não apenas para vencer, mas para vencer com estilo, para jogar o belo jogo, para atacar e entreter; e uma determinação inabalável para lutar contra todas as probabilidades. Ambos estavam evidentes naquela primeira temporada após Munique, quando, para espanto de grande parte do mundo do futebol, a equipa que eu agora ia ver regularmente com os meus amigos em vez do meu pai terminou como vice-campeã, atrás do Wolves. Estavam lá quase uma década depois, no Bernabéu, quando um Bill Foulkes envelhecido e lesionado saiu a galope da defesa para marcar o dramático golo tardio contra o grande Real Madrid, colocando o United na Final da Taça Europeia; e lá na própria final, em Wembley, quando Bobby Charlton saltou mais alto do que alguma vez o tinha visto saltar para marcar o golo inaugural, e na ala brilhante do jovem John Aston, que desfez a defesa do Benfica e contribuiu muito para selar a vitória que finalmente tornou o United campeão da Europa.”

(David Hall, 2008)

Os princípios de jogo e a necessidade dos mesmos na resolução de uma situação de contra-ataque 2×2+GR

“Romário só tinha uma tarefa defensiva”

Momentos, Sub-Momentos e Princípios de Jogo. Um exemplo prático.

O contra-ataque, e… ou melhor… ou, o ataque rápido II

“Segundo Garganta (1997) e Castelo (2004) este Método de Jogo Ofensivo apresenta as características fundamentais que foram referidas para o Contra-Ataque. A diferença estabelece-se fundamentalmente no facto do contra-ataque procurar assegurar as condições mais favoráveis para preparar a fase de finalização antes da defesa contrária se organizar de forma efectiva. Enquanto que o Ataque Rápido terá de preparar a fase de finalização já com a equipa adversária organizada eficientemente no seu método defensivo.”

(José Lopes, 2007)

Como prometido na semana passada, hoje voltamos a falar do contra-ataque e de ataque rápido. Num artigo de 2019 abordámos o tema, explicando sob a nossa visão e sistematização do jogo, as diferenças entre ambos. Nesse momento escrevíamos:

“A relevância deste assunto, prende-se, para nós, com a confusão geral em que mergulhou, em trabalhos académicos e entre treinadores e jogadores, tal como o próprio tópico da discussão ilustra. Deste modo, o assunto assume especial importância uma vez que se trata de entendimento e conhecimento do jogo, portanto, questões fundamentais no papel do treinador.”

Como referido, tornou-se um lugar comum a associação, tantas vezes ouvida entre ataque rápido e contra-ataque, que acreditamos ter surgido de uma visão clássica do jogo, a qual apenas contemplava as “fases” ofensiva e defensiva, e os coorrespondentes métodos de jogo ofensivos disponíveis nos quais eram agrupados o “ataque organizado ou posicional”, o “ataque rápido” e o “contra-ataque”. Com a evolução para uma visão mais completa e complexa do jogo, contemplando quatro momentos de jogo, surgiu uma nova necessidade de organizar estas ideias. Foi o que procurámos fazer quando propusemos uma sistematização que ia além dos quatro momentos, contemplando então mais doze sub-momentos.

Porém, a mais simples e básica distinção entre ambos não foi sugerida por nós. Há muito que era transmitida nalgumas obras, Universidades e cursos de treinadores, por quem procurava pensar, enquadrar e justificar os diferentes comportamentos em jogo. O Contra-Ataque, como o próprio nome indica, pressupõe a recuperação da bola. Deste modo, tem obrigatoriamente de ser enquadrado no momento de Transição Ofensiva. E como surge imediatamente a seguir à perda de bola e desorganização defensiva de uma equipa e a recuperação de bola e procura de aproveitamento da desorganização defensiva adversária da outra, para nós, o Contra-Ataque continua a ser momento de Transição Ofensiva. Particularmente, um sub-momento, pois torna-se algo muito comum no jogo e uma forma altamente directa de chegar à finalização. Por outro lado, o ataque rápido, não pressupondo recuperação de bola, enquadra-se na Organização Ofensiva. Anteriormente como método, hoje, tendo em conta a evolução da visão sobre o jogo, como um princípio passível de ser adoptado para uma equipa passar do sub-momento de Construção para o sub-momento de Criação. Ou seja, à excepção de ataque à profundidade em jogo longo directo, só em raras situações que implicam tremendos erros defensivos adversários, é que um ataque rápido permitirá que uma situação passe de construção a finalização. Deste modo, enquanto princípio, tal como outros mais, a sua potenciação e utilização, estarão dependentes da ideia de jogo de cada treinador, ao contrário do Contra-Ataque, que enquanto sub-momento torna-se um comportamento transversal a praticamente todas as equipas.

Assim sendo, a situação que trazíamos na semana passada, enquadramos como ataque rápido porque surge em Organização Ofensiva, mais precisamente em Construção. Uma decisão permitida por um conjunto de princípios como a posse e circulação de bola, a atracção da pressão adversária que em conjunto com a profundidade provocada à última linha adversária por Haaland, Doku e Foden acabou por permitir espaço entre-linhas para o apoio frontal de Álvarez e o passe vertical de Ederson, que permitiram iniciar o ataque rápido.

Finalizando, trazemos mais dois exemplos que sucederam num jogo da selecção portuguesa de Sub17, e que possibilitaram mesmo dois golos. O jogo é de 21 de Novembro de 2023.

Na primeira situação, estamos então perante um ataque rápido, pois a equipa estava em Organização Ofensiva, sub-momento de Construção, mais especificamente num lançamento lateral ofensivo. A mobilidade que efectuou provocou espaço ao adversário no interior do seu bloco, e perante isto o lançamento tornou-se um passe vertical para o espaço entre-linhas, permitindo imediatamente à equipa ficar num ataque de 3×3+GR. Por outro lado isto reforça a nossa posição, a qual refuta as bolas paradas como um quinto momento do jogo. Isto porque se há bolas paradas ofensivas que nos permitem finalizar, outras criar situações de finalização, e outras ainda, como esta, que possibilitam passar do sub-momento de Construção para o de Criação. Estão portanto claramente integradas nos sub-momentos do jogo.

Na segunda situação, a equipa recupera a bola no seu meio-campo, logo, momento de Transição Ofensiva, consegue sair da pressão, possibilitando uma situação de contra-ataque, também de 3×3+GR.

Portanto, situações com alguma semelhança em espaço, tempo e número, e nos princípios que permitirão eficiência e eficácia à sua resolução. No entanto, antecedidas de momentos e comportamentos diferentes, o que acreditando na importância da Articulação de Sentido entre sub-momentos e entre momentos para que o todo tenha lógica e coerência, leve a que seja igualmente importante que o treino exija isto, e que a operacionalização de cada uma das situações parta então de contextos e princípios de jogo diferentes.

“Na transição defesa-ataque o objetivo fundamental é, caso existam condições para o efetuar, aproveitar a desorganização posicional do adversário e progredir em direção à baliza adversária, evitando ao máximo interrupções para criar, o mais rápido possível, situações de golo.”

(Carlos Queiroz, 1983)

Um contra-ataque, ataque rápido ou ambos?

Hoje trazemos uma situação ofensiva do jogo Manchescter City x Liverpool desta época. A equipa de Manchescter encontra um caminho para chegar à baliza adversária. Porém, uma questão se levanta: estamos perante uma situação de contra-ataque, de ataque rápido ou ambos são válidos em simultâneo?

Na próxima semana trazemos a nossa perspectiva sobre tema.

A importância do desenvolvimento do pé não dominante

Uma justificação mais profunda sobre a importância do desenvolvimento do membro inferior não dominante ficará para mais tarde e para o tema Metodologia do Saber Sobre o Saber Treinar. No entanto, tal como noutros temas, iremos abordá-lo sempre que uma situação da actualidade nos demonstre a sua importância.

É o caso da acção que trazemos de Di María, até porque seria difícil encontrarmos um exemplo melhor. Pelo jogador em causa e pelo contexto. É conhecida a mestria do Argentino na execução com o seu pé dominante, o esquerdo. Faz praticamente tudo com ele, inclusive cruzamentos e remates de trivela, mesmo quando a maioria dos jogadores, com maior ou menor dificuldade, sentiria-se mais confortável em recorrer ao pé direito. Na situação em causa, o remate de trivela, ou com a face externa do pé esquerdo, seria extremamente difícil dada a elevação da bola e a orientação corporal de Di María. Perante um enquadramento privilegiado com a baliza, para fazê-lo rapidamente e evitar a intercepção adversária, o remate teria que ser de pé direito. Foi o que sucedeu, e numa acção rara do argentino, acabou por revelar que o seu pé não dominante não é inábil.

Mas o mais importante, é percebermos a importância da lateralidade, neste caso, da funcionabilidade dos dois pés, e mais que isso, que eventualmente o não dominante atinja um nível similar ao dominante. Até porque, e regressando ao exemplo, mesmo para um destro o remate naquela situação apresentava um nível de dificuldade elevado.

“Da análise dos resultados destes estudos emergem duas ideias: que a capacidade de utilização dos dois pés, com semelhante proficiência, aumenta a qualidade de desempenho do jogador, e ainda que o aumento de proficiência do pé não preferido resulta de uma exercitação direcionada para esse efeito. Todavia a qualidade técnica de um jogador não pode ser analisada de uma forma isolada e descontextualizada do jogo, pois, é aí que se encontram as adversidades e variabilidades no espaço e no tempo que permitem ao jogador melhorar a sua performance (Garganta, 2006).”

(Edgar Cambão, 2014)

Franz Beckenbauer

“Num terraço em Lisboa, Franz Beckenbauer faz o milésimo discurso da sua vida. “Eu amava Lisboa antes mesmo de ter estado aqui,” revela o alemão mais celebrado da atualidade com aquele tom sereno de canto bávaro, “porque aos vinte anos li toda a obra de Erich Maria Remarque, algumas delas várias vezes, e amei A Noite em Lisboa.” Até mesmo os observadores mais experientes de Franz ficam surpreendidos. Poucas pessoas leram algum dos romances de Remarque além de Nada de Novo no Front, e, de qualquer forma, esperava-se que Beckenbauer produzisse um hino suave a Portugal. O Kaiser encantou mais uma audiência.”

(Simon Kuper, 2011)

Franz Beckenbauer, também conhecido pela alcunha “Der Kaiser” (O Imperador), teve uma carreira brilhante como jogador e treinador, tornando-se uma figura lendária no Futebol e irónica do Desporto, reverenciado pelas suas qualidades excecionais como jogador, em particular pela sua revolucionária visão táctica que deixou uma marca duradoura no jogo de Futebol.

Como exemplo da lenda em que se tornou, quando alguém na “Rua” ou no Futebol de Formação de um clube se destacava como um Defesa-Central que procurava progredir com bola e contribuir na construção do jogo ofensivo da equipa, tendo sucesso ou não, era rapidamente baptizado de “Beckenbauer”. Portanto, de forma elogiosa ou irónica.

De acordo com (Simon Kuper, 2011), o Futebol da Alemanha “ainda moldado pela ética nazi, produzia principalmente Kämpfer, ou lutadores, como a equipa alemã que venceu o Campeonato do Mundo na lama de Berna em 1954”. O autor relata que “Beckenbauer é a fénix das cinzas da Alemanha Nazi. Concebido no inverno mais sombrio do país, nasceu numa Munique bombardeada em Setembro de 1945, a ‘Hora Zero’ da Alemanha. Seu pai trabalhava nos correios. Os Beckenbauer não comiam carne frequentemente. Franz trabalhava como agente de seguros e assinou um contrato semi-profissional com o Bayern de Munique, na época um clube local de dimensões modestas”. No Bayern rapidamente se destacou como um talentoso defensor. Ao longo da década de 1960, ajudou o Bayern a conquistar vários títulos, incluindo três campeonatos da Bundesliga e uma Taça das Taças, antiga competição da UEFA.

Como explica (Jonathan Wilson, 2016), Beckenbauer, tal como Netzer, foram produtos de um crescimento “da autonomia cultural” que naquele momento se vivenciou em vários países, entre os quais Alemanha e Holanda, e que segundo o autor “acabou conduzindo ao pluralismo de estilos de vida”, com o Futebol a fazer parte desse movimento cultural mais amplo. Também (Simon Kuper, 2011) explica a liderança dos contemporâneos Johan Cruyff e Franz Beckenbauer como “produtos do seu tempo”, tal como os “estudantes nas ruas de Paris em 1968”. Kuper descreve que “eles eram bebés do pós-guerra impacientes por assumir o poder. Os baby boomers queriam reinventar o mundo. Não se submetiam à deferência”. O autor acrescenta ainda que “Cruyff e Beckenbauer não assumiram apenas a responsabilidade pelos seus próprios desempenhos, mas também pelos de todos os outros. Eles eram treinadores em campo, apontando e dizendo constantemente aos colegas de equipa para onde se mover. Eles ajudavam os treinadores a escolher as equipas e a sua organização. Não se submetiam. Exigiam uma grande quota do sucesso no jogo”.

Porém, regressando à comparação com o Alemão Günter Netzer, que detinha um pensamento político de esquerda, (Jonathan Wilson, 2016) acrescenta que embora este “fosse a figura abertamente mais rebelde, especialmente em termos de estilo de cabelo e modo de se vestir, Beckenbauer era quem tinha a vida pessoal mais turbulenta. A sua imagem, no entanto, graças a seu apoio público ao partido conservador CSU — e ao fato de jogar no Bayern — era percebida como mais convencional”. Kuper reforça que fora do campo, Franz “personificava a ambiciosa República Federal jovem e orientada para o dinheiro. Nunca foi um hippie ou de esquerda, Beckenbauer era um burguês instintivo”. Mais tarde, como dirigente, foi mesmo criticado pela esquerda alemã e até internacional pelo receio de vir a presidir à UEFA e dar maior protecção aos grandes clubes europeus.

Como jogador, Beckenbauer personificou a elegância e a inteligência dentro de campo. A sua versatilidade era notável, destacando-se tanto na defesa quanto no meio-campo, uma qualidade que o tornou verdadeiramente excecional. Dotado de uma leitura e interpretação do jogo extraordinárias, Beckenbauer não era apenas um defensor sólido, mas também um construtor de jogo magistral. Distinguia-se pela qualidade dos seus passes. Ora longos, ora curtos, mas normalmente, verticais. A sua capacidade de ler as situações, antecipar o pensamento  adversário e iniciar jogadas ofensivas fez dele um jogador completo.

Contudo, foi na sua abordagem funcional e posicional que Beckenbauer deixou a sua grande marca. Como jogador do Bayern de Munique e da seleção alemã, ele desafiou as convenções sobre um Defesa-Central. Em vez de se limitar a uma função puramente defensiva, Beckenbauer frequentemente progredia para o meio-campo, actuando como um médio disfarçado de líbero, influenciado o Futebol Alemão e até internacional nas décadas seguintes. Para (Jonathan Wilson, 2016), o alemão “foi tão essencial para o desenvolvimento da Alemanha Ocidental quanto Cruyff tinha sido para a Holanda. Ele actuou como líbero pelo Bayern desde o final dos anos 1970, encorajado por Čajkovski, que crescera num ambiente de valorização dos defesas centrais que sabiam jogar (não é coincidência que o primeiro grande líbero do Ajax, Velibor Vasović, tenha sido produzido pela mesma cultura)”. Posteriormente, na Alemanha, Lothar Matthäus, Matthias Sammer, Thomas Hässler, Olaf Thon seguiram-lhe as pisadas nessa função, enquanto Gaetano Scirea, Franco Baresi e Ronald Koeman são uns dos grandes destaques a nível internacional pelas mesmas razões. Hoje, o jogo do John Stones no Manchester City de Guardiola apresenta semelhanças interessantes.

A sua carreira atingiu o auge na década de 70, quando capitaneou a seleção alemã ocidental na vitória do Campeonato do Mundo de 1974, disputado em casa. A liderança e a abordagem táctica revolucionária de Beckenbauer foi fundamental para o sucesso da Alemanha Ocidental nesse Campeonato do Mundo, onde não apenas conquistaram o título, mas a par do outro finalista, a Holanda capitaneada por John Cruyff, redefiniram também os padrões que o jogo ia vivenciando até à data. Nesse dia, o duelo entre Alemanha e Holanda, e particularmente entre Beckenbauer e Cruyff, foi dos mais icónicos que o Futebol protagonizou.

A sua qualidade a organizar o momento defensivo, na construção do futebol ofensivo da equipa e até mesmo a finalizar destacou-o como um dos maiores líderes da história do Futebol. Além do sucesso internacional, Beckenbauer continuou a brilhar a nível de clubes. Transferiu-se para o New York Cosmos na Liga Norte-Americana de Futebol (NASL), onde inclusive acabou por jogar com Cruyff, clube pelo qual adicionou mais troféus à sua colecção.

Após o fim da sua carreira como jogador, Beckenbauer embarcou num também bem-sucedido papel de treinador. Comandou o Bayern de Munique e a seleção Alemã, levando-a à final do Campeonato do Mundo de 1986, derrotada pela Argentina de Maradona e posteriormente à vitória no Campeonato do Mundo de 1990, no qual a Alemanha terminou a prova invicta. De acordo com (Simon Kuper, 2011), “naquela noite em Roma, enquanto os seus jogadores ficavam loucos, Beckenbauer passeava sozinho pelo campo, a medalha de ouro ao redor do pescoço, olhando ao seu redor como alguém que passeia o seu cão. Mais tarde, explicou que estava a dizer adeus ao futebol”. Contudo, o autor expõe que afinal “foi mais um Auf Wiedersehen: até logo. Logo voltou na sua terceira encarnação como político do futebol. Sozinho entre os antigos grandes do futebol, ele nasceu para o papel. (…) Apesar de ser alemão, Beckenbauer é querido em todo o mundo”. Entre outras papéis, tornou-se presidente do Bayern de Munique e envolveu-se de forma importante na organização do Campeonato do Mundo da Alemanha em 2006.

Para percebermos a dimensão da figura em que Beckenbauer se tornou, (Simon Kuper, 2011) explica que na Alemanha deixou de precisar de “se aliar ao establishment. É o establishment que tenta se aliar a ele. Todos os políticos alemães tentam associar-se ao Kaiser. Quando Beckenbauer visitava o seu antigo fã Gerhard Schröder na chancelaria, e Schröder abria uma garrafa de vinho tinto, ficava claro qual dos dois homens precisava mais do encontro. Quando Schröder implementou uma grande reforma fiscal, o comediante alemão Harald Schmidt brincou: “E a maior surpresa é: sem a ajuda de Franz Beckenbauer!””.

Beckenbauer trouxe uma mentalidade inovadora para o jogo, introduzindo conceitos tácticos que influenciaram posteriores gerações de jogadores e treinadores, subindo a fasquia ao futebol moderno. Este legado transcende a sua carreira como jogador, destacando-se como uma das mentes mais brilhantes e influentes do desporto.

“Ele sempre, naquela época e posteriormente, tomou cuidado em se dissociar das deficiências do futebol alemão pós-Kaiserzeit. Dias antes da final, conversando com amigos, disse em voz alta os nomes de vários dos seus jogadores e deu uma gargalhada. “O que foi tão engraçado?” perguntaram-lhe. “Pensem só,” disse Beckenbauer, “em um dia ou dois esses rapazes poderiam ser campeões do mundo!” Eles não foram: perderam para a Argentina. “Felizmente, porque se tivéssemos ganho, teria sido uma derrota para o futebol”, escreveu Beckenbauer mais tarde.”

(Simon Kuper, 2011)

O erro de Tsimikas e o conhecimento do jogo e liderança de Virgil van Dijk

A situação de Criação surge por duas tentativas sucessivas de intercepção falhadas pelos médios do Liverpool. Pelo menos Endo, dado o insucesso do companheiro, deveria ter garantido contenção e protegido o espaço à frente dos Defesas-Centrais. Não foi a sua decisão e abriu oportunidade para que o adversário, através de um passe vertical, ficasse em situação de ataque rápido, e Criação, perante a última linha do Liverpool. Mas não é sobre essa situação que nos desejamos focar. É para o posterior erro de Tsimikas e a liderança de van Dijk.

Perante a condução do jogador Crystal Palace a última linha do Liverpool, bem, contém, baixa e mantém-se alinhada. Podia no entanto baixar e retirar profundidade mais rapidamente para minimizar o espaço entre si o seu Guarda-Redes. Por outro lado, Quansah, o 78 do Liverpool, deveria ter deixado a contenção ao portador para van Dijk, pois era este que se posicionava no corredor central e assim ficaria com cobertura à sua direita e esquerda.

Mas o maior erro é de Tsimikas. Bem num primeiro momento, porque perante o espaço ainda existente na profundidade acompanha Odsonne, de forma a controlar a desmarcação de ruptura do jogador do Palace, até porque é um movimento pelo lado cego de van Dijk. Contudo, uma vez que o último passe não saiu, até porque a contenção foi eficaz, o grego deveria ter quebrado essa acção mais cedo e regressado rapidamente ao alinhamento com van Dijk, que era nesta situação, a referência para tal.

Tsimikas não só não o fez como tardou a perceber o que tinha que fazer, permitindo uma situação de eventual progressão, finalização, último passe ou cruzamento a Jordan Ayew e obrigando a última linha a posicionar-se já no interior da grande-área, o que possibilitou uma maior aproximação do adversário à sua baliza.

De elogiar Virgil van Dijk, pela sua interpretação e liderança na situação, que por duas vezes solicita a Tsimikas que passe para a sua frente e garanta contenção a Ayew. Podemos ir mais longe falar em liderança Específica. Porque estamos perante uma liderança táctica. E não uma qualquer. A de van Dijk, que supomos estar alinhada com a de Jürgen Klopp.