A profissão… sim… a profissão… precária… de treinador de futebol

“Se um presidente despede um treinador que escolheu, também ele devia sair.”

Brian Clough, treinador inglês bicampeão europeu pelo Nottingham Forest, citado por (Ferreira, 2016)

Sendo um tema há muito na nossa órbita, sentimos que a véspera de mais um Fórum da Associação Nacional de Treinadores de Futebol seria um bom momento para o abordar. E mais do que uma opinião, expressamos aqui um conjunto de factos. Avisamos que o texto se vai tornar extenso… mas acreditamos que valerá os minutos despendidos. À frente do Conhecimento do Jogo, da Metodologia e até da Liderança… talvez estejamos perante o assunto mais importante de todos para o Treinador.

Assistimos nos últimos tempos em Portugal a várias manifestações de insatisfação de várias classes de trabalhadores. Sobre a sua pertinência, naturalmente não tecemos nenhuma opinião. Pelas melhores razões, todas as pessoas, têm o direito a fazê-lo e a reivindicar melhores condições profissionais. Nalguns casos, tratam-se mesmo de condições básicas e do direito ao respeito por princípios fundamentais que estão escritos na Constituição portuguesa. Pois… para surpresa de muitos que nos lêem, o Treinador de Futebol está neste enquadramento, mas até agora… nunca se manifestou de forma expressiva. Melhor ainda, arriscamos dizer, que tendo em conta a sua importância, risco profissional e precariedade, é a profissão que se encontra no pior cenário. Sim… profissão… e não ocupação de tempos livres. Sendo-lhe necessária formação, títulos profissionais, formação contínua, supostos vencimentos mínimos… então não se trata de uma questão de opinião. Trata-se de um facto, de uma realidade… porém, extremamente deturpada. Inclusive pelos próprios interessados… os treinadores. O mestre, autor de diversas obras sobre o treino desportivo, Treinador de Mérito e membro da Comissão de Treinadores do Comité Olímpico Português, (António Vasconcelos Raposo, 2018), descreve que a “realidade é que sendo o treinador a figura central do processo da preparação desportiva dos atletas é urgente que se reconheça, em Portugal, a importância social e desportiva desta profissão“.

Neste momento… várias pessoas, na frase “tendo em conta a sua importância”… abanaram a cabeça. Então importa desde já esclarecer este ponto, que também não é uma opinião, é outra constatação da realidade, portanto, outro facto. Geralmente quando se fala em treinador, e só pegando em exemplos portugueses, os primeiros pensamentos que surgem são… José Mourinho, André Villas-Boas, Vítor Pereira, Jorge Jesus, Paulo Fonseca, Leonardo Jardim, Nuno Espírito Santo, Carlos Carvalhal, Marco Silva, Rui Vitória, Jesualdo Ferreira, Carlos Queiroz, etc, etc… O pensamento é intuitivo, porque para além da enorme exposição mediática a que são sujeitos, estes exemplos, com todo o mérito, atingiram um enorme sucesso profissional e auferem mais num mês de trabalho, do que a maior parte dos treinadores na vida inteira. Eles marcam portanto, exemplos de sucesso profissional. Contudo, os outros cerca de 95% que não conseguem viver do seu trabalho, não são profissionais? São menos importantes? Até porque a maior parte dos nomes referidos, também estiveram durante algum tempo nessa situação. E aí… eram menos profissionais? Esse trajecto não foi fundamental para atingirem o sucesso actual?

Referimos exemplos de treinadores de equipas de profissionais, que se encontram no topo competitivo do Futebol. Perante uma sociedade cada vez mais capitalista, a importância do treinador tornou-se decisiva. Nessa perspectiva ele tornou-se figura central na potenciação de talento e da sua transformação em qualidade colectiva e individual. O treinador português (Castro, 2018), concorda que as coisas estejam “muito mais centradas no treinador”. Esta missão trará também reflexos no rendimento desportivo, e consequentemente, na realização de mais valias financeiras. Do primeiro ao terceiro escalão do Futebol Português. Em níveis competitivos mais baixos, com outra mentalidade dirigente, e numa menor proporção, o cenário podia ser similar. Estamos perante uma indústria, que como escrevemos em tempos, talvez tenha sido a que mais sucesso financeiro tenha trazido a Portugal. Sempre com o treinador, paralelamente ao jogador, como figuras centrais do seu sucesso, os quais são reconhecidos mundialmente pela sua qualidade.

Mas a dimensão financeira não será com certeza o mais importante impacto que o treinador traz à sociedade. O treinador, é antes de tudo, e em qualquer contexto, mesmo o da equipa profissional que se encontra “a top” do ponto de vista competitivo, um condutor de homens e intencionalmente ou não, um tremendo veículo de transmissão de valores. Aos que jogam, aos outros profissionais que flutuam à volta da equipa, aos que dirigem, aos que assistem, seguem e apoiam. Que tendo em conta todos os contextos do jogo, são milhões. Isto, como diria o professor Manuel Sérgio, porque estes homens que jogam, são os mesmos que vivem em sociedade. Para os que pensam em sentido contrário, a sua falácia parte sempre do mesmo erro. Separar o inseparável. O autor (Raposo, 2018), também sublinha a ideia ao referir que as funções desempenhadas pelos treinadores têm um inequívoco impacto nas pessoas que treinam, na sociedade, nas actividades económicas e do mundo do desporto em geral”. E vai mais longe, defendendo que “os treinadores só conseguirão um reconhecimento social pela competência e princípios éticos que demonstrarem possuir“.

Nesta dimensão… humana… não é preciso ser-se muito astuto para perceber que o Treinador de Futebol de Formação apresenta-se como incrivelmente importante. Vários autores e treinadores são peremptórios ao afirmar que a figura do Treinador de Formação substitui muitas vezes o professor do ensino escolar e por vezes até o próprio pai. Pela incompetência que alguns manifestam nesses papéis e simultâneamente pela importância que o treinador representa para o jovem. É o que refere (Morais, 2014), descrevendo que estudos apontam que até aos 16 anos o treinador é o mais importante para o jogador. Dos 16 aos 20 anos passam a ser os amigos e o treinador é segundo. A partir dos 20 surgem os empresários, namorada /mulher, comunicação social”. São comuns os relatos de pessoas que confessam que os valores que os alicerçam, foram adquiridos através do desporto, particularmente, pela “mão” dos seus treinadores. Muitos acabam mesmo por criar relações que perduram no resto das suas vidas.

“Sempre recordarei os momentos que trabalhámos juntos. Foram os melhores da minha carreira. Obrigado por tudo.”

Paulo Ferreira recordando o seu trabalho com José Mourinho, citado por (Luz, et al., 2012)

“Óbvio que ganhar títulos é importante, mas não é tudo. O que me interessa é que, a certa altura, os meus jogadores me digam: “Treinador, você ajudou-nos e tornou-nos melhores jogadores. Aprendemos muito consigo.””

(Guardiola, 2013)

Do ponto de vista da espécie, para além da preocupação ecológica com o espaço que habitamos e com questões relativas à saúde, sendo que neste ponto, como uma vez mais o professor Manuel Sérgio lembra, a saúde não é só física… é também mental, perguntamos: haverão na nossa vida coisas mais importantes que a relação humana? A importância humana do treinador é portanto… outro facto.

Contudo, estamos perante uma das profissões mais desrespeitadas da nossa sociedade.

Para além do exposto atrás, ignorado por muitas, se não pela maioria das pessoas, que remetem para o papel de treinador apenas decisões táctico / estratégicas, no máximo, preocupações com o treino e com o que se passa “exclusivamente” nesse domínio, existe uma ideia generalizada que o tempo dedicado à função e curto, pois esgotar-se-á no período de treino e jogo. Quanto muito, uns minutinhos de planeamento imediatamente antes desses momentos. Para esse pensamento, trazemos uma novidade, também factual: ser-se competente na função de Treinador, implica muito tempo dedicado a toda a actividade e ao seu envolvimento. Tempo esse, “invisível” para quem está fora do contexto. Planeamento… complexo, análise de jogos e de treinos, sessões “teóricas”, acompanhamento da realidade cultural do clube, diálogo regular com os jogadores e restantes profissionais, “socorrê-los” nos momentos mais imprevisíveis, preocupação com a própria formação contínua sob múltiplas formas e despendendo com isso muito tempo e dinheiro, são apenas alguns exemplos.

No mesmo sentido (Castro, 2018) descreve que “o treinador tem de observar adversários, tem de observar a sua própria equipa, tem que analisar jogadores, tem que planear o treino, tem que planear o jogo, tem um conjunto de tarefas que lhe estão associadas. A vida do treinador não se esgota no treino. A vida do treinador começa no treino. Porque depois do treino há a ligação com todos os outros departamentos”. Não é por acaso que muitos treinadores afirmam estar no processo do acordar ao deitar, restando-lhes inclusivamente, pouco tempo para a família, o que por si só, importa referir, não garante automaticamente… competência. O treinador português (Fonseca, 2013), descreve que “as pessoas não imaginam as horas que damos à equipa. Os meus serões são passados a ver os nossos jogos, os jogos dos adversários ou em reunião com a minha equipa técnica. Há sempre muito para fazer. Nunca vejo telejornais ou filmes. Só futebol. Deito-me sempre tarde e durmo poucas horas”. Paulo Fonseca acrescenta que “é uma função apaixonante e desgastante. Passo o tempo todo a pensar nisto. Gerir emoções é muito complicado. O grupo é extenso, as personalidades distintas e para funcionar temos de ser próximos dos atletas. Não acredito na liderança distante e fria”. E tudo isto, independentemente do contexto ou nível competitivo. Porque como foi escrito na obra de Bruno Leite, et al., pode-se ser “Profissional no Amador”. A competência ou a dedicação não são definidas por aí. Mais um facto.

Depois, estamos perante a profissão de que todos sabem imenso, emitem opiniões e iam “lá fazer melhor”. O pai, o bancário, o médico, o jardineiro, o advogado, o cozinheiro, o personal trainer, o professor, o jornalista, o político, o electricista, o empregado de mesa, etc., não têm qualquer inibição em criticar o treinador. Na especificidade técnica da sua função, e muitas vezes até do ponto de vista humano apenas porque não tomam decisões diferentes das suas… digamos… convicções. E não discriminamos géneros. Também muitas senhoras, profissionais de outras áreas de actividade, não têm igualmente pejo em afirmar que determinado treinador não percebe do que faz, que deveria jogar o “Manel” e não o “Zé”, que a equipa “devia jogar para a frente e deixar de brincar lá atrás”. Alguns vão mais longe e determinam que a equipa precisaria “de trabalhar mais fisicamente” ou que os treinos “deveriam ser mais intensos”. Tudo isto, sem qualquer formação e experiência na área, sem acompanhar a realidade diária da equipa. Tudo isto, independentemente do contexto, do nível competitivo, do escalão etário. E já nem vamos à avaliação do trabalho do treinador para além do resultado desportivo. Aí abriria-se todo um novo universo para estas pessoas. Generalizou-se o… “também percebo de futebol”. Mas como é que se percebe de futebol… se na grande maioria dos casos… nem do ser humano e da sua condição… se percebe? Será que seria relevante colocar um Treinador de Futebol semanalmente na televisão a opinar sobre as decisões do Ministro das Finanças, numa cozinha opinando sobre o trabalho do Chef, ou criticando um Professor de Física na ênfase que dá às matérias, porque o “lançamento de projéteis” será para si mais importante para a vida adulta do aluno do que a “mecânica dos fluídos”?

“Fui mudando de canal e encontrei dois ou três iluminados pumba, pumba, a bater no Jesus. Mas a falar de pormenores e de treino e a dizer que tinha de fazer assim e assado. E eu penso: mas quem é que eles treinaram? Nunca treinaram ninguém na vida. Nunca lideraram ninguém. Mesmo os ex-jogadores. Quem é que eles treinaram? Foram jogadores e alguns deles nem foram exemplo para ninguém. Quando é que eles tiveram de tomar decisões sobre pressão? Onde é que eles foram avaliados e criticados ao mesmo tempo por tanta gente? Não foram. Mas chegam ali e o Jesus isto e isto e isto. Mas o Jesus ao pé deles dá-lhes dez a zero. Ou vinte a zero. E isso custa-me. Tal como eu não tenho hipótese nenhuma de estar aqui a falar de política, porque eu não estudo política e não sei o suficiente. Por exemplo, gosto muito de música, mas é só de ouvir, gosto disto ou daquilo. Não começo a discutir a música como se soubesse alguma coisa daquilo, porque não sei. Tudo bem, as pessoas podem discutir futebol e dar a sua opinião, mas não podem fazê-lo sem respeito.”

Vítor Pereira em entrevista a (Cabral, 2017)

Mais grave se torna quando estas figuras vestem a pele de dirigentes desportivos, e ao contrário do treinador, sem qualquer exigência ao nível da sua formação para o cargo, sem conhecimento da função e do meio, e em muitos casos, sem qualquer experiência. Porque foram eleitos ou convidados para tal. Eles, que estão no topo da pirâmide hierárquica do clube. Portanto, na grande maioria dos casos, as pessoas que lideram e tomam as decisões mais importantes, são as que no futebol, menos qualificações, menos conhecimento, e menos experiência têm. Estas pessoas, são portanto, as que avaliam e decidem a competência e o desempenho dos treinadores. Como em tudo, há também os exemplos opostos, mas esses são tão raros, que acabam por ser notícia.

“Sou também absolutamente crítico da tese de que os treinadores vivem de resultados: esta é a posição mais comum. E a posição, que na sua medida, ajuda a contribuir para estado calamitoso da maioria dos clubes de futebol. O treinador vive de competência, trabalho, dedicação, lealdade. E tudo isso esta equipa técnica tem de sobra. Acho, por isso incorrecto, definir o futuro de alguém pelo penalti marcado ou não marcado, pela expulsão bem ou mal decidida, pela oportunidade falhada, pela bola na trave ou bola na rede. Um projecto de futebol tem de ser muito mais do que isso.”

(Paulo Antunes, 2016), presidente demissionário da SAD do Leixões em solidariedade com a sua equipa técnica

Simultaneamente difunde-se a ideia de que um treinador que ainda não se encontra a exercer a sua actividade, do ponto de vista financeiro a um nível profissional, está em “ocupação dos tempos livres”. Que está então em formação, a ganhar experiência e numa “rampa de lançamento”. Pelo meio esquece-se que já está efectivamente a trabalhar, a influenciar terceiros, e a ter o impacto que descrevemos atrás com as suas decisões e acções. E na maior parte dos casos como Treinador de Formação, que sublinhamos, tem importância fundamental em termos sociais.

De facto, um treinador está ocupando tempo… mas na área para a qual lhe foi exigida formação e investimento. A falácia surge, porque a maioria dos treinadores, não recebem sequer metade do ordenado mínimo nacional. O pouco que ganham é na maioria dos casos pago ilegalmente, porque caso contrário, não lhes sobraria praticamente verba nenhuma. E mesmo assim, em muitos casos, sem valor adicional para despesas, nomeadamente para transportes. Transportes que muitos clubes não garantem, nem sequer para os jogos. Assim, em alguns casos, o balanço torna-se negativo e cria-se então a ideia de “investimento” para chegar a outro nível e contexto, mais importante que esse na cabeça de muita gente.

Com tudo isto, não há descontos, consequentemente não haverá direito aos mais básicos benefícios, por exemplo, seguro de trabalho ou pensão de velhice. Perante este quadro, nem vale portanto a pena falar em subsídios de férias e de Natal. Aliás, a grande maioria destes vencimentos dura apenas os, aproximadamente dez meses do período competitivo. E tudo isto não é uma revelação que estamos aqui a fazer. É do conhecimento geral. Portanto, inclusive das autoridades competentes e poder político. E todos assobiam para o ar, mostrando-se satisfeitos com a realidade… apesar de ilegal. O autor (Bouças, 2019) aponta ser “importante que as pessoas não se esqueçam que ser treinador é uma profissão… e que os treinadores também têm contas para pagar”. Deixamos duas questões.

Não pode um treinador gostar, e investir no papel que tem no Futebol de Formação? Não pode sentir-se feliz e especializar-se para trabalhar com crianças e jovens? Isso tem obrigatoriamente que ser um “degrau” para outra coisa… se calhar até… menos importante?

Não lhes sendo reconhecida importância na função, e se os milhares de treinadores que se encontram nesta precariedade, chegassem à conclusão, que manifestamente têm também poucas probabilidades de alcançar um nível de vencimento mais elevado? E perante este cenário, se desistissem da sua missão? A quem ficariam entregues estas equipas? Aos pais e adeptos em regime de voluntariado? Os mesmos que muitas vezes apresentam comportamentos que lhes deveria valer a interdição de frequentar recintos desportivos? Então e a formação que neste momento é exigida? Terão esses voluntários vontade, tempo ou condições financeiras para se dedicarem a uma primeira formação básica de 2 anos?

“Sou alguém que tenta ajudar os miúdos a serem melhores, por isso estou na formação, por isso estou com jovens. Não tenho a ambição de treinar séniores. Interessa-me o crescimento dos jovens.”

(Pablo Aimar, 2018)

Este cenário empurra o Treinador de Formação, que devia ser um especialista nessa especificidade profissional, para outros contextos, nos quais auferirá, no mínimo, um vencimento mínimo para subsistir. Assim, o treinador português e ex-coordenador do Futebol de Formação do FC Porto, (Castro, 2018), explica que “há uma avidez pela escalada que pode ser fatal para o futebol de formação. Tem de haver extremo cuidado na escolha de recursos humanos para cada escalão. Deve haver um cuidado tremendo no olhar sobre esses treinadores, dar-lhes condições para desenvolverem o seu trabalho, quietá-los. Eles são muito inquietos, os treinadores de hoje em dia, naquilo que é a sua escalada. Olham sempre para cima, nunca para baixo. É perigoso para o futebol de formação“.

Com isto entramos noutra das questões mais controversas em Portugal no âmbito da profissão do treinador. A sua formação. Durante muitos anos assistiu-se a entrega de cursos de treinadores, inclusive de nível máximo, praticamente por decreto. Muitas vezes bastava ter-se tido uma carreira como jogador profissional, e se internacional ainda melhor, para que se obtivesse uma equivalência como treinador. Como se alguém que estivesse doente num hospital durante muitos anos, estivesse por isso, automaticamente habilitado a ser médico. Hoje passou-se do oito para o oitenta. Recorrendo novamente ao exemplo do Médico, este profissional de reconhecida importância fundamental na sociedade, necessita de 6 a 8 anos de formação. Hoje, um treinador, para atingir o nível máximo de formação, precisa de 12 anos… As contas são simples, tendo em conta os requisitos legais: 1 ano de formação para o UEFA C + 1 ano de estágio + 2 anos a trabalhar a esse nível + 1 ano de formação para o UEFA B + 1 ano de estágio + 2 anos a trabalhar a esse nível + 1 ano de formação e estágio para o UEFA A + 2 anos a trabalhar a esse nível + 1 ano de formação e estágio no UEFA PRO. Será isto razoável?

E levanta-se outra questão. Não pode um treinador, como referiu ser exemplo Pablo Aimar, desejar ou sentir-se melhor como treinador de Futebol de Formação, e simultâneamente desejar ter formação “oficial” máxima? Não é dito por muitos responsáveis e treinadores que os melhores treinadores deveriam estar na formação? Então e os melhores não serão também os que adquiriam mais e melhor conhecimento? Perante as regras vigentes… um Treinador de Formação em Portugal só poderá atingir o UEFA A. E se gostar e se especializar-se em trabalhar com crianças até às idades de Infantis, só poderá ter formação até nível UEFA B.

Mas os problemas não ficam por aí. Trabalhar no estrangeiro é também um handicap à aquisição de mais formação em Portugal. Tendo que cumprir uma série de requisitos para se poder candidatar a um nível superior de formação, muitos treinadores, pelas características dos projectos onde se encontram, não os conseguem preencher. Damos um exemplo. A Aspire Academy sediada no Qatar, é uma referência a nível mundial, apresentando uma infra-estrutura fabulosa, técnicos estrangeiros de reconhecida qualidade com especialização no treino de formação e pagos a valores que treinadores de formação dos clubes grandes em Portugal, não auferem. O seu contexto, em escalões etários mais baixos, não contempla competição federada e participação em campeonatos anuais. As competições existem num volume idêntico ao de Portugal, mas são organizadas pela própria Aspire Academy. Sendo este um dos requisitos para a candidatura a qualquer dos três níveis mais elevados de formação, um português que trabalhe neste projecto, terá então, a formação em Portugal vedada. Porém… se a pretender adquirir no estrangeiro, mediante menos requisitos, e na maior parte dos países, a um custo menor, está também perante um processo cheio de constrangimentos, e em muitos casos, mesmo impossível.

Ainda sobre a formação do treinador. Os preços da formação do Treinador. Abstemo-nos de comentar, porque o exposto abaixo fala por si. Tratam-se de posts publicados no twitter, abertos a todos.

Fazendo algumas contas por alto, não contabilizando gastos paralelos, como deslocamentos e alimentação, só na inscrição nos cursos, para atingir o nível máximo de formação, o treinador terá que investir um valor a rondar os 11000€. Quantas profissões apresentam tamanha exigência de investimento? E como referimos atrás, ideia reconhecida por quase toda a gente, a formação do treinador terá que ir muito além dos cursos de treinadores.

“Assim como a formação deficiente dos treinadores, em termos de oportunidades para adquirirem conhecimento. Não é só com o curso nível 1, 2, 3 ou 4… Há um mundo para além dos cursos que tem de ser tocado por todos nós.”

(Luís Castro, 2018)

A dimensão financeira da questão não fica por aqui, pois criou-se ainda uma obrigatoriedade de formação contínua. Por princípio, seria uma boa ideia, uma vez que nem todos os treinadores investem na sua evolução. Porque, como Luís Castro aponta, existe hoje um imenso universo de conhecimento à disposição de todos, e (Pereira, 2019) defende, ser-se “conhecedor e competente deverá também significar a procura constante de mais conhecimento, querer saber sempre mais, mesmo além do conhecimento específico da nossa área”. Deixar que a selecção natural fizesse cair os treinadores que não procuram esse investimento pessoal, não se mantendo actualizados e reforçando o seu conhecimento, seria perigoso para muitos jogadores que estivessem sob a sua liderança. Temos que ser coerentes com o que defendemos atrás e sublinhar a importância, em todos os momentos, que qualquer treinador tem. O problema é que a proliferação de cursos, formações e empresas dedicadas a este propósito, em muitos casos sem qualquer rigor em relação a conteúdos e formadores, vão adulterando a boa ideia inicial, e passando a mensagem que a obrigatoriedade de adquirir os créditos necessários para manter o Título Profissional de Treinador de Desporto sucede principalmente por motivos financeiros. De qualquer forma, constitui-se em mais um encargo para o Treinador, que recordamos ter, na maioria dos casos, um vencimento líquido perto do… zero. Recuperamos a questão colocada acima. Quantas profissões apresentam tamanha exigência de investimento?

Continuando na perspectiva da “carreira”, haverá profissão mais sujeita a avaliação contínua? Existiram casos de treinadores de equipas profissionais da 1ª Liga que nem chegaram a competir oficialmente, porque foram despedidos antes disso. Por outro lado, avaliação essa que quase sempre se encontra sob a perspectiva do resultado desportivo, isto independentemente do escalão e do contexto. E principalmente independentemente da sua competência e qualidade do trabalho realizado, que terá objectivos muitos diferenciados em função desse mesmo contexto.

“Obviamente que o melhor treinador do mundo poderá nunca ter almejado um troféu. Porque vitórias dependem do contexto. Poucas são as equipas cujo contexto permitirá a tal luta pelos títulos, e portanto estar no sítio errado à hora errada, ou estar no sítio certo à hora certa não significa por si que se é bom ou mau. E não são as decisões de X ou Y que define quem são os melhores ou piores. Avaliar o trabalho do treinador não pode passar pelo resultado, mas pelo processo. Não que o resultado não importe, naturalmente. O resultado é o mais importante. Mas entender o processo poderá fazer perceber que o resultado obtido foi ou não o melhor possível. Eu posso ficar em segundo lugar e não ter vencido. Mas naquele contexto, perceber o processo poderá fazer entender que o segundo lugar foi a melhor marca possível e que ninguém teria feito melhor. Porque no futebol há adversários e nunca ninguém joga sozinho! Perceber e valorizar o processo permite projectar o possível resultado. Utilizar somente o resultado nunca permitirá projectar o resultado no futuro.”

(Pedro Bouças, 2017)

Deste modo, em Portugal, um treinador que ganhe sempre irá rapidamente treinar uma equipa sénior de um clube grande e consequentemente irá atingir rapidamente a topo salarial do futebol português, independentemente do que estiver na base desse sucesso. Mas se um treinador a quem em tempos lhe foi reconhecida competência e qualidade de trabalho, aceitar sucessivamente projectos de risco competitivo, que o levem a insucesso nesse domínio, rapidamente também passa a desempregado. E possivelmente, de longa duração.

E estes exemplos, são os que sucedem em menor número. Estes são os que têm direito a um contrato de trabalho. Porque conforme foi exposto atrás, a larguíssima maioria não tem esse direito básico. Portanto, perante um despedimento, nem o direito ao subsídio de desemprego, subsistirá. Ah é verdade! Esquecemo-nos que… ser treinador “não é emprego”. Portanto, se foi despedido, “que vá dar aulas na escola ou que vá ser professor de natação”. Para não dizer vendedor de automóveis.

Terminamos com a crítica ao principal responsável por toda esta situação…. o próprio treinador. Em primeiro lugar porque a classe apresenta-se conformada com a sua situação. Ao contrário dos outros profissionais, talvez nunca tenha sido sequer equacionado um protesto, muito menos uma greve. Depois porque muitos treinadores partilham a mesma mentalidade dos dirigentes e adeptos e com isso deturpam o seu próprio papel. Também são partidários de que só o ganhar interessa. E voltamos a sublinhar: independentemente do escalão e contexto. Por outro lado, quando um clube que se encontra inserido numa competição em que por lei é obrigado a pagar ao treinador um valor, sempre igual ou acima do ordenado mínimo, e na prática, se de facto lhe paga, o faz num valor muito abaixo disso e o treinador aceita porque é uma “oportunidade”… está também a contribuir para o problema. E pior ainda quando o clube lhe pede, no próprio momento da assinatura do vínculo, que também assine documentos nos quais em caso de quebra do compromisso, o treinador prescinde do valor compensatório que por lei teria direito a receber. E aceita… porque se não o fizer, tem logo vários colegas preparados para aceitar o cargo nessa situação. Finalmente, mas talvez a situação mais grave, porque muitos treinadores atraiçoam a própria classe quando minam o trabalho de outros colegas. E isto não é ser-se competitivo. Trata-se de não ter valores. E depois no momento de insucesso do colega, quantos se oferecem aos dirigentes desse clube para o substituir com promessas vãs, por um valor mais baixo ou mesmo a “custo zero”? O derradeiro facto, e talvez o mais triste de todos. E são simultaneamente estes os os responsáveis por transmitir valores e conduzir outros homens.

“A base é a mesma: enquanto estou num local, dedicar-me a 100% ao que estou a fazer. Isso não me dá tempo para pensar noutras coisas. É tão volátil isto do futebol e do treinador de futebol que a ideia a longo prazo é algo que não existe e é importante nós sabermos isso. Sei que me vai acabar a carreira de treinador, é inevitável. Isto pode de alguma forma chocar, mas é preciso estarmos preparados para isso, porque é isso que acontece, daí não fazer planos a longo prazo. No futebol, longo prazo são três semanas e se tivermos dois jogos entretanto…”

Rui Jorge em entrevista a (Cabral, 2017)

Conhecimento do Jogo & Modelo de Jogo

“(…) enquanto sozinho no seu gabinete pensava sobre o que mudar, mas convencido de uma coisa: a minha ideia, a ideia de Cruyff, teria que ser mantida. Eu manteria-a, por mais difícil que fosse. E o suporte estava prestes a ser proveniente de uma fonte inesperada… Não parava de pensar sobre isso, quando alguém bateu na porta do meu gabinete…

“Pode entrar.”

“Olá, mister”.

Uma figura pequena entrou pelo gabinete dentro e falou calmamente. “Não se preocupe, mister. Nós vamos ganhar tudo. Estamos no caminho certo. Continue assim, ok? Estamos a jogar muito e a adorar o treino… Por favor, não mude nada.”

Pep Guardiola, citado por (López, et al., 2016)

Como fizemos questão de sublinhar no início deste projecto, o conhecimento que procuramos construir, terá o intuito de estar em permanente evolução, evitando cristalizar-se, e eventualmente consolidando-se como alguns dogmas idênticos aos que procuramos derrubar. Essa missão, em nosso entender, não só é fundamental, como se constitui no principal objectivo do projecto Saber Sobre o Saber Treinar.

Exposto na Introdução do projecto, sentimos uma primeira necessidade de caracterizar, dividindo… “sem empobrecer”, as principais dimensões na intervenção do treinador. Mas não só, e estamos a procurar expandir o conhecimento a outras funções técnicas que contribuem para o desenvolvimento da equipa. Nesse âmbito chegámos à Liderança, Metodologia e Modelo de Jogo. O Modelo de Jogo constituiria-se como o máximo conhecimento teórico sobre o jogo que conseguiríamos reunir.

Nesse domínio específico seria reunido, conhecimento do jogo, da sua sistemática, história e contexto cultural, que permita idealizar uma forma rica de disputar o jogo, que traga à equipa organização, mas que simultaneamente não a torne mecânica e incapaz de dar resposta à aleatoriedade e caoticidade do jogo. E ainda, que essas ideias que tenham também em conta a sua adaptação ao tal “espaço” / contexto e “tempo” / evolução do jogo.

Neste trajecto evolutivo, começámos a sentir que essa dimensão da intervenção do treinador seria vasta e que o conceito de Modelo de Jogo seria-lhe desajustado, dado tratar uma realidade mais específica. Recorrendo à (Wikipédia, 2019) um modelo científico trata-se de “uma idealização simplificada de um sistema que possui maior complexidade, mas que ainda assim supostamente reproduz na sua essência o comportamento do sistema complexo que é o alvo de estudo e entendimento“. Assim sendo, o Modelo de Jogo será uma leitura da realidade. Portanto, uma Ideia de Jogo, alicerçada no tal conhecimento do jogo, em interacção com o contexto onde é operacionalizada.

O professor Vítor Frade, em entrevista a (Tamarit, 2013), explica este entendimento. “Duas coisas distintas, uma coisa é a ideia de Jogo e outra coisa é o Modelo de Jogo. Pode parecer um paradoxo, uma coisa estranha, mas antes está a Ideia de Jogo e só depois está o Modelo de Jogo. O Modelo é o que se sujeita também às circunstâncias. O Modelo é tudo porque é a Ideia de Jogo mais as circunstâncias, e as circunstâncias podem relativizar aquilo que eu faria noutras circunstâncias, mas em termos de padrão é igual! Eu quero jogar mais ou menos assim. Agora, se eu fui treinador do Barcelona e depois vou treinar uma equipa da quarta divisão… é diferente, eu quero que passem de primeira e eles não o fazem nem de pistola na mão. A bola não se assusta! As pessoas têm que ter a inteligência suficiente. Estou a falar a Top. Acha que havia muitas diferenças do Chelsea para o Inter? Não há, não há. Há mais de jogo para jogo em função das circunstâncias… mesmo no Porto, só que o Porto não tinha Zanetti, não tinha o não sei quê, e tenho que ver isso. Agora a Ideia de Jogo é uma coisa, a fabricação da Ideia tem a ver com as circunstâncias e esse é o Modelo de Jogo, o que implica também a dinâmica existencial dos Princípios Metodo­lógicos. E o Modelo é tudo, até algo que às vezes desconheço, e que me «incita» à modelação, porque se eu não o contemplei, lixei-me!“.

O autor (Azevedo, 2011) reforça esta posição, explicando que “o Modelo de Jogo em Futebol é normalmente mal-entendido pelas pessoas. Fala-se dele como sistema de jogo implementado ou a estrutura inicial que a equipa apresenta em campo. No entanto, o Modelo de Jogo é muito mais do que isso, o Modelo é tudo (Frade, 2006). Entendemos que um Modelo de Jogo é algo que identifica uma determinada equipa, não é apenas um sistema de jogo, não é o posicionamento e disposição dos jogadores, mas sim a forma como os jogadores estabelecem as relações entre si e como expressam a sua identidade, uma determinada organização apresentada em cada momento do jogo que se manifesta com regularidade“.

Também (Maciel, 2011), refere que “o Modelo é constituído por um conjunto de inúmeros aspectos, alguns mais relacionados com opções do treinador, como a concepção de jogo, a metodologia de treino, a operacionalização do processo, outros mais relacionados com os jogadores e com a própria realidade do clube e o contexto envolvente. Aspectos que vão desde as crenças de jogadores ou dirigentes, à história do clube, dimensão estatuto e competência do departamento médico, a realidade competitiva, até as picardias e rivalidades históricas que possam existir dentro e fora do clube. Pode dizer-se que o Modelo é tudo. E por isso mesmo penso que a imagem mais capaz de o retratar é a de um iceberg, à superfície, isto é a face visível, parece ser uma realidade circunscrita a uma determinada dimensão e complexidade, mas na verdade é bem mais complexa e edificada sobre muitos aspectos que não são visíveis à superfície, mas que se assumem como fundamentais para a dimensão visível do Modelo. O Modelo é tudo e resulta da interacção altamente dinâmica entre os aspectos visíveis e dizíveis com os aspectos invisíveis e indizíveis que o compõem. A melhor definição que conheço de Modelo é a do Professor Vítor Frade quando afirma que “o Modelo é qualquer coisa que não existe, mas que todavia se pretende encontrar”. Trata-se portanto de uma espécie de impossível necessário, que nós em termos ideais concebemos, mas que depois na sua concretização não conseguimos reproduzir tal e qual, pois ao nível do pormenor ele vai assumir contornos únicos resultantes da interacção com o que o envolve“.

Deste modo o Modelo não é o antes. É uma “fotografia” da realidade. Neste caso, da realidade de uma equipa.

Perante isto, faz-nos mais sentido falar em Conhecimento do Jogo para descrever essa dimensão mais “generalista” da intervenção do treinador. Partindo dela, influenciada sempre por traços de liderança e mesmo metodológicos, o treinador / equipa técnica, chega(m) à Ideia de Jogo. A sua operacionalização, deste modo, no domínio “do real”, implica no contexto específico onde acontece, uma interacção profunda com a Metodologia e Liderança exercidas. Podemos então entender, que daí resulta o… Modelo de Jogo.

Dimensões da intervenção do treinador e Modelo de Jogo.

“Mourinho tinha uma definição, uma exclamação, quando lhe faziam essa pergunta, ele dizia: Para mim, modelo é tudo! E é. É tudo e mais alguma coisa. Porque muito desse tudo a gente não conhece. Muito desse tudo está pra vir. Agora eu não posso perder o azimute. É por isso que eu lhe dizia, digo sempre, num processo de treinabilidade, o futuro é o elemento causal da interacionalidade. Mas o futuro como perspectiva, como ideia. Por isso é que eu digo, o modelo de jogo é qualquer coisa que não existe em lado nenhum… não existe como tal, mas a configuração… É como eu, aqui, quando estive agora a falar consigo, eu sabia do que vinha falar, porque você tinha me dito, mas não sabia e não sei o que vai sair daqui. E é isso que se deve aspirar que aconteça, na treinabilidade.”

(Frade, 2015)

Três ideias (exercícios) para desenvolver a decisão e a qualidade do contra-ataque [Subscrição Anual]

“(…) (o contra-ataque tem por) objectivo principal, a partir da recuperação da bola, a desorganização da equipa adversária, de forma a progredir para espaços abandonados e conseguir encontrar condições significativas que nos possibilitem oportunidades de golo antes da reorganização do adversário.”

(Moreno, 2009)

Na sequência de recentes artigos que abordaram o sub-momento contra-ataque, publicamos três ideias, pela forma de exercícios, dentro do mesmo tema, juntando-os a outros presentes no nosso arquivo de exercícios. Como abordado recentemente, para o contra-ataque suceder, tem de existir uma reacção ao ganho da bola, manifestada essencialmente pela saída da primeira zona de pressão adversária, e antes disso, tem de existir obrigatoriamente, recuperação da bola. Deste modo, estes exercícios visam essencialmente a decisão da equipa pelo contra-ataque e o seu desenvolvimento. Dois deles possibilitam mesmo, a decisão entre o contra-ataque ou a valorização da posse de bola, uma decisão que cremos ser fundamental no jogo ofensivo da equipa e que tendo em conta a articulação de sentido do jogo, terá também assim, consequências no seu jogo defensivo.

O treinador português (Miguel Cardoso, 2018), está de acordo com a importância desta decisão, referindo a propósito do trabalho realizado no Rio Ave, que sentiu o sucesso no “critério na transição ofensiva, porque nós conseguimos muito bem tirar a bola da pressão em muitos momentos, fosse para a frente, fosse para a largura, e depois tínhamos critério suficiente para entender se devíamos entrar em ataque organizado ou em (contra-ataque)“. Na mesma linha de pensamento, o autor (Santos, 2010), explica o “caso específico de uma equipa que ataca precipitadamente. Obviamente não percebe os “quandos” e o resultado é um jogo em transições permanentes, com perdas e conquistas de bola sucessivas”. O autor confessa que “ver uma equipa a jogar em transições sistemáticas, sabendo que essa mesma equipa tem jogadores com capacidade para jogar de uma forma que lhe confere mais sucesso, privilegiando a posse de bola e a circulação objectiva, é algo que me inquieta. É como se visse um grande actor num filme fraco e sem reconhecimento nenhum por parte da indústria cinematográfica”. Contudo, o treinador espanhol Julen Lopetegui, confesso devoto de equipas que hiper-valorizam a posse de bola, citado por (Bouças, 2014) sustenta que uma equipa que “queira ter a bola não significa que não possa jogar em contra-ataque quando o adversário deixa espaços. Nesses casos podemos fazer transições rápidas, com amplitude e velocidade”. Deste modo, a autora (Gomes, 2015) explica a importância do Contra-Ataque, pois “quando a bola é recuperada o adversário pode:

  • “Estar desorganizado;
  • Ficar em inferioridade numérica;
  • Ser lento a reagir;
  • Ter uma reacção rápida e impetuosa;
  • Criar muito espaço entre os sectores;
  • Criar muito espaço entre a sua linha defensiva”.

Se o jogo e o seu treino são complexos, elevar a complexidade dos exercícios, também o é. É redutor pensar que elevar ou baixar essa complexidade passa apenas por relações numéricas, ou pela introdução de determinadas regras. Ela surge da manipulação do todo complexo constituído pelo espaço-tempo-número-regras, sempre em função do contexto, ou seja, do nível / ideias / evolução dos jogadores ao qual o exercício é proposto. O técnico português Rui Faria, citado por (Sousa, 2007), explica que quando diz que a complexidade é dada pelo estorvo mental é, no fundo, pela necessidade de fazer uma determinada acção pretendida num conjunto de condicionantes que envolvem e que pode ser a dificuldade natural da própria acção, o espaço, o número de jogadores. É óbvio que o número de jogadores condiciona essa acção e condiciona esse pensamento ou a complexidade é condicionada pelo número de jogadores envolvidos, pelo espaço de jogo envolvido e a partir daí o comportamento que tens de ter é condicionado por isso tudo. No fundo, isto é que aumenta a complexidade ou diminui a complexidade do exercício. Toda esta relação entre estas componentes“. 

A exclusão da idade neste pensamento, não é inocente. Na realidade há exercícios, tendo principalmente em conta as suas dimensões espaço e número, que não deverão ser utilizados frequentemente em idades mais baixas, mas mesmo aqui, as características de alguns jogos escolhidos pelas crianças no Futebol de Rua e o que eles lhes podem potenciar demonstram-nos muitas vezes que o pensamento “nunca”, torna-se perigoso. A idade não é indicador do nível de jogo. Há crianças aptas para um jogo, que no pensamento do treinador se perfila de maior complexidade, e simultaneamente há adultos sem nível para tal. Por outro lado, também porque a “bagagem” de conhecimento constitui-se como mais uma variável decisiva em tudo isto, e nem sempre essa bagagem significa melhores ideias e evolução. O treinador português (Jesus, 2013), explica que “existem jogadores que para renderem aquilo que tu queres tens de lhes explicar concretamente qual é a tua ideia, caso contrário eles perdem-se, e existem outros que sem lhes determinar alguma tarefa eles conseguem desenvolver o que tu pretendes”. Deste modo, novamente Rui Faria, citado por (Campos, 2007) defende que “em primeiro lugar temos que perceber em que nível nos encontramos. É decisivo percebermos o que é a cultura individual dos jogadores em termos do jogo, é fundamental perceber as qualidades dos jogadores e perceber isso em função do que se pretende. Se pretendemos que haja sucesso em termos do que fazemos no treino e queremos que isso se constitua como uma aprendizagem em termos de cultura de jogo, em termos de comportamentos colectivos é necessário que se compreenda esta evolução em termos de complexidade. Isto é decisivo, mas também é decisivo fazer uma avaliação do que é a nossa equipa, os nossos jogadores e do que é o conhecimento do jogo por parte da equipa e portanto a antecipação é tão mais facilitada quanto maior for a cultura de jogo da equipa”.

Por outro lado, a explicação das regras, eventualmente dos objectivos, o feedback durante a operacionalização do exercício, a sua análise e avaliação, etc, são também fundamentais para o seu sucesso. E como é referido que Albert Einstein terá defendido… “é possível ensinar física quântica a uma criança. Desde que coloquemos a linguagem ao nível da sua compreensão”. Deste modo, o exercício de treino é no fundo um veículo de comunicação de ideias, e como tal, é fundamental perceber, que como em qualquer outro processo comunicacional, que a sua essência é interactiva e não diapositiva, portanto, o seu sucesso, depende de uma relação, estabelecida e influenciada, pelo menos por dois intervenientes. No caso do futebol, existindo mais intervenientes, o processo densifica-se. No entanto, torna-se para muitos treinadores, dada a sua consciência da tremenda complexidade do fenómeno, um enorme desafio e fonte de motivação e prazer. Tal como um maestro numa orquestra, o treinador procura sintonizar-se e sintonizar toda a equipa em torno de um projecto comum pelos meios que dispõe. O exercício de treino emerge como um dos fundamentais.

Perante esta ideia, os exercícios que trazemos, sendo formas jogadas procuram aproximar-se da realidade do jogo e apresentam uma progressão complexa em função do número de jogadores / estrutura da equipa, do espaço, dos alvos e principalmente da complexidade da decisão sobre o contra-ataque. No entanto, como referido atrás, essa complexidade estará também sempre condicionada pela qualidade de jogo dos jogadores. Se o exercício 131 garante propensão ao contra-ataque para a equipa que inicia a defender e recupera a bola, o exercício 132 já contempla a decisão sobre contra-ataque numa estrutura de equipa mais reduzida, e finalmente, o exercício 133 potencia estímulos idênticos, porém em mais espaço, número e sobre balizas regulamentares.

131 | Pressing e contra-ataque para qualquer das baliza (exercício grupal)

132 | Decidir atacar as mini-balizas ou resgatar o companheiro (exercício sectorial + intersectorial)

133 | Defender a baliza, posse ou sair da área e contra-atacar

“A saúde não depende só do exercício físico. Depende de um exercício físico onde há valores.”

“O futebol é um jogo infinito em que se encaixa toda a complexidade humana, desde os grandes valores até aos mais pequenos. Se os treinadores que são autênticos maestros da vida, ajudarem a iluminar a parte mais nobre do jogo, servirão para melhorar primeiro, os homens que jogam, depois, o jogo em si e, finalmente, todos aqueles que são arrastados pela paixão do futebol.”

(Jorge Valdano, 2014)

O contra-ataque, e… ou melhor… ou, o ataque rápido

“Algumas pessoas satisfazem-se com o que já sabem, é como se seu conhecimento coubesse numa piscina. Dão algumas braçadas para um lado, outras braçadas para o outro, agarram-se às bordas e tocam o fundo com os pés: sentem-se seguras nessa amplitude restrita. Mas nada como mergulhar num mar do conhecimento sem fim, onde não há limites, a profundidade é oceânica e a ideia é nadar sem chegar à terra firme, simplesmente manter-se em movimento. Cansa, mas também revitaliza.”

Martha Medeiros, citada por (Casarin, et al., 2013)

O tema não é novo. Noutros artigos já abordámos superficialmente o assunto e já tencionávamos explorá-lo no futuro com outra profundidade. Uma discussão de âmbito internacional, que se iniciou no twitter de um treinador alemão e que passou para um forúm levou-nos a fazê-lo neste momento. Naturalmente, é-nos impossível e também não é objectivo do projecto abordar todas as discussões interessantes sobre futebol que vão acontecendo na televisão ou internet. A relevância deste assunto, prende-se, para nós, com a confusão geral em que mergulhou, em trabalhos académicos e entre treinadores e jogadores, tal como o próprio tópico da discussão ilustra. Deste modo, o assunto assume especial importância uma vez que se trata de entendimento e conhecimento do jogo, portanto, questões fundamentais no papel do treinador.

A situação de jogo passou-se no jogo Magdeburg x Holstein Kiel da segunda divisão alemã. A discussão gerou-se sobre se a situação de jogo configurava uma situação de contra-ataque ou não. Para mais, porque segundo o autor do tweet, o próprio treinador do Magdeburg a descreveu como um contra-ataque.

É ainda recorrente, um treinador, jogador, ou analista referir “contra-ataque e ataque rápido”, a propósito de uma só situação de jogo, como se ambas as expressões descrevessem o mesmo. Se fosse esse o caso, uma delas seria redundante.

A confusão poderá resultar do entendimento clássico do jogo, também transmitido nos cursos de treinadores de Futebol e nas aulas de Futebol da maioria das Universidades, o qual contemplava apenas dois momentos (fases), a ofensiva, e a defensiva. Consequentemente, sugeriam-se métodos de jogo para cada um dos momentos. De uma forma geral, no momento (fase) defensiva surgiam por exemplo a “defesa individual”, a “defesa mista” e a “defesa zona”. No momento (fase) ofensivo, o “ataque organizado ou posicional”, o “ataque rápido” e o “contra-ataque”. O autor (Castelo, 1994), explica que um método de jogo “exprime a forma geral de organização das acções dos jogadores tanto no Ataque como na Defesa estabelecendo princípios de circulação e de colaboração no seio de um dispositivo de base (sistema de jogo) previamente estabelecido”.

A questão, é que não se compreendendo o jogo e as diferenças entre os vários métodos, tende-se a procurar um entendimento simples de algo que na realidade não o é. Assim, sendo a velocidade das acções um traço comum e evidente entre as situações de contra-ataque e de ataque rápido, vão-se colocando, ambas, muitas vezes no mesmo “saco”. Um exemplo foram vários trabalhos académicos realizados em torno deste tema, que também seguiram o mesmo entendimento, colocando o contra-ataque e o ataque rápido logo após a recuperação da bola e distinguindo-os, por exemplo, através de critérios quantitativos como tempo de duração e número de passes realizados. Se por um lado, dados quantitativos possam levar a uma leitura e interpretação redutora da realidade, por outro, o maior problema desta distinção é que está principalmente focada em acções da própria equipa, quando estamos perante um jogo, que enquanto tal, sustenta-se na interacção entre duas equipas, e sendo assim, a decisão de como atacar passará muito pela forma como o adversário se encontra em determinado momento do jogo.

E devemos acrescentar que a questão não passa pelo entendimento que cada um de nós tem destes conceitos. Portanto, nada melhor que percebermos o léxico utilizado para identificar os dois métodos. Se um contra-ataque pressupõe uma acção “contrária ao ataque”, é fácil entender que o mesmo surge, inevitavelmente, após recuperação da bola ao ataque adversário. Por outro lado, ataque rápido, indica-nos uma situação em que, durante o ataque, portanto durante o momento ofensivo, a equipa deu velocidade ao seu jogo com o objectivo de chegar rapidamente a uma situação de finalização.

A evolução do entendimento do jogo para o ciclo dos quatro momentos, o qual adoptamos, vem clarificar esta questão. Assim, no domínio teórico, com o aparecimento dos momentos de transição, os dois métodos separam-se automaticamente, surgindo o contra-ataque no momento de transição ofensiva e o ataque-rápido no momento organização ofensiva. Contudo, esta teorização do jogo tem obrigatoriamente fundamento na prática. Como já referimos no passado, surgiu-nos como necessidade prático-teórica, a evolução da sistematização do jogo, sendo a clarificação destes conceitos, um bom exemplo desta necessidade.

A nossa perspectiva integra o contra-ataque como um sub-momento, opcional, da transição ofensiva. Opcional, porque, após o sempre presente sub-momento “reacção ao ganho”, ou seja o momento da recuperação de bola, a equipa pode decidir por contra-atacar ou valorizar / manter a posse de bola e entrar em organização ofensiva. O contra-ataque, antecedido então por recuperação da bola, surge quando a equipa procura atacar a baliza adversária, dada uma configuração de jogo favorável em espaço e / ou número. De forma a aproveitar as circunstâncias vantajosas, naturalmente que a equipa tem de ser rápida nas suas acções.

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As equipas escolhidas para ilustrar as diferentes situações não foram inocentes. Sento o Manchester City de Pep Guardiola, muitas vezes catalogada como uma equipa de posse, a verdade é que sempre que o jogo lhe fornece um contexto para contra-atacar, a equipa fá-lo com uma qualidade incrível. Nesta situação de Transição Ofensiva, apesar do muito tempo entre a recuperação e o contra-ataque, a equipa adversária optou por permanecer no sub-momento, reacção à perda da bola, procurando recuperá-la nesse timing, assim, não se reorganizou para defender e acabou por permitir espaços de circulação e penetração para o City chegar à tal situação favorável de espaço, e neste caso, também número, para desenvolver o contra-ataque.

O ataque rápido surge-nos, para nós, como um meio / recurso / método, no sub-momento de criação da organização ofensiva. Não sendo antecedido de recuperação de bola, caso contrário, seria o mesmo que o contra-ataque, o ataque rápido surge, quando, no momento de organização ofensiva, a equipa, encontra, por mérito em construção ou demérito adversário em impedir essa construção, uma condição favorável em espaço e / ou número para criar uma situação de finalização. Pelas mesmas razões que o contra-ataque, também nesta situação a equipa também tem que ser rápida nas suas acções.

Análise de (Pedro Bouças, 2017) no Lateral Esquerdo.

O Liverpool de Jürgen Klopp, também muitas vezes catalogada de uma equipa de contra-ataque, chega nas duas situações ilustradas, em Organização Ofensiva, precisamente em construção pela sua primeira linha, a um espaço entre-linhas onde encontrou a tal condição favorável em espaço e / ou número para criar duas situações de finalização.

Ambos os comportamentos constituem-se também como invariantes, ou seja, surgem no jogo, independentemente das ideias desenvolvidas por cada equipa. São no fundo um exemplo de fractais que o jogo de Futebol produz. A sua proporção, no número de vezes em que ocorrem, é que em função dessas ideias, se torna diferente de equipa para equipa.

E podem ainda, em cada caso concreto, ser avaliadas do ponto de vista da sua eficiência, eficácia e mesmo estética. Portanto, se um ataque-rápido, ou um contra-ataque foi decidido de forma inteligente, ou então se os mesmos se identificam como erros de decisão, possivelmente influenciados por uma vertigem cultural, muitas vezes quase permanente, para a velocidade das acções, independentemente da configuração do jogo. Porém, por outro lado, vai surgindo cada vez mais, o exemplo oposto. Equipas tão obcecadas com uma suposta cultura de posse de bola, que muitas vezes, e excluímos desta leitura determinados momentos estratégicos nos jogo, estando perante condições favoráveis para decidir um contra-ataque ou um ataque rápido, decidem, de forma pouco inteligente manter a posse e circulação da bola.

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A situação discutida, como o video identifica, coloca o Holstein Kiel, após ganhar o jogo aéreo de uma bola proveniente do Guarda-Redes adversário, num primeiro momento da Transição Ofensiva, assim, em reacção ao ganho da bola. Após sair da zona de pressão, a equipa não tem possibilidade de decidir o contra-ataque e opta pela valorização da posse de bola, tanto, que acaba mesmo a circulá-la pelo seu Guarda-Redes, surgindo assim, tempo e espaço para o adversário se reorganizar para defender. A equipa entra então em Organização Ofensiva. Perante a pressão alta adversária, o Guarda-Redes, optando por um passe longo no corredor lateral, acaba por conseguir chegar ao jogo entre-linhas e propiciar à equipa, a tal condição favorável em espaço e / ou número para criar uma situação de finalização. É o que sucede: a equipa dá velocidade ao seu jogo, chegando à profundidade e ao golo. Nestas circunstâncias, a partir do momento em que a bola entra entre-linhas, num atacante enquadrado com a baliza adversária, é portanto uma situação de ataque rápido.

Insistimos que não estamos perante um “tão só” problema de terminologia e muito menos de semântica. Entender o jogo é a base para entender o seu treino e a base para transmitir qualquer ideia a uma equipa. Paralelamente, a organização dos exercícios de treino, ou a análise de jogo, são outros bons exemplos da sua pertinência.

“(…) mesmo no jogo mais rápido há trabalho de casa, e há inteligência. Porque ser inteligente é explorar a forma mais rápida de chegar à baliza adversária em boas condições. A grande questão, é que na maioria das vezes, lá chegar com boas condições demora demasiado e exige mais elaboração e paciência. Quando não é o caso, tudo óptimo em relação a quem faz rápido, e com boas probabilidades de sucesso.”

(Pedro Bouças, 2018)

Qualidade individual

“(…) a equipa tem que estar em primeiro lugar e o talento dos jogadores é importantíssimo para acrescentar valor e dinâmica a equipa. Nunca um jogador pode comprometer a dinâmica de uma equipa, mas também a equipa não pode tirar asas a um jogador que tem potencial para voar… Equipa que depende de um jogador ou outro jogador em termos absolutos, não pode nunca ser uma grande equipa.”

(Carlos Carvalhal, 2014)