João Félix… o mago da intensidade

“O valor das coisas não está no tempo em que duram, mas na intensidade com que acontecem. É por isso que existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”

Fernando Pessoa citado por (João Romano, 2007)

Torna-se fundamental um ponto prévio. Vivemos num período em que o Futebol Português toca no fundo em termos éticos, consequência de uma quase total ausência de valores, traço que neste momento marca muitos dos agentes desportivos que nele actuam, nomeadamente aqueles com mais poder e responsabilidades de decisão. No entanto não podemos sonegar que há uma clara interdependência entre estes agentes, os adeptos e a restante sociedade. O Futebol, no que toca a esses valores, não é um nicho que vive desfasado da restante sociedade. Vivemos um período em que há uma clara guerra entre clubes, que se extremou, onde tudo serve como arma de arremesso. Este artigo, independentemente de pegar num exemplo específico exclui-se totalmente deste panorama. É verdade que procuramos produzir conteúdos que se procuram afastar da doença emocional que vai crescendo neste meio, porém, por vezes, há casos incontornáveis que devemos abordar e sublinhar. Nomeadamente por boas razões. João Félix é um deles. E enaltece precisamente a perspectiva contrária à negatividade que polui o Futebol: a paixão pelo jogo.

Se depois da apelidada “geração de ouro” nos questionávamos se aquele tinha sido apenas um fogacho momentâneo, hoje talvez tenhamos uma resposta diferente. Entre tantos problemas, dificuldades e paupérrimas condições oferecidas à Expressão Motora, Educação Física, Futebol de Rua e Futebol de Formação, continua a emergir imensa qualidade, nomeadamente em jogadores e treinadores. Pegando em “matéria prima” praticamente a “custo zero”, oferecendo condições precárias de trabalho, e deste pensamento excluímos obviamente Sporting, Benfica, Porto e Braga, mas que no entanto também se alimentam do trabalho desenvolvido nos restantes clubes, devemos perguntar qual é a área de actividade em Portugal que apresenta o mesmo sucesso financeiro e impacto internacional que neste momento o Futebol de Formação Português evidencia de forma clara? A resposta, pensamos ser… nenhuma. Nenhuma atinge o sucesso do Futebol. A questão interessante será… até que ponto as dificuldades vividas por jogadores e treinadores potenciam este sucesso. É uma questão para a qual não conseguimos ter uma resposta.

É portanto incrível, perante todas estas condições e a dimensão do país, a quantidade de jogadores de qualidade que estão a emergir do Futebol de Formação. Entre eles surge, João Félix. O seu antigo treinador no Futebol de Formação do FC do Porto, (Miguel Lopes, 2017) descreve-o como “mais dotado, extremamente inteligente, muito instintivo e tinha capacidade para decidir bem nos contextos mais difíceis. Sempre foi um miúdo capaz de tirar um coelho da cartola, fazer aquela jogada que ninguém espera, o golo que ninguém espera”. Em tempos comentámos que Félix fazia lembrar Cruijff na gestualidade, no drible, na pausa, na provocação quando fixa o adversário. De facto… mas não só. Cingindo-nos apenas a exemplos do Futebol Português, lembra-nos Aimar, Rui Costa, Deco ou Pedro Barbosa. Entre tantas coisas fantásticas em comum, destacamos uma. A pausa. Quando o jogo a pede. A tal que muda por completo a definição de intensidade no Futebol… a tal intensidade táctica… a tal intensidade específica do jogo. A tal que significa fazer bem e no tempo certo e não obrigatoriamente muito e depressa. Na forma como constrói, mas também como cria. O próprio drible é muito na essência da pausa, da mudança, da descontinuidade na execução que provoca e perturba emocionalmente o adversário.

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“Somos la última generación que ve partidos enteros. […] Porque están más acostumbrados a lo efímero. El partido de PlayStation dura 5 o 7 minutos apenas. Están acostumbrados a los resúmenes. A ver en el celular los goles de todo el mundo. Son víctimas de este estímulo.”

(Pablo Aimar, 2017)

O autor (Pedro Bouças, 2017) descreveu que hoje o futebol está subjugado por uma “pressa por uma emoção rápida que se zanga com quem pensa ou quer pensar o lance, o jogo. O “bruaá” em forma de desaprovação quando a bola não viaja tão rápido no sentido da baliza adversária quando tal é o desejo comum a uma toda bancada, a forma como não se entende que nem sempre o caminho mais rápido é o melhor, continuará a condicionar decisões aos melhores”. Será este um dos grandes méritos de jogadores como João Félix. A resistência a esta emocionalidade e irracionalidade, “ao pânico e à velocidade do Futebol actual” como o treinador português (Villas-Boas, 2009) identificou. Segundo ele “há pressão em torno dos treinadores de vencer, há pouca capacidade de pensar, como falávamos há bocado dos jogadores, há o sentido de urgência que o jogo actual tem…é tudo pânico, é tudo velocidade… e transmite um bocado a ideia do que é a sociedade actual”.  Também (Jorge Sampaoli, 2016), citado por (Luís Cristóvão, 2017) defendeu, que hoje o futebol “vive-se como sofrimento, porque se prioriza o êxito ou o ganhar acima do jogo. Hoje dizem-te que há que ganhar como seja e ganhar como seja significa jogar com níveis muito elevados de stress. […] Ataca-se a serenidade, ataca-se o prazer. Eu creio na minha ideia porque tenho muito amor pelo jogo, não porque padeça pelo jogo”.

Talvez essa seja uma das chaves de João Félix. A sua paixão pelo jogo superiorizou-se à pressão, ao stress, ao pânico, à irracionalidade. E garantiu-lhe uma racionalidade, mesmo que no domínio do subconsciente… um saber fazer… que lhe transmitiu que o jogo não pode ser jogado sempre à mesma velocidade, porque como o treinador português (Miguel Cardoso, 2018) referiu, “o futebol é como a música: a música que é toda do mesmo ritmo a gente não ouve durante muito tempo. O futebol precisa de nuances, tem tempos, tem timings, tem momentos, tem espaços que é preciso utilizar e criar”. Um saber fazer que associado a uma enorme qualidade de execução, lhe trouxe o domínio do tempo e do espaço. Um saber fazer que lhe trouxe a boa decisão… consequentemente… o sucesso. Essa será muito provavelmente a outra chave da qualidade de João Félix.

Podemos estar redondamente enganados, mas arriscamos que num determinado momento da sua vida, alguém disse… “ele tem imenso talento… mas falta-lhe… intensidade”.

“No Boxe bateres muito no teu opositor poderá trazer-te a vitória por pontos. O futebol é um jogo completamente diferente. Não é por bateres muito no muro, ou correres mais que o golo aparece, ou sequer as melhores oportunidades. O melhor jogo não é o que entra à bruta, mas o que explora subtilezas.”

(Pedro Bouças, 2017)

“O que define a intensidade

é o concreto onde o jogar

p’ra expressar máxima qualidade,

tal contexto tem de superar.”

(Vítor Frade, 2014)

O exercício de treino… na perspectiva da terceira pessoa… e a intervenção na sua operacionalização

“A intervenção do próprio treinador também é contexto!”

(Marisa Gomes, 2015)

Assistia-se a um exercício de treino. Procurando analisar o mesmo, várias pessoas opinavam sobre o seu objectivo e organização. No entanto, ignoravam uma dimensão fundamental na sua operacionalização… a intervenção do treinador. Sem este dado, todas elas podiam estar certas… ou erradas. Isto, porque tratando-se de um exercício que respeite as características do jogo, mesmo que represente apenas numa fracção do mesmo, será consequentemente, um exercício rico em comportamentos, assim, posicionando-se externamente ao processo, diferentes pessoas podem-lhe atribuir diferentes objectivos.

Assim, perante o “mesmo” exercício, alterando-lhe “apenas pequenas” coisas, como por exemplo a forma ou o momento como ele se inicia, este poderá servir objectivos de planeamento muito distintos. No fundo, para sermos correctos, na verdade já não será o mesmo exercício, nem sequer uma sua variante se o analisarmos na perspectiva dos objectivos. A este propósito, (Maciel, 2011), explica que na concepção do exercício “modela-se os contextos para que estes, não perdendo a sua natureza aberta, sejam facilitadores e catalisadores dos propósitos desejados. Em tais configurações de exercitação o papel principal é dos jogadores, devem ser eles a decidir e a interagir, desencadeando uma dinâmica que não deixando de ser determinística, por estar sobredeterminada a determinados propósitos, intencionalidades, não perde a dimensão imprevisível”. Jorge Maciel reforça que a ideia de propensão tem a ver com o facto de ser mais propício ou provável a ocorrência de determinado acontecimento, no caso do treino de Futebol, determinada interacção. Daí a ideia de modelar o contexto no sentido de tornar mais provável aquilo que se deseja que aconteça. Um aspecto relevante prende-se com o facto de ter de ser deliberadamente propenso, isto é, deve ter subjacente uma intencionalidade ou conjunto de intencionalidades conformes com o modo como queremos que a nossa equipa jogue e conforme as preocupações que entendemos mais prioritárias naquele momento do processo”. Importa salientar que, se o exercício de facto expressa a riqueza do jogo, a oposição será à partida garantida, portanto, o objectivo de planeamento estará numa das equipas / jogador, porém, a equipa / jogador adversário também estará a ser estimulada/o noutros comportamentos.

É deste modo que a intervenção do treinador na operacionalização do exercício se torna fundamental, por forma a incidir o foco, a concentração, para determinado comportamento ou acção, ou melhor, como explica Maciel… interacção. A sua intervenção, a sua expressão corporal, a sua emotividade, o seu feedback, ou mesmo a intencional ausência do mesmo, torna-se decisiva no processo aquisitivo, ou, no conceito mais generalista… na adaptação que o estímulo mesmo provoca no jogador. Na mesma linha de pensamento, Maciel acrescenta que “somente deste modo se torna possível que a configuração dada ao contexto, juntamente com uma intervenção condizente durante a exercitação, despoletem interacções que ao acontecerem façam emergir de forma exponenciada os critérios subjacentes aos nossos princípios de jogo. (…) Destaquei também o papel da intervenção, porque é esta que conjuntamente com a modelação do contexto que vai servir de catalisador e de meio para aproximar os critérios que os jogadores manifestam com os desejáveis para a forma como queremos jogar“. Também (Campos, 2007), defende que “Se tivermos que fazer essa intervenção e parar imediatamente o exercício para fazer perceber claramente que algo é errado, que algo não está correcto ou que algo pode ser importante, também não é só quando as coisas acontecem de negativo é também quando elas acontecem de positivo (…) “. Portanto, o autor acredita que “a focalização da atenção dos jogadores é direccionada pela configuração prática do exercício e por uma intervenção do treinador centrada nos aspectos hierarquicamente mais importantes”.

Como defendemos, esta intervenção não será uma qualquer, nem sobre a totalidade dos comportamentos que emergem do exercício. Deverá ser específica relativamente ao objetivo pretendido, principalmente na perspetiva do treinador que lidera o exercício. Neste contexto, (Casarin, et al., 2010), sustentam que a intervenção do treinador deve “fazer com que uma palavra signifique mil imagens” para o jogador e isto só se constrói com intervenção específica e constante durante o processo de treino”. Também para (Azevedo, 2011), “mesmo que os exercícios estejam em sintonia com o modelo de jogo, se não existir intervenção ou se esta não for adequada, eles podem tornar-se desajustados”. Citado por (Romano, 2007), Vítor Frade (2003, cit. por Martins, 2003), defende existir a necessidade de ser interventivo antes, durante e depois do processo.” Romano reforça assim, que “em primeiro lugar, parece importante a formação de uma «intenção prévia», de modo a antecipar a activação do córtex pré-frontal (Goleman et al., 2002). Interessa portanto, antes de iniciar o exercício, defini-lo claramente, assim como os objectivos que, através do mesmo, se pretendem alcançar, já que, de acordo com Goleman et al. (2002), quanto maior for a activação antecipada maior é a capacidade da pessoa para executar a acção. Posteriormente, durante o exercício, a intervenção do treinador é também ela decisiva. Ela pode (e deve) condicionar um exercício para os aspectos que se pretendem trabalhar, através de uma intervenção específica, centrada nos princípios que se pretendem abordar. Carvalhal (2003; 2005) afirma que o mesmo exercício pode ter objectivos diferentes consoante o momento, e que a forma como o treinador o conduz e direcciona é que é fundamental”.

Assim, desconhecendo o planeamento do treinador, sem a sua intervenção na operacionalização do mesmo, será uma tarefa extremamente difícil, e perigosa na perspectiva da avaliação do trabalho realizado, procurar identificar os objectivos e consequentemente o sucesso de determinado exercício ou sessão de treino.

“(…) a edificação do Modelo de jogo, dos vários momentos do jogo e a Especificidade é conseguida através dos exercícios propostos pelo treinador e pela sua intervenção nos mesmos.”

(Pedro Batista, 2006)

Só faz sentido existir o treinador se este for interventivo, mas interventivo no sentido de catalisador da apreensão de tudo aquilo que é conveniente e importante para o crescimento do processo.

(Vítor Frade, 2003)

História do treino do futebol [Subscrição Anual]

Publicamos um excerto de uma nova publicação de Saber Sobre o Saber Treinar exclusiva a assinantes do projecto, que introduz a evolução do processo de treino do Futebol. Acrescentamos que no futuro irão ser publicadas sub-páginas, descriminando as diferentes grandes etapas da sua evolução.

(…)

“Neste enquadramento, o autor (Ramos, 2003), explica que podemos identificar períodos da evolução do treino desportivo que, “na generalidade, caracterizou a evolução de resultados desportivos nas diversas modalidades e as suas relações com o processo de treino. Evidentemente que estas etapas não se sucederam mecanicamente nem foram sincronizadas entre as diversas modalidades. No entanto, dada a influência recíproca de ideias e de conhecimentos entre as várias especialidades desportivas, estes grandes períodos podem, mais ou menos claramente, ser identificados nas modalidades, situação que se verifica no Futebol”. Assim, segundo (Cardoso, 2006), “a constante procura de elevar o rendimento desportivo das equipas proporcionou ao longo dos tempos o desenvolvimento de diferentes metodologias e por sua vez diferentes concepções de ensino. Como afirma (Pinto, 1996) “o rendimento no Futebol foi ao longo da sua história valorizando factores diferentes: primeiro a «técnica» e posteriormente a «condição física» tiveram pesos muito significativos na eficácia do jogo””. Neste panorama, o professor (Dinis, 2012), relata que quando começou a treinar “o treino era basicamente proveniente do atletismo, era corrida. Depois havia o “conjunto”. Actualmente reformulou-se praticamente tudo“.”

(…)

Continua…

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