Valores Humanos III

Pela responsabilidade que transporta, mais importante que discutir ideias de jogo ou metodologia de treino, é para nós fundamental falar de valores humanos e consequentemente de liderança. Nomeadamente perante exemplos que observamos todas as semanas nos campos de futebol. Justificamos ainda, da mesma forma que iniciámos um segundo artigo sobre este tema:“Porque na nossa opinião não vale tudo para obter rendimento. E também, porque esse “tudo”, poderá no futuro ser uma causa para o insucesso. No Futebol e na vida.”

“Segundo (Urbea, et al., 2012), “qualquer departamento de uma empresa é o reflexo do seu chefe. Qualquer família é o reflexo dos seus líderes. Se um chefe é caótico, o departamento é caótico. Se os pais são desorganizados, os filhos são desorganizados. Não vale a pena lamentarmo-nos. Somos responsáveis pelo que transmitimos, fazemo-lo querendo ou sem querer”. O autor (Neto, 2012) vai mais longe e descreve que “a expressão de uma prática de futebol é o reflexo e o projecto da sociedade donde nasce. O reflexo, porque nele está a sociedade que o gerou; o projecto, porque também o futebol pode e deve ajudar à transformação da sociedade. Como pode negar-se, atendendo à paixão multitudinária que ainda o vai envolvendo, que o Futebol tenha todas as condições para concorrer à transformação da sociedade?” O autor acrescenta que o “Futebol, para ser um jogo solidário, terá de existir sempre, como dizíamos, uma aliança entre o saber e a vida, porque só sabe quem vive e só a partir deste conhecimento vivido que é possível falar de valores que humanizam o Futebol”. Esta ideia é reforçada pela opinião de René Meulensteen sobre o treinador escocês Alex Ferguson, em (Brackley, 2011), que não considera Ferguson como apenas um dos melhores treinadores de sempre, mas também “um dos melhores seres humanos, com elevados normas, elevados valores para as coisas normais que são importantes na vida. Para além de ser um grande treinador é um fantástico “treinador” de vida”.

Portanto, é para nós claro que… não vale tudo para ganhar.

Coragem… Específica

Haverá tanto a dizer sobre o discurso de Paulo Fonseca, após uma derrota de “digestão” difícil. Porém, mais do que palavras, interessa-nos aplaudir. Pela mensagem que transmite aos seus jogadores e restante clube, mas não só. Pela mensagem que nos deixa a todos. Porque como o próprio Paulo Fonseca explica, entre um golo sofrido e uma derrota, e todos os outros ganhos a curto e longo prazo há um claro balanço positivo. Quer queria, quer não, também pela homenagem que acabou por fazer a Johan Cruyff.

Isto leva-nos a outra questão… a tão aclamada Especificidade e a própria reflexão sobre a Intensidade que temos realizado neste espaço.

A preocupação pela Especificidade impôs a táctica como nuclear no treino dos Desportos Colectivos, dada da caracterização do seu rendimento. Numa primeira fase dessa evolução, como uma táctica abstracta ou geral da modalidade, numa segunda fase, como uma táctica específica de um determinada ideia ou Modelo de Jogo. Surgia no horizonte o fim do treino físico descontextualizado, e a sua tentativa de adicionar rendimento aos jogadores.

Numa linha similar, apesar de menos discutida, surge a dimensão Psicológica-Mental. Sempre se procurou adicionar “mentalidade” por palavras e pelos discursos nos balneários. A coragem é um bom exemplo, mas também podemos falar em agressividade, solidariedade, da própria concentração, etc.. Se acreditamos que a forma de estar do treinador, os seus actos e as suas palavras são fundamentais na liderança que exerce, nos valores que incute e no próprio jogo que idealiza, também acreditamos que por si só, diluem-se no processo, nomeadamente a longo prazo. Pior ainda perante determinadas ideias para o jogo para a sua equipa, antagónicas a esses valores.

Assim, coragem… Específica, é isto mesmo que Paulo Fonseca defende até ao derradeiro momento… uma determinada ideia de jogo, também ela corajosa. Como (Neto, 2012) defende, acontece uma variedade de reacções humanas ao mesmo tipo de factores e de situações porque não é reacção o que propriamente se dá, mas, antes, uma acção – e esta é iniciada intencionalmente por um todo que, de todo, jamais o é da mesma forma que o todo de outro: é o todo que enforma as partes e não estas que determinam aquele“. Portanto, é a ideia de jogo que tem de levar à coragem e não a coragem abstracta à qualidade de jogo.

Uma vez mais, dada a realidade complexa que nos envolve, é fundamental não a esfacelar e aproximar as nossas ideias e conceitos da tal Especificidade que a realidade exige. A Intensidade, é outro bom exemplo.

Para fazermos uma equipa funcionar, para fazermos uma verdadeira equipa, nós temos que ter os onze jogadores com a coragem de ter iniciativa, terem a coragem de quererem a bola, a coragem de quererem assumir o jogo”.

Paulo Fonseca, no programa ReporTV, “O Jogo”

“O indivíduo todo, inteiro

emerge da cultura táctica

que sustenta o bom jogo, primeiro

no jogar o jogo como prática!”

(Frade, 2014)

“Errar é aprender”

Como vem sendo debatido, parece hoje haver um excessivo proteccionismo com a criança, vedando-lhe, por vezes, a experimentação do erro. Simultaneamente, surge a rotulação da mesma perante esse erro, como se houvesse uma necessidade urgente de a avaliar, seriar, compartimentar e traçar os “diferentes” destinos desde muito cedo. Consequentemente é condicionada a sua aprendizagem, auto-estima, crescimento e influenciada a sua personalidade. Contrariando a história evolutiva do ser humano, perspectiva-se o erro como um problema e não como uma oportunidade de aprendizagem.

Obviamente que este não é um tema exclusivo do ensino escolar. É indiscutível a importância que a Escola deve ter no desenvolvimento da criança, porém, deve ser consciente de todos, a enorme influência que o desporto de formação tem formação da personalidade do jovem desportista. Desde logo pela motivação e escolha que a criança por ele transporta e realiza, por vezes até antagónicas à própria Escola.

Procurando outras consequências, o autor (Maciel, 2011) defende que “o erro é parte importante em qualquer processo de aprendizagem e para mim o treino é isso mesmo, um processo de ensino aprendizagem. Perceber porque se erra, alertar para o que está subjacente ao erro são aspectos determinantes, mas para isso o processo tem de permitir o erro, o problema é que muitas vezes a tensão criada pelos treinadores é tão grande que o jogador acaba por ter medo de errar, e claro, erra ainda mais, ninguém lhe dá pistas para corrigir o erro, e fica sem condições para lidar com o erro, entra numa espiral corrosiva. Além disso parece-me que os treinadores querem sempre tudo muito direitinho, têm a vertigem pelo controlo pleno das situações de treino, querem ser deuses de Laplace quando na verdade a essência do Jogo não é essa. O Jogo tem erro, tem ruído, tem inopinado e se treinarmos tentando diminuir isto ao máximo estamos a esterilizar uma realidade que não pode ser colocada num tubo de ensaio. Se vivido in vitro os jogadores errarão menos certamente, mas tornar-se-ão muito menos criativos e sucumbirão perante as novidades e imponderáveis que emergem da estrutura acontecimental do jogo. Tornar o erro fecundo, saber lidar com o erro e criar contextos que não o hipotequem é também uma forma de potenciar a criatividade dos jogadores. Além disso há a intervenção do treinador, que por vezes pode servir-se do erro como catalisador das aquisições que pretende, e tal intervenção poderá servir não somente para quem erra como também para os restantes jogadores. E aqui importa também salientar aquele que é um dos grandes propósitos da Periodização Táctica, o desenvolvimento concomitante de um saber fazer com um saber sobre esse saber fazer, pois é esse saber sobre esse saber fazer que vai levar o jogador a tomar consciência que errou, ou que determinado tipo de ajustamento ou resposta que dá ao contexto, segundo aquele saber fazer é desajustado. Mesmo que tal não fosse noutro jogar, ou relativamente àquilo que poderia ser anteriormente (com outro treinador) uma prioridade, mas que agora se assume como um erro. O que reforça a dimensão relativa do erro e a necessidade de sintonização com o que se pretende. Por exemplo a maior parte das pessoas diz “que para trás anda o caranguejo” e quando vêm um passe atrasado abanam logo com a cabeça, mas isso em determinadas circunstâncias pode ser algo que revela um critério congruente com aquilo que eu posso desejar, logo não valorizo como erro”.

Olhar para o erro/fracasso como uma derrota é meio caminho andado para o surgimento de outros problemas, desde a baixa da auto estima à desistência. Erros e fracassos deveriam, pelo contrário, ser considerados oportunidades de aprendizagem. Algumas questões importantes se podem colocar com esse objetivo: O que correu mal? O que poderia ter sido feito para o evitar? Se este caminho não foi bem escolhido, quais são as alternativas possíveis? Quais são as vantagens e os inconvenientes de cada uma? Como se pode desdobrar o objetivo que não foi atingido em objetivos intermédios mais exequíveis? Diz-se que “errar é humano”. Aceitar os erros também o deve ser. Não uma aceitação passiva, mas uma aceitação ativa centrada no desejo de aprender e de melhorar, conjugada com os verbos “analisar”, “tentar”, “persistir” e “conseguir”.”(Azenhas, 2011)