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A apropriação cultural a Fernando Chalana

“Emular al ídolo es a lo que juegan millones de niños cada día en el mundo entero. (…) Cada vez que estos ídolos se asoman a la televisión con su instrumento (un balón, una raqueta o un coche), se convierten en maestros de miles de niños que los miran con los ojos llenos de admiración.”

(Jorge Valdano, 2014)

Partiu Fernando Chalana. Partiu um dos grandes. É vulgar dizer que o património do Futebol fica mais pobre, mas isso não é bem verdade. O património fica. Pelos seus feitos, pela sua história, nas lendas que criou comprovadas pelos relatos das testemunhas que o viram jogar e pelos arquivos dos jornais e televisão. E pelo homem que foi. No fundo, toda a sua qualidade, manifestada na sua relação com a bola, lateralidade e recursos técnicos, que num todo composto também pela sua enorme humanidade, inteligência táctica e criatividade invulgares, consumavam a tal genialidade que todos lhe reconhecem.

Tal qualidade garantia-lhe uma fantástica eficiência nas suas acções, parecendo tornar simples, o complexo. Eficiência essa que lhe garantia uma regular eficácia que mescladas com uma estética inconfundível e apaixonante tal qual a sua paixão pelo jogo, colocavam-no no panteão dos grandes do Futebol. Do Futebol português, mas também do Futebol mundial. Chalana tornou-se então património. Tornou-se, cultura.

Cultura, que muitas crianças do seu tempo procuravam imitar. No meu tempo, “éramos” na nossa “rua”… Luís Figo, Rui Costa, Paulo Sousa, João Vieira Pinto, Fernando Couto, Maradona, Van Basten, Baresi, Romário, Roberto Baggio, Matthäus, Redondo, Batistuta, Ronaldo “Fenómeno”, etc., etc.. Imitávamos consciente ou inconscientemente as suas acções, os seus comportamentos, até o mais ínfimo detalhe. Porém, provavelmente nessa geração, talvez tenha sido o fabuloso Paulo Futre o mais adorado e a maior vítima de “apropriação cultural”… Pelo menos em Portugal. O seu drible, muitas vezes através de uma ginga e gestualidade desconcertantes, nomeadamente através da peculiar forma como movimentava os braços de forma enganar os adversários, mas também as suas mudanças de velocidade, os seus remates inesperados, muitas vezes até de “trivela”, eram vistos em qualquer espaço aproveitado para campo de futebol. Fosse no baldio, no ringue da escola, no ringue do bairro ou no corredor lá de casa. Porém, até o incrível Futre também se “apropriou culturalmente”.

“Tenho muitas jogadas dele na cabeça. Ainda hoje não sabemos como ele fazia para fintar, um, dois, às vezes três jogadores, só com a cintura, sem tocar na bola. Acho que muitos dos meus movimentos de braços – uma grande virtude minha, quando jogava, vêm também daquele movimento de cintura, sem tocar a bola. Eu tentava imita-lo de qualquer maneira. Quis ser como ele durante toda a minha infância, e depois na minha adolescência. Era único, a minha referência. Eu treinava muito mais do que outros jogadores jovens porque queria chegar perto deste génio, queria ser profissional e chegar perto do nível dele. Mas nunca cheguei, nunca cheguei porque era impossível.”

(Paulo Futre, 2018)

Torna-se fundamental dizer que se engana redondamente aquele que pensa que as mais recentes distorções sobre a “apropriação cultural” são produto de um só “grupo” social. Esse não só é um pensamento falacioso como está ao mesmo nível do objecto da crítica. A estupidez não escolhe raças, países, clubes, partidos ou credos. A história humana comprova-o.

Enganam-se também as opiniões que dizem levianamente que o Futebol é apenas um jogo. O Futebol é intemporal e o enorme impacto social que produz tornam-no muito mais do que apenas um jogo. Paralelamente ao enorme espectáculo que se tornou, é um incrível veículo de transmissão de valores. Reproduz a uma escala mais pequena a essência do ser humano e a sua necessidade em cooperar, ser solidário e competir. De forma saudável, respeitando os outros e primeiramente, a si mesmo e a sua humanidade. Desta forma, manifestando a sua necessidade de viver em sociedade.

O jogo de futebol ensina-nos a não segregar, separar e a respeitar o outro. O outro indivíduo, o “outro”, equipa. Seja pela raça, cor da pele, morfologia, estética, religião, partido político, características técnicas, forma de jogar, etc., etc. Como é habitual dizer-se… “lá dentro são todos iguais”. Acrescentamos… são todos iguais nos valores e justiça perante o jogo, porém com individualidades e ideias colectivas diferentes. A riqueza cultural e diversidade no jogar são qualidades decisivas para vencer. Tal qual, num plano mais macro, são fundamentais para a espécie humana ter subsistido até hoje.

Estas diferenças e diversidade… fazem portanto parte de uma riqueza cultural incrível, que consubstancia outra dimensão fenomenal do jogo, à imagem da sociedade em geral. Uma riqueza que não cresceu isolada, mas sim fruto da difusão, interacção e socialização dos diferentes povos e culturas. Conseguimos, por exemplo, imaginar a riqueza do jogador brasileiro sem a mistura cultural e genética do povo nativo da América do Sul, com as qualidades dos Africanos, Europeus e até Asiáticos? Conseguimos imaginar um golo de grande penalidade ser anulado porque não seria permitido copiar a ideia de Antonín Panenka? Ou o golo na jogada do pontapé de saída do PSG no último jogo? Pelo menos Bournemouth, Eibar, PSG em Sub19 e Real Madrid, estes últimos contra o próprio PSG… com maior ou menor sucesso, fizeram exactamente o mesmo. E ainda a impossibilidade da existência do Barcelona de Guardiola, porque se inspirou em Johan Cruyff, que por sua vez “bebeu” conhecimento em Rinus Michels, que originalmente sofreu influências de Jack Reynolds, entre outros? O próprio Futebol. Não se sabe exactamente o seu ponto de origem tendo em conta as suas inúmeras raízes culturais, mas tendo em conta que foram os britânicos a regulamentá-lo, todos os países inclusive Portugal, realizaram então, a determinado momento, uma apropriação cultural. Imaginamo-nos então sem Futebol? E regressando ao início… Futre não teria sido… o grande Futre.

A cultura é sem dúvida dos bens mais preciosos que podemos ter e que no fundo também nos distingue enquanto seres humanos. Por outro lado, tal como a uma equipa, ninguém consegue, culturalmente, copiar outro indivíduo de forma integral. No máximo, acrescenta a si, transforma a sua identidade e contribui para a diversidade e riqueza cultural da espécie. Sendo por transmissão, ou por “apropriação”. No final do dia, “somos todos simplesmente um” como confessou Justin Britt-Gibson para o Washington Post (Wikipédia, 2022) a propósito do tema, e como defendemos no artigo anterior.

“Foi a minha referência, a minha inspiração, o meu ídolo. Dificilmente estava aqui, a falar neste momento, se não fosse o Chalana. Ele teve muito que ver com a carreira que fiz. Eu tentava imita-lo, era eu jogador do Sporting com 11 anos. Já ia ao Estádio da Luz, para o terceiro anel. Eu não ia ver o Benfica, ia ver este pequeno grande génio.“

(Paulo Futre, 2022)

Free the Kids III

“O futuro é imprevisível… todos nós sabemos que as crianças têm extraordinárias capacidades, capacidades para a inovação. Temos crianças que são fantásticas, que para mim encontraram o seu talento. Todos os miúdos têm talentos fantásticos e nós estragamo-los impiedosamente.”

Ken Robinson

Vivemos num tempo de grande sedentarismo e as crianças sofrem por isso. É um tempo de analfabetismo motor, porque elas não têm de facto uma literacia corporal adequada, porque o tempo de brincar na rua desapareceu, está em vias de extinção. As crianças hoje não têm tempo para brincar, explorar com os amigos a rua, não jogam à bola – porque uma coisa é jogar futebol, outra coisa é jogar à bola. É preciso dizer que há declínio enorme nas últimas décadas do ponto de vista de tempo e espaço para brincar. Para ter uma ideia, 70% das crianças em Portugal brincam menos de uma hora por dia. As crianças hoje têm menos tempo para brincar do que os prisioneiros nas prisões, que têm mais tempo de ócio fora das celas. Tempo, na infância, passou a ser um treino muito organizado, muito estruturado, muito limitado. Temos currículos escolares muito extensos e intensos, e a criança passa muito tempo sentada e quieta, sem mexer o corpo. É uma criança sedentária por princípio, devido ao facto de se terem criado agendas muito organizadas.” 

(Carlos Neto, 2017)

Recuperamos ainda um vídeo publicado num artigo de 2016.

“Life is not linear, it is organic. We create our lives symbiotically as we explore our talents in relation to the circumstances they helped to create for us.”

Ken Robinson

“Cada ser humano é um universo de estudo”. O “estranho” caso de Mafalda Mariano.

“Para mim, a expressão “todos os jogadores são iguais” é a maior mentira no desporto. Nem todos são iguais. Nem todos têm de ser tratados de forma igual. Com o mesmo respeito sim… (…) Descobrir cada um é o mais fascinante na nossa função…”

Pep Guardiola citado por (Santos L. , 2013)

Fruto, uma vez mais, do pensamento analítico e cartesiano que se enraizou na nossa cultura e raciocínio, o ser humano continua a ser seriado e catalogado como se de uma peça de mobiliário se tratasse. Não nos estamos a referir à procura de padrões comportamentais. Referimo-nos a identificação de características muito genéricas como a idade, o sexo, a morfologia ou mesmo a fisiologia, e a partir daí colocar adultos e crianças em categorias mais ou menos estanques. No futebol de formação é comum depararmo-nos, com opiniões de responsáveis técnicos, de que por exemplo, “miúdos com determinada idade devem jogar futebol de X” ou “as raparigas devem jogar com raparigas e rapazes com rapazes”. Ignora-se porém, a sua complexidade, e que cada ser humano é possuidor de uma individualidade, passe a redundância… singular, com um particular crescimento e traços exclusivos. Como Yuri Verkhoshansky, citado por (Silveira Ramos, 2004) defendeu, “cada ser humano é um universo de estudo”. Também (Barreiros, 2016) sustenta que “o desenvolvimento é um conceito de raiz biológica que procura exprimir o conjunto dos processos de transformação de um organismo ao longo da sua vida. No caso do desenvolvimento humano, este processo inclui inevitavelmente o conjunto das transformações da vida psíquica e os efeitos de interações sociais constantes. O desenvolvimento humano é, por natureza, biológico, psicológico e social, o que significa também que estas dimensões do desenvolvimento interagem, produzindo uma notável complexidade e individualidade“. Assim sendo, cada indivíduo apresenta as suas necessidades particulares.

Mafalda Mariana, aos 12 anos, teima em provar que o pensamento tradicional está profundamente errado. Há quatro anos a jogar em competições federadas com rapazes, inclusive dois desses anos contra uma maioria de adversários de idade superior. Começou, aos 8 anos, a jogar Futebol de 7, portanto, numa complexidade de jogo acima da regulamentarmente definida para a sua idade, o Futebol de 5. Na presente época deu um semelhante “salto” para o Futebol de 9. Durante este período formou equipa com outros miúdos de enorme talento, que sempre lhe reconheceram o dela, tratando-a como igual. Por vontade e decisão própria tem recusado passar para as competições femininas em clubes de maior dimensão, por sentir que o actual contexto onde treina e compete, é o mais adequado e desafiante à sua qualidade. Naturalmente, também pela amizade que construiu com os companheiros, aspecto que um regulamento competitivo que separa por completo, rapazes de raparigas no futebol de formação a determinado momento, ignora em absoluto.

“Como te sentes a jogar numa equipa de rapazes contra rapazes?

Sinto-me bem, pois os meus colegas receberam e tratam-me como igual. A maioria dos meus adversários respeita-me.”

Mafalda Mariano, 2017 em entrevista ao website www.futebolfemininoportugal.com

Ignora-se também que existem aspectos ainda mais decisivos para a evolução da criança do que a própria complexidade do modelo competitivo. Uma criança, numa equipa de Futebol de 7, à qual seja imposto jogo directo e marcação individual, não terá com certeza mais propensão à sua relação com bola, com o centro de jogo e desafio à inteligência táctica, que o jogo curto e apoiado e a Defesa Zonal potenciam, mesmo quando solicitados num contexto competitivo de Futebol de 11. Neste sentido, (Fábio Ferreira, 2013), descreve que “de acordo com Pacheco (2001), a competição em idades mais jovens depende da qualidade da sua prática e da intervenção por parte dos treinadores, dos dirigentes e dos pais que enquadram a criança na actividade desportiva. Por isso, é extremamente importante que se respeite a individualidade biológica, cognitiva e emocional da criança (Fernandes, 2004). Assim sendo, é fundamental que no futebol de formação as competições estejam ao serviço dos jovens futebolistas, estando adequadas às características das crianças e do seu nível de desenvolvimento (Pacheco, 2001) tornando-se uma ferramenta de auxílio para que os objetivos de formação sejam atingidos. Pacheco (2001) refere ainda que o problema induzido pela competição nos escalões mais jovens são as distorções impostas pelos adultos”.

Em entrevista a (Xavier Tamarit, 2013), o professor Vítor Frade questiona: “você já viu ou acha que o gajo que vai tocar piano, primeiro vai andar a correr à volta do piano ou fazer elevações ou flexões?! Não. Os putos vão, se tiverem dois, «olha, joga tu ali e eu ali», se tiverem onze, «seis para aqui e cinco para acolá». É isso que eles fazem, é Futebol com bola!” No entanto, condicionados pelas ideias, preconceitos e receios dos adultos, o autor (Carlos Neto, 2017) deixa a pertinente questão: “qual é o nível de participação das crianças na sua formação desportiva?” E responde. É tudo imposto. Tal e qual como nas escolas, onde têm de estar sentadas, quietas e a ouvir professores cansados, velhos e chatos. O que é que elas gostariam de fazer no treino? Algumas vez os treinadores ouvem as crianças? Os pais ouvem os próprios filhos? A formação de crianças e jovens em Portugal é de uma visão autocrática e isto é mau, porque as crianças do século XXI mereciam outro respeito e um processo mais democrático. Haveria mais participação, um melhor ambiente, mais entreajuda… como acontece nos países que já o fazem de forma mais adequada, como o Canadá e alguns países nórdicos. As crianças não são atletas em miniatura. Eu posso fazer um campeão à martelada. Se repetir exaustivamente, eu chego lá. Só que ele não vai ser criativo, não se vai adaptar, vai morrer cedo. Se eu fizer um atleta inteligente, dinâmico, com capacidade adaptativa, esse é que vai ser um bom atleta, e quero na formação um modelo que forme estes atletas”.

Por outro lado, autor (Esteves, 2010), partilha a visão de Vítor Frade ao distinguir especificidade precoce e especialização precoce. Segundo Frade as melhores equipas na formação, treinam sob a especificidade precoce, evitando os problemas causados pela especialização precoce. Para Esteves “quando treino em especificidade precoce, desde cedo, com diferentes graus de complexidade numa progressão complexa de muitos anos, consigo um jogador muito mais evoluído, pelo simples factor confiança. A repetição constante leva a sistematização, ao hábito e isso com o passar dos anos leva à «expertise». As grandes mentes, em diferentes sectores da história da humanidade, dificilmente iniciaram as suas trajectórias em fase adulta. Grandes lutadores iniciam as suas lutas muito cedo, entre 6 a 8 anos, grandes pianistas idem, grandes jogadores iniciam suas trajectórias no Futebol de rua, na escola, nos campos de praça, logo aos 5, 6 anos”. Por outro lado o autor defende que a “especialização precoce é a maior negação do princípio da individualidade biológica. Não é possível aceitar que todos os seres humanos são diferentes e que a qualquer momento pode surgir um novo Pelé ou Maradona se logo ao se iniciar um treino podamos todas as possibilidades de gerar este comportamento, criando uma espécie de fábrica de jogadores, fazendo tudo igual, sendo que a grande graça está em quem faz o diferente”. 

Neste sentido, o treinador português (Carlos Carvalhal, 2010) destaca a “importância de desenvolver os sentidos e de experimentar as sensações em contacto com o meio (perspectiva ecológica) de forma a testarmos todas as nossas capacidades fazendo do ensaio / erro uma autodescoberta. A individualidade é assim um conceito obrigatoriamente agregada à noção de criatividade: o que vivencio enquanto jogador potencia as minhas qualidades, exponenciando-as; faz com que codifique de determinada forma o significado do que vivi, determinando também a conexão que farei com episódios semelhantes no futuro”. O professor (Francisco Silveira Ramos, 2013), conclui que “o futebol é um jogo coletivo, mas é feito de individualidades e temos até que fomentar essas individualidades”. O autor sustenta ainda que é necessário “que o trabalho para eles seja rico e criativo”. Rico e criativo, implica experimentar diferentes contextos e desafios, e garantir uma maior propensão do mais favorável ao estágio de desenvolvimento individual e desejos de cada criança. No fundo, o caminho trilhado autonomamente por cada criança no Futebol de Rua, em regime de auto-descoberta e longe da intervenção do adulto.

“O possível

é o futuro do impossível

o padrão de problemas

não se acorrenta por esquemas,

nenhuma impossibilidade

é impossível…

Não tendo na robotização a verdade

a complexidade é exequível.”

(Frade, 2014)

Francisco Silveira Ramos

Para os menos conhecedores do futebol português e da evolução metodológica vivenciada, o professor Francisco Silveira Ramos é sem dúvida uma figura incontornável do jogo. Durante os anos 90 e princípio do século XXI, momento em que o treino era determinado pela dimensão física, no qual quem pensava “fora da caixa” era hostilizado pelo pensamento vigente, Silveira Ramos foi um dos poucos, que com coragem, assumiu que a preocupação central do treino deveria ser o cérebro e a decisão táctica. Defendendo a “integração dos factores do rendimento”, a sua visão diferia de forma abissal do “treino integrado” muito típico no Futebol Espanhol, mas também com expressões no Futebol Português. Como sustentámos no tema de Saber Sobre o Saber Treinar, “O treino integrado e sintético” tinha na mesma como preocupação central a dimensão física, porém aqui camuflada por exercícios com bola e acções do jogo. Silveira Ramos não só anteviu outro rumo que hoje se concretiza, como formou muitos técnicos em cursos de treinadores e licenciaturas, e ainda ajudou a crescer, nas selecções jovens portuguesas alguns dos maiores talentos do futebol português. Finalmente, revelou ainda grandes preocupações com o Futebol de Formação e o desaparecimento do Futebol de Rua.

Assumimos que o professor Francisco Silveira Ramos foi decisivo na forma como hoje vemos o jogo e o treino e dos que mais nos inspiraram a criar este espaço. Apesar do facto passar despercebido à maioria da comunicação social, Portugal pode-se orgulhar em contar com alguns dos maiores pensadores deste jogo, que contribuíram para a tal ruptura de conhecimento que já descrevemos. E sem dúvida que Silveira Ramos é um deles. Deixamos várias ideias do professor num recente programa televisivo, que dado o conhecimento dos intervenientes e das ideias abordadas, fugiu à norma do panorama televisivo português.

O Treinador Português:

A dimensão estratégica:

O treinador de “formação”:

O jogo mecânico e a música:

A crescente riqueza comportamental de cada função e a repercursão na dimensão física:

A era das dinâmicas:

Jogo curto e apoiado:

Criatividade defensiva:

Individualização do treino:

“Cabe-nos encontrar as metodologias que permitam que o processo de treino se adapte a essa realidade, adaptando os praticantes às exigências da competição.

Francisco Silveira Ramos, 2003

Free the Kids II

O jornal Expresso publicou um artigo, contendo várias opiniões sobre o “ensino doméstico” enquanto alternativa ao tradicional ensino escolar.

http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-03-13-Viver-e-aprender-sem-ir-a-escola

Após publicarmos o video sobre a eventual ameaça à “liberdade” que as crianças vivem na sociedade actual em www.sabersobreosabertreinar.com/2016/03/free-kids.html, este artigo reforça o problema. No mínimo devemos reflectir sobre algumas ideias que descrevem a aprendizagem de crianças na ausência do meio escolar.””Até aí, Simone tinha aptidão para as letras (começou a escrever as primeiras linhas aos 3 anos). Com as aulas, que nem eram diárias, a mãe começou a reparar que a menina parecia estar a ganhar “relutância” a algo que gostava. “Quando me pergunta qual é aquela letra eu não vou negar a resposta à criança… Eles começam e nós apoiamos. Ela começou a escrever coisas muito interessantes com letras maiúsculas de ouvido. Ouvia, juntava e escrevia“.”

““A nível emocional são muito seguros de si e têm uma auto estima muito boa, são muito sinceros, espontâneos e nada envergonhados. Não pensam que têm de fazer as coisas para agradar aos outros, para fazer boa figura ou porque vão ser avaliados. Conhecem os seus próprios limites e param quando sentem que os estão a ultrapassar, sem para isso necessitarem de castigos, ameaças ou coerção”, conta a antiga professora. Timo “devora livros”. Por dia lê pelo menos dois. Agnes acredita que talvez o gosto pela leitura não fosse tanto, se o filho andasse na escola. “Aprendem muita coisa. Talvez os outros também aprendam, mas aprendem pela repetição e memorização, por medo de más notas e pela pressão de pais e professores. No ensino doméstico, as crianças têm a possibilidade de aprender por motivação intrínseca. A maioria das crianças da idade deles não gostam e ler”, acrescenta.”

“Lá para as 6h da manhã, os miúdos já estão a pé. Acordam cedo e cheios de “inspiração e vontade de fazer mil e uma coisas”. Passeiam pelo rio e o mato. Trepam às árvores e mergulham nas águas. Em casa, “brincam muito, constroem legos e ajudam na horta”. Um dia na vida de Timo e David não tem espaços em branco. Na aldeia, já todos sabem que os dois andam sempre por perto. “Eles veem a vida real: nos correios são eles que põem os selos e no café vão ter com a padeira para ver como se faz o pão, ajudam o moleiro a fazer a farinha… São muito amados e mimados por toda a gente, pois são os únicos que andam por lá enquanto todos os outros estão fechados na escola”. Agnes não prende os filhos e garante que se alguma vez lhe pedirem para irem à escola, irão. Mas por agora nem Timo nem David parecem interessados. “Coitados dos outros meninos, estão ali o dia todo presos, sem poderem fazer o que querem”, dizem os irmãos. “Dizem-me que quando crescerem querem ser exploradores multifacetados, o que na realidade já são. Exploram o mundo real diariamente, em todas as suas vertentes”, conta a mãe.”Noutro artigo, o matemático Edward Frenkel alinha-se na mesma perspectiva. Segundo ele, “muita gente tem uma relação traumática com a Matemática. Uma das razões tem a ver com o facto de o ensino da Matemática, tal como é feito na grande maioria das escolas, dar demasiado ênfase à resposta. Em vez de se encorajar os nossos alunos a serem curiosos e a procurarem a resposta, nós exigimos que eles a dêem. O ensino baseia-se quase exclusivamente em testes e em ver em quem é mais rápido a encontrar a resposta. E muitos sentem-se embaraçados e inferiores porque não conseguem fazê-lo. Essa dor fica. Até podem depois não se lembrar do incidente concreto, mas o trauma ficou lá”. Este testemunho reforça ainda a ideia transmitida no nosso artigo sobre a intensidade, particularmente o caminho educativo e consequentemente social que estamos a adoptar, no qual se coloca em causa a autonomia, a criatividade, a inteligência e a individualidade em troca da mecanização, da rapidez não pensada, da estandardização.Agravando tudo isto, temos ainda o crescente comportamento negativo de muitos pais…

“Errar é aprender”

Como vem sendo debatido, parece hoje haver um excessivo proteccionismo com a criança, vedando-lhe, por vezes, a experimentação do erro. Simultaneamente, surge a rotulação da mesma perante esse erro, como se houvesse uma necessidade urgente de a avaliar, seriar, compartimentar e traçar os “diferentes” destinos desde muito cedo. Consequentemente é condicionada a sua aprendizagem, auto-estima, crescimento e influenciada a sua personalidade. Contrariando a história evolutiva do ser humano, perspectiva-se o erro como um problema e não como uma oportunidade de aprendizagem.

Obviamente que este não é um tema exclusivo do ensino escolar. É indiscutível a importância que a Escola deve ter no desenvolvimento da criança, porém, deve ser consciente de todos, a enorme influência que o desporto de formação tem formação da personalidade do jovem desportista. Desde logo pela motivação e escolha que a criança por ele transporta e realiza, por vezes até antagónicas à própria Escola.

Procurando outras consequências, o autor (Maciel, 2011) defende que “o erro é parte importante em qualquer processo de aprendizagem e para mim o treino é isso mesmo, um processo de ensino aprendizagem. Perceber porque se erra, alertar para o que está subjacente ao erro são aspectos determinantes, mas para isso o processo tem de permitir o erro, o problema é que muitas vezes a tensão criada pelos treinadores é tão grande que o jogador acaba por ter medo de errar, e claro, erra ainda mais, ninguém lhe dá pistas para corrigir o erro, e fica sem condições para lidar com o erro, entra numa espiral corrosiva. Além disso parece-me que os treinadores querem sempre tudo muito direitinho, têm a vertigem pelo controlo pleno das situações de treino, querem ser deuses de Laplace quando na verdade a essência do Jogo não é essa. O Jogo tem erro, tem ruído, tem inopinado e se treinarmos tentando diminuir isto ao máximo estamos a esterilizar uma realidade que não pode ser colocada num tubo de ensaio. Se vivido in vitro os jogadores errarão menos certamente, mas tornar-se-ão muito menos criativos e sucumbirão perante as novidades e imponderáveis que emergem da estrutura acontecimental do jogo. Tornar o erro fecundo, saber lidar com o erro e criar contextos que não o hipotequem é também uma forma de potenciar a criatividade dos jogadores. Além disso há a intervenção do treinador, que por vezes pode servir-se do erro como catalisador das aquisições que pretende, e tal intervenção poderá servir não somente para quem erra como também para os restantes jogadores. E aqui importa também salientar aquele que é um dos grandes propósitos da Periodização Táctica, o desenvolvimento concomitante de um saber fazer com um saber sobre esse saber fazer, pois é esse saber sobre esse saber fazer que vai levar o jogador a tomar consciência que errou, ou que determinado tipo de ajustamento ou resposta que dá ao contexto, segundo aquele saber fazer é desajustado. Mesmo que tal não fosse noutro jogar, ou relativamente àquilo que poderia ser anteriormente (com outro treinador) uma prioridade, mas que agora se assume como um erro. O que reforça a dimensão relativa do erro e a necessidade de sintonização com o que se pretende. Por exemplo a maior parte das pessoas diz “que para trás anda o caranguejo” e quando vêm um passe atrasado abanam logo com a cabeça, mas isso em determinadas circunstâncias pode ser algo que revela um critério congruente com aquilo que eu posso desejar, logo não valorizo como erro”.

Olhar para o erro/fracasso como uma derrota é meio caminho andado para o surgimento de outros problemas, desde a baixa da auto estima à desistência. Erros e fracassos deveriam, pelo contrário, ser considerados oportunidades de aprendizagem. Algumas questões importantes se podem colocar com esse objetivo: O que correu mal? O que poderia ter sido feito para o evitar? Se este caminho não foi bem escolhido, quais são as alternativas possíveis? Quais são as vantagens e os inconvenientes de cada uma? Como se pode desdobrar o objetivo que não foi atingido em objetivos intermédios mais exequíveis? Diz-se que “errar é humano”. Aceitar os erros também o deve ser. Não uma aceitação passiva, mas uma aceitação ativa centrada no desejo de aprender e de melhorar, conjugada com os verbos “analisar”, “tentar”, “persistir” e “conseguir”.”(Azenhas, 2011)

Free the Kids

A propósito da apresentação de Sir Ken Robinson sobre a actual educação das crianças, que publicámos neste espaço:

www.sabersobreosabertreinar.com/2015/03/ensino-individualidade-criatividade.html

Uma recente campanha, baseada num estudo realizado em dez países, a mais de 12000 pais de crianças entre os 5 e os 12 anos, trouxe esta conclusão que reforça a visão de Robinson.

“O autor (Carvalhal, 2010), baseando-se em Sir Ken Robinson, explica que “existe a necessidade de construir um novo Paradigma educacional, centrado no descobrir e desenvolver as competências individuais de cada ser humano, criticando o paradigma vigente relativamente à educação e à forma como “produzimos” cada vez mais Tecnocratas. (…) Por aqui podemos aferir a importância de desenvolver os sentidos e de experimentar as sensações em contacto com o meio (perspectiva ecológica) de forma a testarmos todas as nossas capacidades fazendo do ensaio/erro uma autodescoberta. A individualidade é assim um conceito obrigatoriamente agregada à noção de criatividade: o que vivencio enquanto jogador potencia as minhas qualidades, exponenciando-as; faz com que codifique de determinada forma o significado do que vivi, determinando também a conexão que farei com episódios semelhantes no futuro. Em suma, a autodescoberta é resultado de UM percurso singular, percurso, esse que poderá exponenciar as minhas CAPACIDADES (únicas), através da minha INTELIGÊNCIA. Só esse processo bem singular e CONSCIENTE de autodescoberta me tornará um criativo ÚNICO E NÃO REPRODUTÍVEL. Por isso, Sir Ken Robinson referiu que “As comunidades humanas dependem de uma diversidade de talentos e não de uma ideia singular de capacidade. O mais importante dos nossos desafios é restabelecer a nossa noção de capacidade e inteligência”. A noção de capacidade e inteligência de cada um!”.

“Joguei à bola todos os dias da minha vida desde os três anos”.
Lionel Messi

Ensino, Individualidade, Criatividade…

Antigamente, sobravam tempo, espaço e oportunidades para as crianças jogarem longe das regras dos adultos. Nesses espaços não havia limite de toques ou caminhos proibidos. Muito menos caminhos obrigatórios.

Paulo Sousa

Animação adaptada de uma palestra dada na RSA por Sir Ken Robinson.

“Jogar de forma destruturada, em espaço livre, com reduzida supervisão é o berço de qualquer criança. Para que a próxima geração cresça saudável, equilibrada e apta para beneficiar da sua educação, devemos assegurar que as crianças vão para a rua jogar”.

Sue Palmer, escritora e especialista em crianças, citada por (Cooper, 2007)

A Descoberta Guiada surge na mesma linha do método psicogenético, um ideal educativo criado por Lauro de Oliveira Lima, estruturado a partir das descobertas científicas de Piaget. Este método defende que “O professor não ensina; ajuda ao aluno a aprender”. Segundo (Bello, 1995), “professor deve deixar de lado sua postura de “professor-informador” para assumir a postura de “professor-orientador“, assim como um “técnico de Futebol”, que organiza a equipa em campo. A discussão entre todos é a didáctica fundamental”, e citando (Lima, 1972), “trabalho, deixando de ser manual para ser intelectual, deixando de ser individual para ser grupal, deixando de ser linha de produção (linear) para ser uma decisão (circular), transformar-se-á em discussão”. Assim sendo, o “indivíduo irá aprender através de actividades planeadas pelo professor como, por exemplo, pesquisas, leituras, passeios, etc., sempre orientados pelo professor. Atentando-se que estas actividades são sempre grupais para que todos possam educar a todos, construindo o conhecimento na interacção entre eles”. Bello fundamenta a necessidade deste método de ensino com a imprevisibilidade que o futuro nos traz, portanto há que preparar o indivíduo para resolver situações-problema. Bello explica através de um exemplo prático, citado pelo professor Lauro de Oliveira Lima: “as criança estavam utilizando o escorrega com perfeição, subindo pela escada e descendo pelo escorrega. O professor Lauro sugeriu que a professora estimulasse o inverso: subir pelo escorrega e descer pela escada. Com esta atitude a professora estará incentivando a criança a se superar, a sair daquele estágio em que se encontra para alcançar um outro nível de complexidade de desenvolvimento. Se as crianças estavam cumprindo a tarefa de subir pela escada e descer pelo escorrega com perfeição, elas estavam acomodadas naquele nível de desenvolvimento. Quando a professora sugere uma tarefa de complexidade superior ela está ajudando as crianças a assimilar um novo nível de equilíbrio”. Com este exemplo, Bello expõe que “a professora poderia “mostrar como se faz” para as crianças, o que não teria nenhum valor no esforço de conquista da nova aprendizagem a ser enfrentada pelos alunos. Portanto, a aula expositiva (conhecida no jargão pedagógico como “aula de salivação”) é incompatível com o esforço para inventar que deveria estar sendo empreendido pelos alunos. Para Lauro de Oliveira Lima todo desenvolvimento requer esforço para que se possa construir estruturas ou estratégias de comportamento cada vez mais complexas”. José Bello vai mais longe e sustenta que “a aula expositiva torna-se então quase um “anti-estímulo” à criatividade ou uma ofensa contra o aluno, já que pressupõe uma incapacidade de interpretação e leitura de mundo por parte dele. O surgimento do livro condenou a aula expositiva à morte”. O treinador (Mourinho, 2009), corroborando a aprendizagem através da dinâmica de grupo ao invés da aula expositiva, explica que, em conversa com ex-colegas universitários, “no outro dia, quando falámos lá no ISEF, chegámos à conclusão que aprendemos muito mais entre nós e nos intervalos entre as aulas”. Num programa televisivo não identificado, o psiquiatra português Daniel Sampaio reforça esta ideia através das mudanças sociais e tecnológicas das últimas décadas. Segundo Sampaio, até aos anos 80/90 as crianças cresciam perante fontes de informação limitadas e essencialmente expositivas como eram por exemplo, os poucos canais de televisão disponíveis. Após a revolução tecnológica que a Internet, os computadores, os tablets, os próprios telefones, a televisão por cabo e a sua enorme oferta trouxeram, as crianças tornaram a descoberta do conhecimento um processo de enorme interactividade. Porém, Daniel Sampaio explica que os métodos de ensino não acompanharam esta evolução e consequentemente tornou-se muito difícil manter crianças concentradas em aulas de uma ou duas horas nas quais o professor debita o conhecimento e o aluno interage e descobre pouco.

“O treinador é importantíssimo por todos os conhecimentos que poderá transmitir. Mas se fizer mal as coisas, será mais interessante juntar as crianças e deixá-las organizar a sua própria actividade. Verá que se dividirão por duas equipas e jogando descobrirão o caminho.”

(Bouças, 2013)