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“No futebol está tudo inventado”

“No futebol está tudo inventado” é uma frase tantas vezes repetida pelas mais diversas personagens com as mais diferentes responsabilidades, marcando uma das expressões do pensamento clássico que manteve uma maior estagnação no jogo e no treino. Contudo, a história fez questão de desmentir este lugar comum, mostrando evolução após evolução.

Javier Mascherano, protagonizou um momento de criatividade, proporcionando uma acção que talvez apenas tenha sido realizada pela selecção Holandesa da década de 70. Na função de Defesa-Central, sob pressão alta adversária, e após dobrar passes com o Defesa-Lateral, ao invés de ajustar o seu posicionamento de forma a garantir uma cobertura ofensiva mais segura, decide realizar uma desmarcação de ruptura, no fundo uma acção típica do Futsal. Se o objectivo foi receber mais à frente ou se foi libertar espaço para o Pivô, Sergio Busquets receber, só Mascherano ou colectivamente a equipa do Barcelona o saberão. Arriscamos que tenha sido uma decisão individual, pois nem Busquets baixou a tempo de receber enquadrado, revelando ter sido surpreendido pela acção do companheiro, nem o Guarda-Redes ter Stegen aproximou para garantir a cobertura ofensiva e consequentemente uma solução alternativa. Deste modo foi de facto um momento de criatividade de Mascherano, porém de alto risco, acabando mesmo por correr mal.

Curiosamente, há pouco tempo, em conversa sobre um trabalho em determinada equipa, recordávamos um Defesa-Central que, para surpresa nossa, realizava acções similares no treino, as quais proibimos não só pelo risco elevado que traziam, mas também por colidirem com outro tipo de soluções de construção que procurávamos nessa altura para a equipa. No entanto será bom reflectir sobre isto, não só do ponto de vista individual, dado estarmos a condicionar a criatividade e não a compreendê-la e a enquadrá-la, e do ponto de vista colectivo por estarmos a rejeitar, pelo menos de forma prematura, mais uma possível solução de construção à equipa. Isto num momento em que a organização defensiva das equipas cresceu de forma exponencial, sendo o pressing cada vez mais alto e mais organizado.

Por fim, o que a selecção Holandesa fez na década de 70, foi talvez muito à frente do seu tempo e mesmo do nosso, pois como vários autores e treinadores antecipam, talvez o futuro da organização das equipas passe mesmo por algumas ideias que já marcam o Futsal há vários anos, potenciando uma maior troca posicional e funcional dos jogadores. O treinador português (Jesus, 2009), vai ao encontro desta ideia ao referir: “penso que vai ser esse o grande segredo e evolução do Futebol no futuro, em todo o mundo: vários jogadores com capacidade para actuarem em várias posições”. Também o treinador brasileiro (Parreira, 2002), baseando-se em Mário Zagallo, citados por (Cerqueira, 2009), sustentam esta posição ao explicar que “com o caminho que o Futebol está a seguir, brevemente chegaremos à formação 4-6-0 e para ser bem sucedido vamos precisar de todos os jogadores em volta que possam defender e atacar quando aconselhado”.

“Só o passado está inventado. Se pretendermos afirmar o presente e conjugar o Futebol no futuro, quase tudo está por inventar.”

Júlio Garganta

Free the Kids II

O jornal Expresso publicou um artigo, contendo várias opiniões sobre o “ensino doméstico” enquanto alternativa ao tradicional ensino escolar.

http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-03-13-Viver-e-aprender-sem-ir-a-escola

Após publicarmos o video sobre a eventual ameaça à “liberdade” que as crianças vivem na sociedade actual em www.sabersobreosabertreinar.com/2016/03/free-kids.html, este artigo reforça o problema. No mínimo devemos reflectir sobre algumas ideias que descrevem a aprendizagem de crianças na ausência do meio escolar.””Até aí, Simone tinha aptidão para as letras (começou a escrever as primeiras linhas aos 3 anos). Com as aulas, que nem eram diárias, a mãe começou a reparar que a menina parecia estar a ganhar “relutância” a algo que gostava. “Quando me pergunta qual é aquela letra eu não vou negar a resposta à criança… Eles começam e nós apoiamos. Ela começou a escrever coisas muito interessantes com letras maiúsculas de ouvido. Ouvia, juntava e escrevia“.”

““A nível emocional são muito seguros de si e têm uma auto estima muito boa, são muito sinceros, espontâneos e nada envergonhados. Não pensam que têm de fazer as coisas para agradar aos outros, para fazer boa figura ou porque vão ser avaliados. Conhecem os seus próprios limites e param quando sentem que os estão a ultrapassar, sem para isso necessitarem de castigos, ameaças ou coerção”, conta a antiga professora. Timo “devora livros”. Por dia lê pelo menos dois. Agnes acredita que talvez o gosto pela leitura não fosse tanto, se o filho andasse na escola. “Aprendem muita coisa. Talvez os outros também aprendam, mas aprendem pela repetição e memorização, por medo de más notas e pela pressão de pais e professores. No ensino doméstico, as crianças têm a possibilidade de aprender por motivação intrínseca. A maioria das crianças da idade deles não gostam e ler”, acrescenta.”

“Lá para as 6h da manhã, os miúdos já estão a pé. Acordam cedo e cheios de “inspiração e vontade de fazer mil e uma coisas”. Passeiam pelo rio e o mato. Trepam às árvores e mergulham nas águas. Em casa, “brincam muito, constroem legos e ajudam na horta”. Um dia na vida de Timo e David não tem espaços em branco. Na aldeia, já todos sabem que os dois andam sempre por perto. “Eles veem a vida real: nos correios são eles que põem os selos e no café vão ter com a padeira para ver como se faz o pão, ajudam o moleiro a fazer a farinha… São muito amados e mimados por toda a gente, pois são os únicos que andam por lá enquanto todos os outros estão fechados na escola”. Agnes não prende os filhos e garante que se alguma vez lhe pedirem para irem à escola, irão. Mas por agora nem Timo nem David parecem interessados. “Coitados dos outros meninos, estão ali o dia todo presos, sem poderem fazer o que querem”, dizem os irmãos. “Dizem-me que quando crescerem querem ser exploradores multifacetados, o que na realidade já são. Exploram o mundo real diariamente, em todas as suas vertentes”, conta a mãe.”Noutro artigo, o matemático Edward Frenkel alinha-se na mesma perspectiva. Segundo ele, “muita gente tem uma relação traumática com a Matemática. Uma das razões tem a ver com o facto de o ensino da Matemática, tal como é feito na grande maioria das escolas, dar demasiado ênfase à resposta. Em vez de se encorajar os nossos alunos a serem curiosos e a procurarem a resposta, nós exigimos que eles a dêem. O ensino baseia-se quase exclusivamente em testes e em ver em quem é mais rápido a encontrar a resposta. E muitos sentem-se embaraçados e inferiores porque não conseguem fazê-lo. Essa dor fica. Até podem depois não se lembrar do incidente concreto, mas o trauma ficou lá”. Este testemunho reforça ainda a ideia transmitida no nosso artigo sobre a intensidade, particularmente o caminho educativo e consequentemente social que estamos a adoptar, no qual se coloca em causa a autonomia, a criatividade, a inteligência e a individualidade em troca da mecanização, da rapidez não pensada, da estandardização.Agravando tudo isto, temos ainda o crescente comportamento negativo de muitos pais…

Horst Wein

Faleceu Horst Wein, antigo seleccionador de Hóquei em campo, treinador de Futebol de Formação, formador de treinadores, e autor de várias obras dedicadas ao ensino do jogo, das quais destacamos “Fútbol a la medida del niño” publicado pela Federação Espanhola, “Developing Game Intelligence in Soccer“. Detentor de um impressionante currículo, destacamos porém, as ideias que procurava transmitir.

Em entrevista à revista DOZE em 2010 explicou que no Futebol “tudo começou quando me encontrava  a estagiar com a selecção de hóquei em campo, perto do Nou Camp, o estádio do Barcelona. Carlos Rexach – antigo jogador, treinador e director-técnico dos “blaugrana”, n.d.r. – viu os treinos, começámos a falar e acabei por estar uma semana a ensinar os meus métodos aos treinadores do clube.  Os meus livros são publicados pela Federação Espanhola há 20 anos. O antigo treinador de Xavi, actual jogador do Barcelona, reconheceu o meu trabalho e fiquei satisfeito quando me ligaram a contar que Guardiola tinha comprado os meus livros”. Wien na mesma entrevista, relatou ainda que ficou também muito feliz “quando Arrigo Sacchi – treinador de clubes como o AC Milan, n.d.r – recomendou o “Futebol a la medida del niño”, um dos meus livros, e isso é sinal que o meu trabalho é importante”.

Horst Wein.

Horst Wein.

Participou em várias acções de formação em Portugal, mas faz agora precisamente dez anos, que falou na Universidade Lusófona num seminário internacional dedicado ao treino de jovens futebolistas. Acoplado ao recém sucesso de José Mourinho, vivia-se um momento de ruptura na história do treino dos Desportos Colectivos no qual a essência da Periodização Táctica do professor Vítor Frade finalmente conquistava a confiança de  muitos treinadores e aspirantes à função. Paralelamente a Frade, vários autores como Wein, travavam a mesma batalha ideológica, na qual elegiam a decisão, a inteligência, consequentemente a táctica como dimensão estruturante do jogo e do treino dos desportos colectivos. No entanto, muitos agentes desportivos e até consagrados professores universitários, não perceberam naquele momento a mensagem do autor alemão, o que revelou o carácter transgressivo das suas ideias face ao paradigma vigente.

Modelo competitivo proposto por Horst Wein.

Modelo competitivo proposto por Horst Wein.

Horst Wein teve a particularidade de dedicar a sua obra à especificidade do Futebol de Formação. Entre muitas ideias centradas no desenvolvimento da inteligência táctica e da criatividade da criança, salientamos a defesa dos valores do Futebol de Rua, a sua proposta de progressão formativa e competitiva do jovem futebolista, o treino orientado para o jogo, a defesa do protagonismo do jogador no treino e no jogo e a apresentação de problemas e não de soluções pelos treinadores, ao que a Periodização Táctica chamou Descoberta Guiada. Neste enquadramento foi também o criador do jogo reduzido que denominou por Mini-Futebol, jogado originalmente em situação de 3×3 sobre 4 mini-balizas, o qual propunha maior contacto com a bola, permanente participação do jogador no centro de jogo e o consequente desenvolvimento da inteligência e lateralidade.

Jogo de Mini-Futebol proposto por Horst Wein.

Jogo de Mini-Futebol proposto por Horst Wein.

Passados dez anos, ideias que parecendo hoje óbvias para muitos, foram na realidade de uma importância tremenda pela ruptura que manifestaram e evolução que proporcionaram ao treino do Futebol. Outras ideias, aguardam no entanto, uma ainda maior mudança de mentalidades, nomeadamente ao nível de quem define a filosofia, organização geral e os modelos competitivos do Futebol de Formação. No fundo, orientadoras das prioridades no desenvolvimento da criança em geral, e no jovem futebolista em particular.

“No futebol, um grama de tecido cerebral pesa mais que cem gramas de músculo.”

Horst Wein

“O miúdo deve ser o maestro, o descobridor. Um bom professor deve ajudar os seus alunos a descobrir o que eles pretendem. O jogo é que deve ensinar-te: não o treinador.”

Horst Wein

“A natureza decreta que as crianças devem ser crianças antes de se tornarem adultos. Se tentarmos alterar esta ordem natural, elas vão chegar prematuramente a adultos, mas sem conteúdo nem força.”

Jean-Jacques Rousseau citado por Horst Wein

Ensino, Individualidade, Criatividade…

Antigamente, sobravam tempo, espaço e oportunidades para as crianças jogarem longe das regras dos adultos. Nesses espaços não havia limite de toques ou caminhos proibidos. Muito menos caminhos obrigatórios.

Paulo Sousa

Animação adaptada de uma palestra dada na RSA por Sir Ken Robinson.

“Jogar de forma destruturada, em espaço livre, com reduzida supervisão é o berço de qualquer criança. Para que a próxima geração cresça saudável, equilibrada e apta para beneficiar da sua educação, devemos assegurar que as crianças vão para a rua jogar”.

Sue Palmer, escritora e especialista em crianças, citada por (Cooper, 2007)

A Descoberta Guiada surge na mesma linha do método psicogenético, um ideal educativo criado por Lauro de Oliveira Lima, estruturado a partir das descobertas científicas de Piaget. Este método defende que “O professor não ensina; ajuda ao aluno a aprender”. Segundo (Bello, 1995), “professor deve deixar de lado sua postura de “professor-informador” para assumir a postura de “professor-orientador“, assim como um “técnico de Futebol”, que organiza a equipa em campo. A discussão entre todos é a didáctica fundamental”, e citando (Lima, 1972), “trabalho, deixando de ser manual para ser intelectual, deixando de ser individual para ser grupal, deixando de ser linha de produção (linear) para ser uma decisão (circular), transformar-se-á em discussão”. Assim sendo, o “indivíduo irá aprender através de actividades planeadas pelo professor como, por exemplo, pesquisas, leituras, passeios, etc., sempre orientados pelo professor. Atentando-se que estas actividades são sempre grupais para que todos possam educar a todos, construindo o conhecimento na interacção entre eles”. Bello fundamenta a necessidade deste método de ensino com a imprevisibilidade que o futuro nos traz, portanto há que preparar o indivíduo para resolver situações-problema. Bello explica através de um exemplo prático, citado pelo professor Lauro de Oliveira Lima: “as criança estavam utilizando o escorrega com perfeição, subindo pela escada e descendo pelo escorrega. O professor Lauro sugeriu que a professora estimulasse o inverso: subir pelo escorrega e descer pela escada. Com esta atitude a professora estará incentivando a criança a se superar, a sair daquele estágio em que se encontra para alcançar um outro nível de complexidade de desenvolvimento. Se as crianças estavam cumprindo a tarefa de subir pela escada e descer pelo escorrega com perfeição, elas estavam acomodadas naquele nível de desenvolvimento. Quando a professora sugere uma tarefa de complexidade superior ela está ajudando as crianças a assimilar um novo nível de equilíbrio”. Com este exemplo, Bello expõe que “a professora poderia “mostrar como se faz” para as crianças, o que não teria nenhum valor no esforço de conquista da nova aprendizagem a ser enfrentada pelos alunos. Portanto, a aula expositiva (conhecida no jargão pedagógico como “aula de salivação”) é incompatível com o esforço para inventar que deveria estar sendo empreendido pelos alunos. Para Lauro de Oliveira Lima todo desenvolvimento requer esforço para que se possa construir estruturas ou estratégias de comportamento cada vez mais complexas”. José Bello vai mais longe e sustenta que “a aula expositiva torna-se então quase um “anti-estímulo” à criatividade ou uma ofensa contra o aluno, já que pressupõe uma incapacidade de interpretação e leitura de mundo por parte dele. O surgimento do livro condenou a aula expositiva à morte”. O treinador (Mourinho, 2009), corroborando a aprendizagem através da dinâmica de grupo ao invés da aula expositiva, explica que, em conversa com ex-colegas universitários, “no outro dia, quando falámos lá no ISEF, chegámos à conclusão que aprendemos muito mais entre nós e nos intervalos entre as aulas”. Num programa televisivo não identificado, o psiquiatra português Daniel Sampaio reforça esta ideia através das mudanças sociais e tecnológicas das últimas décadas. Segundo Sampaio, até aos anos 80/90 as crianças cresciam perante fontes de informação limitadas e essencialmente expositivas como eram por exemplo, os poucos canais de televisão disponíveis. Após a revolução tecnológica que a Internet, os computadores, os tablets, os próprios telefones, a televisão por cabo e a sua enorme oferta trouxeram, as crianças tornaram a descoberta do conhecimento um processo de enorme interactividade. Porém, Daniel Sampaio explica que os métodos de ensino não acompanharam esta evolução e consequentemente tornou-se muito difícil manter crianças concentradas em aulas de uma ou duas horas nas quais o professor debita o conhecimento e o aluno interage e descobre pouco.

“O treinador é importantíssimo por todos os conhecimentos que poderá transmitir. Mas se fizer mal as coisas, será mais interessante juntar as crianças e deixá-las organizar a sua própria actividade. Verá que se dividirão por duas equipas e jogando descobrirão o caminho.”

(Bouças, 2013)