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Dawn of the Dead

“A única forma de construir uma equipa é reunir jogadores que falem a mesma língua e que saibam jogar em equipa. Não se consegue atingir nada sozinho e, se o fizer, isso não dura muito tempo. Costumo citar o que Michelangelo disse: ‘O espírito guia a mão’.”

(Arrigo Sacchi)

Tal como o filme Dawn of the Dead de 1978 foi alvo de um remake por Zack Snyder em 2004, hoje assistimos no Futebol a um remake do método defensivo individual. E tal como nos filmes, estamos perante um fenómeno “morto-vivo” e os momentos de “terror” vão-se acumulando dentro do campo.

“Quem marca ao homem corre por onde o adversário quer. Essa caçada tem por fim capturar o inimigo, mas o meio usado converte o caçador em prisioneiro.”

(Jorge Valdano, 2002)

Vários treinadores e analistas defendem o regresso da defesa individual com argumentos que favorecem uma maior agressividade e capacidade pressionante das equipas e de pressão sobre jogadores considerados fundamentais na Construção e Criação adversária. Este último também ele um argumento clássico, como a responsabilização individual de quem defende, entre outros mais. Ora, jogadores e equipas que individual e colectivamente tenham essa predisposição e maior agressividade no momento defensivo podem esconder em alguns jogos ou momentos as razões para a falência da ideia. Tal como sucedeu no passado. Na actualidade, a recuperação do método também apresenta sucesso, a espaços, por ser algo diferente e inovador do que se tornou norma. Consequentemente muitas equipas não se apresentam preparadas para defrontar adversários que defendam dessa forma.

Seja na preparação de uma equipa de Rendimento, mas também em debilidades identificadas do processo formativo dos jogadores, que julgando a Defesa Individual totalmente ineficaz e mesmo, morta, determinadas decisões técnicas não confrontam os jogadores com esse género de problemas. Mas evidentemente, de forma mais basilar, este fenómeno também revela lacunas ofensivas no processo formativo não só nos princípios específicos da Mobilidade e Espaço, mas também na própria Progressão / Penetração. Por outro lado há que reconhecer que tudo o que é novidade e pensamento divergente (neste caso apenas aparentemente), trará problemas e desafios. Mesmo algo que se considerava menos eficiente e mesmo em vias de extinção.

Hoje, determinados Modelos, assentes numa Ideia de jogo posicional muito rígida e cristalizada, gerando pouca mobilidade e permutas entre jogadores apresentam natural dificuldade contra equipas que defendam individualmente adversários directos, cortando assim todas as soluções de passe, ou pelo menos as mais próximas e seguras. Naturalmente nos casos onde, individualmente, a qualidade dos jogadores é similar. Nos outros casos, potenciar duelos de 1×1, será natural que o jogador de maior qualidade impere. Um dos melhores jogadores de todos os tempos, Diego Armando Maradona citado por (Tobar, 2010), vai ao encontro desta ideia e explica que “com os anos, compreendi que eu gostava mais que me marcassem homem a homem porque me livrava facilmente deles e ficava livre. Ao contrário da marcação a zona que era muito mais complicado”. É muito provável que estivesse aí a incluir o AC Milan de Arrigo Sacchi, equipa que defrontou em Itália. Noutro exemplo, porém colectivo, a Holanda de 74, de Rinus Michels, fez verdadeiramente diferente da norma naquele momento da evolução do jogo, e entre outras qualidades, e uma das razões para o seu reconhecido sucesso, perante a enorme mobilidade com que os seus jogadores actuavam, acabou por criar grandes problemas e mesmo colocar em causa o método individual.

Segundo o autor (Jorge D., 2011) e reforçado pelas situações retratadas do AC Milan actual, quem defende com referências individuais, “em vez de se preocupar em cortar espaço ao portador da bola, condicionando assim a sua decisão e roubar a profundidade da desmarcação, decide acompanhar as desmarcações que se aproximam da baliza, pelas quais foram arrastados, originando assim o alargamento do espaço entre linhas assim como dos indivíduos da própria linha (Defesas-Centrais e Defesas-Laterais)”. Também de acordo com (Pedro Bouças, 2010), “equipa que marca homem a homem, torna-se na presa, quando o adversário abusa do princípio da mobilidade. Move-se por onde o adversário quer”.

Porém, apesar de casos de pontual sucesso, isso não quer dizer, numa visão macro do fenómeno, que métodos individuais tragam igual ou mais rendimento que métodos colectivos. Existe por vezes a tendência de afirmar que não há coisas melhores nem piores no Futebol. Tal como na vida. Mas se a realidade é complexa e não linear, e tudo tem pelo menos um limiar mínimo de diferença, então, coisas, acontecimentos, fenómenos, decisões, etc… diferentes, irão produzir resultados… diferentes. Por vezes até, e trazendo o clássico exemplo da borboleta da Teoria do Caos, produzindo resultados muito díspares perante acontecimentos aparentemente apenas ligeiramente diferentes. Se reconhecidamente estamos no âmbito de um sistema complexo e dinâmico, então estamos perante extrema sensibilidade às condições iniciais. Portanto, nos Desportos… Colectivos, tal qual vemos a sociedade em geral, um método de jogo, seja defensivo ou ofensivo, Individual e não… Colectivo, irá trazer problemas, ineficiência e ineficácia, dado o desfasamento das necessidades da realidade em causa. Tal como na sociedade. Até podemos ter sucesso pontual individual, mas não iremos subsistir a prazo enquanto espécie. Deixamos também a questão no âmbito da Ciência Militar. Será que algum General alguma vez definiu uma estratégia para um confronto assente no individualismo? Mesmo ao nível mais elementar dos exércitos, do ponto de vista estratégico ou táctico, se possível, o pensamento é no mínimo, grupal…

Nesta linha de pensamento, recuperando ideias ainda actuais, na opinião de (Pedro Bouças, 2011), “DEFENDER O QUÊ? deve ser a primeira pergunta que se deve colocar, quando se pretende definir o método defensivo. Se não há certo ou errado, garantidamente que há melhor e pior”. O autor sustenta que “a melhor resposta é seguramente, a que afirmar que se deve defender a baliza. Não o adversário. A baliza. O posicionamento defensivo que se centra no tapar o caminho para a sua baliza, é francamente melhor que aquele que pretende defender os adversários”. Johan Cruyff reconhecido pelas suas ideias ofensivas, torna expressa a interdependência dos momentos ofensivos e defensivos, ao defender que a qualidade defensiva é directamente influenciada pela quantidade de espaço que um jogador tem que defender. Deste modo, o lendário jogador e treinador holandês descreve que se um jogador tem de defender o campo todo, será potencialmente um terrível defensor, porém se defender um espaço reduzido poderá ser um bom defensor, sustando assim ser tudo uma questão de espaço! Também o treinador português (Carlos Carvalhal, 2010) reforça a ideia através da sua experiência como jogador: “fui defesa central e percebo muito bem esta posição! Mais importante que perseguir adversários e fazer carrinhos nas laterais do campo, é absolutamente necessário saber guardar o seu espaço e não permitir que qualquer adversário (não só os avançados) possa entrar nesse espaço para fazer golo.

“No segundo ano de iniciado no Braga, começámos a experimentar esta nova solução porque, tanto eu como o meu novo colega de equipa (Boticas), não éramos o protótipo do libero e possuíamos características idênticas. As vantagens eram muitas porque dividíamos o espaço: se o avançado viesse para a esquerda, eu marcava e ele fazia cobertura; se fosse para a direita, ele marcava e eu fazia cobertura. Sentíamo-nos confortáveis a jogar assim, corríamos menos e tínhamos a convicção de que era mais complicado para o avançado contrário, porque tinha os espaços bloqueados. No fundo, a grande diferença era que não andávamos atrás do avançado, ele vinha ter connosco. Começámos também a entender que, embora exigisse mais concentração no fechar dos espaços, criava muitas dificuldades às equipas que pretendiam que outros jogadores fizessem desmarcações de rutura em função da mobilidade do avançado. Era o início do entendimento do que era “Jogar à zona”. Nessa altura, comecei a perceber a importância de “fechar espaço” para quem está a defender e “criar espaço” para quem está a atacar. A relação com os laterais era também importante para fechar os espaços. Pelo facto de sofrermos alguns golos, porque o defesa do lado contrário marcava em cima o adversário e existia um grande espaço entre o defesa central e este, fui tentando ajudar a organizar as minhas defesas. (A preocupação dos treinadores com a defesa não era uma prioridade, na altura! Se cada um marcasse o seu, a defesa estava organizada — não estava ainda desenvolvido o conceito de zona). Assim, ia sugerindo aos defesas laterais que fechassem o espaço interior, quando a bola estava do lado contrário, e tentava explicar as vantagens de fechar esse espaço. Umas vezes, era entendido. Mas, muitas vezes, o receio de deixar o extremo sozinho sem marcação era tal que esta tarefa era impossível. Até porque, na altura, existia muita responsabilização individual por falta de marcação ao adversário direto. Recordo-me, uma vez, de insistir com o defesa esquerdo para fechar o espaço entre mim e ele, quando a bola estava no lado contrário. Ele ia-me dizendo, “Carlos eu fecho e, depois, o extremo fica sozinho! Se ele marca golo ou cruza, o treinador vai-me dar cabo da cabeça!” Eu lá lhe ia explicando que era mais importante fechar os espaços interiores, porque tinha sempre tempo para pressionar o seu adversário direto enquanto a bola viajava de um lado para o outro.”

(Carlos Carvalhal, 2014)

O relato de Carlos Carvalhal torna-se precioso, mas não novidade. Se nos recordarmos do Futebol que jogávamos na “rua”, sem treinadores, em regime de auto-descoberta, na interacção que estabelecíamos com os nossos companheiros e adversários, o próprio jogo ensináva-nos que o melhor caminho para defender era de forma… colectiva. E dificilmente nos ensinava outro. Havia sempre alguém que tinha assistido, ao vivo ou na televisão, a um grande desempenho de um jogador em marcação individual, ou ouvido adultos a comentar algo desse género, e como bom imitador de ídolos tal qual todos éramos, informava… “hoje marco o João que é o melhor jogador deles!”. Perante a falta de liberdade, desgaste, e condicionamento que a missão lhe proporcionava nos seus momentos ofensivos, ao fim de 5 minutos de jogo, desistia do “João” e empenhava-se em realmente… jogar. O jogo ensinava-nos então, aquando da bola na posse do adversário, que as prioridades deviam ser a nossa baliza, a bola, os espaços, as linhas de passe mais próximas, a posição dos nossos companheiros e finalmente a dos nossos adversários. Jogando sem fora-de-jogo como usualmente sucedia na “rua” e no Futsal, a única excepção seria o adversário esperto que se colocava entre o nosso último defensor e o nosso Guarda-Redes. Nesse caso esse precisava de maior vigilância.

Analisando o Futebol de uma perspectiva macro, e mesmo a evolução científica e filosófica em geral, somos levados a acreditar, que na sociedade dos adultos, impregnada pelo pensamento cartesiano, analítico, mecânico, e pelo reducionismo e atomismo clássicos, tal qual muitas outras ideias como também se torna exemplo a evolução dos métodos de treino, a defesa individual foi algo que o treinador trouxe para o jogo, numa tentativa de simplificar o complexo, de dividir o indivisível, de controlar o incontrolável, de reduzir empobrecendo… Neste enquadramento, ao contrário do que o próprio jogo nos ensinava, o treinador passou a última prioridade: os adversários, para o topo da lista. Indo mais longe, influenciado também pela clássica visão egocêntrica da realidade, na qual o homem tem que estar sempre no centro de tudo.

Mas na verdadeira realidade, a… complexa, temos como consequência a também não linearidade da evolução. Deste modo, também num contexto de esquecimento de uma história assim não tão antiga, mas fundamentalmente como vimos atrás, pela renovidade que a ideia traz ao jogo e sucesso pontual que promove, também não é de espantar estarmos, na nossa opinião, a dar um passo atrás. Esperando sempre que, à boa imagem do que tem sido até agora a história evolutiva da nossa espécie, seja para posteriormente darmos dois à frente.

O autor (Nuno Amieiro, 2004), na sua tese e livro sobre a Defesa Zona, expunha que “no seu livro, Jorge Valdano falava apaixonadamente sobre a «zona», parafraseava Menotti (“A zona é liberdade”), Maturana (“A zona faz da defesa a arte de atacar”) e deliciava-me com as descrições da «zona» inteligente, agressiva e harmoniosa do Milan de Sacchi. A «zona» de que Valdano falava aproxima-se da «zona» com que tive, pela primeira vez, contacto, aquela a que, superficial e esporadicamente, o professor Vitor Frade fazia referência nas aulas”. Neste sentido, trazemos outra ideia. A Defesa Zona, induz muitas vezes as pessoas em erro, pela interpretação literal que dela fazem. Defender Zona não implica defender só zonas ou espaços, como vimos atrás. Implica uma preocupação até maior com outras referências do jogo como a nossa baliza e a bola, e ainda outras como as linhas de passe mais próximas, companheiros e adversários. Mas acima de tudo uma preocupação pelo sistema dinâmico que o jogo representa, e dessa forma pela implicitude da interacção. Como Vítor Frade sustentou no seu projecto de Doutoramento em 1990: A interacção, invariante estrutural da estrutura do rendimento do Futebol. A Defesa Zona implica então um pensamento… colectivo. Logo, também em contra-ponto à Defesa Individual, não será mais apropriado lhe chamarmos… Defesa Colectiva?

Novamente (Nuno Amieiro, 2004), parece concordar e apresentar argumentos reforçando essa ideia ao descrever que “são três pressupostos tácticos fundamentais desta forma de organização defensiva. São estas referências defensivas colectivas que, quando correctamente perspectivadas, nos permitem obter superioridade posicional, temporal e numérica na defesa. No fundo, ao manifestar-se, a «zona» expressa:

  • Um «padrão defensivo colectivo»;
  • Complexo, é verdade;
  • Mas também dinâmico e adaptativo;
  • Compacto, homogéneo e solidário.

Serão estas «propriedades», emergentes da coordenação colectiva, a dar verdadeira coesão defensiva à equipa. Esta forma de organização defensiva revela-se, como tal, não só a mais eficaz defensivamente, mas também a que, de longe, melhor responde à «inteireza inquebrantável do jogo». Revela-se, assim, uma necessidade face à «inteireza inquebrantável» que o «jogar» deve manifestar. Não é de estranhar, portanto, que este seja o «padrão defensivo» das equipas de top”.

Arrigo Sacchi, a propósito do seu AC Milan, relata que conseguiu “convencer Gullit e Van Basten dizendo-lhes que cinco jogadores organizados seriam capaz de vencer dez jogadores desorganizados. E eu também consegui provar isto. Peguei em cinco jogadores, Galli na baliza e depois Tassoti, Maldini, Costacurta e Baresi. Do outro lado, coloquei 10, Gullit, Van Basten, Rijkaard, Virdis, Evani, Ancelotti, Colombo, Donadoni, Lantignotti e Massaro. O grupo composto por 10 elementos tinha 15 minutos para marcar contra os meus organizados. Só havia uma única regra, se nós recuperamos a bola, a outra equipa tinha de começar desde trás novamente, 10 metros antes do meio campo. Continuei a fazer. A equipa com 10 elementos nunca conseguiu marcar, nem uma vez”. Não queremos imaginar Sacchi, e mesmo Capello, a assistirem à “organização defensiva” do actual AC Milan…

“Apesar de estarmos na II Divisão, fomos o primeiro clube alemão a jogar em 4x4x2 sem libero. Vimos um vídeo muito chato, mais de 500 vezes, com o Sacchi a treinar a defesa, sem bola, com o Maldini, Baresi e Albertini. Pensávamos que se os outros fossem melhores tínhamos de perder. Depois aprendemos que tudo é possível, podemos bater os melhores usando táticas.”

(Jürgen Klopp, 2013) sobre a influência de Wolfgang Frank, que treinou Klopp no Mainz e era um admirador dos métodos de Arrigo Sacchi no AC Milan

Kobe Bryant: “A minha equipa, sempre, A. C. Milan, sempre.”

 

https://www.facebook.com/SaberSobreOSaberTreinar/videos/330328457497595/

“(…) ao nível colectivo, o complicado não é ganhar uma competição, é ter estado bem tanto tempo”.

(Guardiola, 2012)

Saber jogar e o saber sobre o saber jogar

Nos últimos dias, o ex-jogador Marco Van Basten deu uma entrevista ao jornal alemão Bild na qual defendia algumas ideias que segundo o próprio “revolucionariam o futebol”. O holandês foi um dos melhores que vimos jogar, eternizando momentos geniais, e golos fabulosos. O golo marcado à antiga URSS na final do campeonato da europa de 1988 ficará para sempre na história do jogo como um dos melhores. Mas nós recordamos outro, curiosamente também destacado, ontem, no programa Maisfutebol enquanto estávamos a redigir este artigo, que não tendo o mesmo peso histórico, faz parte do imaginário de qualquer criança apaixonada pelo jogo, reproduzindo aquele momento mágico de Pelé no filme Fuga para a vitóriaMas aqui num contexto real, colocando a bola no melhor sítio possível e ao serviço de um clube que contribuiu de forma evidente para a evolução do jogo.

Van Basten fez também parte de uma das melhores equipas da história do Futebol, o AC Milan de Arrigo Sacchi. Uma equipa de facto marcada pela inovação que trouxe ao momento de organização defensiva, conseguindo, através da mudança de referências defensivas e fazendo uso da regra do fora-de-jogo, encurtar o espaço de jogo aos seus adversários e ser pressionante sobre eles. Porém, ao contrário do que uma visão redutora do jogo fará supor, esta incremento qualitativo da organização defensiva abriu também caminho a uma maior qualidade ofensiva. Como (Amieiro, 2004) descreveu, trata-se de “defender (bem) para atacar (melhor)“. Concretamente, poder ser pressionante, possibilita que uma equipa seja ofensiva quando defende. Possibilita-lhe poder recuperar a bola o mais rapidamente possível. Possibilita-lhe que defenda no meio-campo adversário. No fundo possibilita-lhe a iniciativa no jogo, mesmo no seu momento defensivo, e ser inteligente e colectiva a defender. E nada disto seria possível sem a regra do fora-de-jogo.

Por outro lado, antes disso, a própria cultura holandesa, através do próprio Ajax e selecção holandesa, pela mão de Rinus Michels, tinha também apresentado ideias revolucionárias, algumas das quais alicerçadas na regra do fora-de-jogo. De acordo com (Sá, 2011), o “futebol que então apresentou é um esboço daquilo que fazem hoje as muitas das grandes equipas, e representou um salto de gigante em relação a tudo o que antes se havia visto. Não menos importante do que a mobilidade com bola, eram aspectos como a pressão e a linha defensiva, que permitiam à equipa jogar alto e conseguir um número absurdo de recuperações no meio campo contrário“. Num artigo sobre a escola holandesa do site benefoot.net, refere-se que “o mais revolucionário aspecto da selecção holandesa de 1974 era que o fora-de-jogo era usado como arma para atacar. A última linha subia intempestivamente, limitando o espaço ao oponente recuperando muitas vezes a posse da bola. Para ser claro: jogar com o fora-de-jogo é uma acção atacante” escreveu Cruyff no De Telefraaf. “Porque o fora-de-jogo decide o tamanho do campo””. Noutro artigo sobre o legado de Johan Cruyff de 2016 de Jonathan Wilson no site da Eurosport, é explicado que “os princípios básicos continuaram os mesmos desde então: controlar a posse de forma a não sofrer golos. Pressionar alto quando perdida a posse para fazer o campo o mais pequeno possível para o opositor. Usar o fora-de-jogo de forma pro-activa para forçar o erro adversário“. Este legado foi valorizado pelo Barcelona de Pep Guardiola, que segundo (Manna, 2009), procurava “defender à frente, invadindo o território possível do adversário, provocando o fora-de-jogo a metros da linha de meio-campo, afogando zonalmente o adversário, juntando linhas, acompanhando o ataque por todo o bloco”. Guardiola, citado por (Manna, 2008), lembra que “atacaremos melhor se tivermos uma boa defesa e defenderemos melhor se tivermos um bom ataque”. Lembramos que Rinus Michels treinou Van Basten na sua segunda passagem pelo comando da selecção holandesa…

Portanto, exemplos de ideias revolucionárias, que trouxeram qualidade de jogo, resultando em sucesso competitivo, inclusive a nível continental. Alguém, no seu perfeito juízo, pode afirmar que estas equipas focavam-se exclusivamente na sua organização defensiva, e apenas exploravam o erro do adversário?

Van Basten disse que teria “curiosidade em perceber como funcionaria o futebol sem o fora de jogo. Muita gente vai estar contra mas, cada vez mais, o futebol parece-se com Andebol, com equipas a erguerem muros à frente da baliza”. Mas o holandês esquece-se que de facto, o Andebol, como o Hóquei em Patins e o Futsal, exemplos de desportos com balizas, não têm fora-de-jogo. E dadas as suas regras, as equipas têm duas opções. Ou defendem com o seu bloco junto à sua baliza de forma a não permitirem espaço junto à mesma, ou adoptam a defesa individual no seu mais puro conceito, desprovida de inteligência e sentido colectivo. Ambas as situações, no futebol, seriam corrosivas para a qualidade de jogo. Pensando nos casos do Andebol e Hóquei em Patins, as equipas podem pressionar de imediato no momento da perda da bola, mas o objectivo principal é quase sempre garantir tempo para que o restante bloco recupere um posicionamento defensivo junto à sua baliza… aquilo que Van Basten condena. Por outro lado, no Futsal surgem ideias de pressão no meio-campo adversário, porém, ficando tanto espaço entre a bola pressionada e a sua baliza para tão poucos jogadores, essas equipas acabam por optar pela defesa e responsabilização individual.

Se Van Basten não o consegue, nós imaginamos o que seria um futebol sem fora-de-jogo, no qual as equipas optariam por deixar jogadores nas áreas adversárias. Inclusive junto aos postes da baliza adversária como sucede em muitas situações de bola parada do Futsal. O jogo “partiria-se” como nunca, com alguns jogadores das duas equipas posicionados junto a cada uma das suas balizas e outros a procurarem disputar a posse da bola pelo campo todo. Comparativamente com o jogo que conhecemos, pareceria um jogo de loucos. Como Jurgen Klopp comentou, esse seria outro jogo. No mesmo artigo Christian Gourcuff, técnico do Rennes, descreveu que o fora-de-jogo é uma manifestação de inteligência colectiva. Não haveria mais espírito colectivo se o fora-de-jogo fosse abolido”. Também Arsene Wenger defendeu que o fora-de-jogo é o que dá coesão a uma boa equipa. É também uma regra inteligente.”

“Jogar avançado no terreno

opõe-se ao jogar p’ra frente

é fazer campo grande e pequeno

e nisto não se demite a mente.”

(Frade, 2014)

Como alguém referia nos últimos dias, Van Basten pode estar a revelar uma parte da cultura holandesa, a pior parte. Aquela, que não a de Michels ou Cruyff, mas a que descarta por completo o momento defensivo do jogo e que apenas valoriza o ofensivo. O holandês pode, consciente ou inconscientemente querer obrigar a um retrocesso no jogo, a que as equipas defendam mal, para que a sua cultura saia vitoriosa. Mas isto são suposições. O que Van Basten objectivamente revela é desconhecimento do jogo. Será isto possível em alguém que revelou tanto talento e qualidade como jogador e que inclusive conviveu com tantas ideias de qualidade? Sim. Assistimos a casos similares todos os dias nos meios de comunicação social, porventura não tão graves, de ex-jogadores que não compreendem e não sabem explicar o jogo.

Usando uma expressão simples mas precisa, Van Basten e outros tantos detêm um “saber fazer”, que na especificidade do jogo podemos denominar de “saber jogar”. Não há dúvidas que eles sabiam jogar este jogo. Simultaneamente, alguns deles, e outros que mesmo não jogando num nível profissional, desenvolveram durante o seu percurso como jogador ou mais tarde, um “saber sobre o saber jogar”, ou seja, conhecimento sobre o jogo. O autor (Campos, 2008) explica que o «saber sobre um saber fazer» e o «saber fazer» são duas faces da mesma moeda, mas aquilo que é decisivo é o saber fazer no momento do jogo independentemente de estar conscientemente subordinado a um «saber sobre esse saber fazer»”. Assim, na perspectiva do jogador, (Amieiro, 2005) refere que “segundo Frade (2003a) o hábito é um «saber fazer» que se adquire na acção e “a esfera fundamental do «saber fazer» está no subconsciente”portanto, a qualidade expressa no campo é na maioria dos jogadores… inconsciente. Ainda para (Campos, 2008), existem muitos exemplos de grandes profissionais em diferentes áreas que alcançam desempenhos fantásticos sem conseguirem explicar como o fizeram e porque possuem essas fantásticas qualidades. Assim, segundo o autor “nem tudo que temos em memória é conscientemente identificável e enquanto treinadores devemos privilegiar o “saber fazer” dos nossos jogadores independentemente de eles dominarem melhor ou pior o saber sobre esse “saber fazer” pois a importância deles situa-se no domínio prático da acção“.

Porém, no caso de um treinador, esta importância altera-se. O treinador tem obviamente que estar consciente do processo. Tem de (re)conhecer a qualidade do jogo, compreendê-la e explicá-la. A esfera da sua acção passa obrigatoriamente para o domínio do “saber sobre o saber fazer”. É um dos argumentos que explica o porquê, na história do jogo, do melhor jogador do mundo ainda não ter dado o melhor treinador ou o melhor dirigente desportivo…

Marco Van Basten, não é “apenas” um aposentado grande jogador de futebol. O holandês é o diretor técnico FIFA desde Setembro passado. O próprio presidente, Gianni Infantino, apresentou-o, descrevendo que “tivemos várias discussões com ele nos últimos meses e ouvimos as suas opiniões sobre o jogo, tendo consciência sempre de tudo o que ele fez pelo futebol. Para mim, ficou imediatamente claro que Marco é um reforço fantástico para a FIFA”.

“The offside rule is fundamental – if you do not understand that, you do not understand football.”

Christian Gourcuff