A “carne toda no assador”

A frase do genial Quinito, recentemente também usada por Carlos Carvalhal na Premier League, tornou-se uma das marcas do Futebol Português. Apesar de no sentido lato percebermos o seu contexto, se pensarmos na interpretação e conhecimento do jogo de cada um, no sentido restrito a mesma pode conhecer diferentes expressões. Muito provavelmente, a que mais se generalizou, foi a substituição, de jogadores de outras funções por “avançados”. Outra ideia, directamente associada a esta, é a mudança, na forma de jogar da equipa, de um jogo paciente, criterioso e curto, para um mais vertical, aleatório e directo. Sublinhamos a palavra aleatório, uma vez que um jogo mais vertical e directo, quando treinado, quando crença, e em determinados cenários, também pode ser bem sucedido. A questão aqui residirá… que ideias poderão ter maior probabilidade de sucesso perante o jogo que o futebol é, consequência daquilo que o ser humano também é, nomeadamente em “sociedade”.

Apesar de não encontrarmos notícias sobre razões, que não táctico-estratégicas, para a substituição de Emil Forsberg por Martin Olsson na selecção Sueca no jogo dos quartos de final do Campeonato do Mundo contra a Inglaterra, não conhecendo com exactidão o contexto e não possuindo a real justificação para a substituição, correremos sempre o risco, de errarmos logo à partida na interpretação da decisão. No entanto, para nós o interessante não é a análise desta decisão concreta, mas o que ela pode significar numa perspectiva mais ampla. Precisamente, essa ideia que se generalizou no jogo, que perante um resultado adverso e dificuldades nos sub-momentos ofensivos de Construção e Criação, trocar o tal critério, paciência e criatividade, por aleatoriedade, inquietação, pressa e um jogo desprovido de imaginação, seria a eterna principal solução nesse cenário. Mas mais do que aquilo que a substituição em causa significava, mais importante no fundo foi a forma como influenciou o jogar da Suécia, que defrontava um adversário que manifestava conforto na sua última linha durante o momento defensivo, quer pelo número de jogadores que na situação colocava, como pela significativa qualidade dos seus comportamentos.

Todas as acções ofensivas de Emil Forsberg no Suécia x Inglaterra do Campeonato do Mundo de 2018.

Todas as acções ofensivas de Martin Olsson no Suécia x Inglaterra do Campeonato do Mundo de 2018.

O número de perdas de bola de Olsson foi muito superior ao de Forsberg, ainda por cima tendo em conta que o último esteve mais tempo em jogo e envolvido em bastantes mais acções com bola. Mas se este pode não ser um dado relevante ao nível individual, uma vez que se torna fundamental compreender o contexto de cada acção e as suas relações com os companheiros e adversários nesses momentos. Um problema tradicional das análises quantitativas. Porém, a quantidade de perdas tem, habitualmente, reflexos mentais e fisiológicos negativos… no todo, que é o desempenho – a qualidade do jogo da equipa e consequentemente do jogador. Aqui nem se trata do bater de asas da borboleta, mas de acontecimentos mais significativos que perturbam os momentos seguintes do jogar da equipa.

Transportar a equipa para um maior caos… será eficaz e a resposta na maioria das situações? No fundo estaremos a trocar a racionalidade pela emocionalidade… a zona de conforto, o trabalho e o entrosamento… por potencial desconforto, improvisação e desorganização.

Porém… “a carne toda no assador”, à imagem da nossa perspectiva do conceito intensidade, pode não passar por fazer mais, de forma mais agressiva, mais directa, se isso significar… fazer pior tendo em conta o jogar da equipa. Deste modo, no contexto de uma cultura que privilegie o critério, “a carne toda no assador” poderá significar, por exemplo, garantir maior velocidade à circulação de bola, maior número de jogadores no interior do bloco adversário, combinações a menos toques e consequentemente mais rápidas, mais soluções de ruptura, decisões de último passe de maior risco de perda da bola e decisões de finalização em condições mais difíceis, excluindo destas as que se incluem nas más decisões. Do ponto de vista individual, poderá não significar a troca de um jogador de uma função por outro de outra, mas sim a aposta em jogadores de maior criatividade, de cariz mais desequilibrador, mas que em contrapartida também fazem crescer o risco de maior acumulação de perdas de bola. Foi, por exemplo, o caso da entrada de Ricardo Quaresma no jogo Portugal x Uruguai.

Se perguntássemos a Quinito o sentido que dava à sua expressão… Quinito o homem que se tivesse dinheiro comprava Pedro Barbosa para o ver a jogar no seu quintal e que se declarava “um amante da arte, da magia e beleza estética”, apostamos que responderia… “é colocar lá dentro os mais talentosos, ofensivos e criativos”.

“É de estética vazia

e o Futebol assim jaz…

Jogo directo nada cria

correm, correm, mas nenhum sabe o que faz.”

(Frade, 2014)

A “posse de bola” e os números

O autor desta opinião, e o seu nível de conhecimento, não são importantes para o caso. O conteúdo, como milhões de outros, também poderia não ser. Torna-se relevante, para nós, porque é um género de opinião que tende a generalizar-se, consoante… os resultados. Agora, no passado e com certeza, no futuro.

Se o que influencia este género de opinião são preferências por uma “estética” de jogo diferente, a crença em ideias menos pacientes e mais directas no momento ofensivo, ou até a hostilização das equipas que se tornam dominadoras no jogo e a consequente menor imprevisibilidade e emocionalidade que isso traz ao espectador, não podemos saber. O que sabemos é que defendê-la com premissas, para nós, tão irrelevantes como as apresentadas, são autênticos atestados de ignorância… no mínimo… táctica. É também por isto que é extremamente difícil construir uma equipa que assente a sua qualidade de jogo, não na posse bola… mas na qualidade da sua posse de bola. Pegando no exemplo do Barcelona de Guardiola, a autora (Gomes, 2012) sustenta que a sua qualidade na posse “só é possível quando realmente se gosta muito da bola e faz com que o valor da bola seja superior à precipitação do adepto, à pressa do adversário e à ânsia em fazer a bola andar pelos espaços em disputas”.

Estamos perante mais um bom exemplo, no qual, os números e a estatística na análise do jogo, continuam, como tantas outras áreas, impregnadas pelo pensamento mecânico e analítico. Impregnada, e não completamente irrelevante, porque a estatística, aliada ao conhecimento do jogo, nomeadamente na identificação de regularidades comportamentais, pode ter um papel útil ao treinador, ajudando-o no construção do jogo que idealiza para a equipa. Por exemplo, num artigo anterior, defendemos que a perda de bola será um dado estatístico no jogo, muito interessante.

Não é difícil entender que uma média elevada de posse de bola não é sinal de controlo do jogo, portanto, de qualidade de jogo. O controlo do jogo pode ser obtido de diferentes formas, em função de diferentes ideias, crenças e consequentemente, formas de jogar. Recordamos as equipas italianas, na década de 90, que naquele momento da evolução do jogo, o controlavam os jogos de forma exímia pela sua Organização Defensiva e Transição Ofensiva, e emocionalmente sentiam-se extremamente confortáveis nessas ideias. Portanto, claramente abdicando de possuírem a bola na maior parte do tempo de jogo. Porém, hoje, ter qualidade no momento ofensivo, tornou-se impreterível. Assim, possuir a bola, mas fora do bloco adversário, portanto, estar a maior parte do tempo na Fase I do momento ofensivo, chegando poucas vezes à Fase II e praticamente nunca à Fase III com certeza que não ameaçará o adversário, aumentando-lhe o conforto e a confiança. Uma excepção, poderá ser fazê-lo, perante uma equipa que, precisamente e, devemos dizer, perigosamente, as suas ideias passam apenas pelo momento ofensivo do jogo e assim se desorganiza quando não a tem. No resto dos casos, ter mais posse de bola não significa, por si só, ser-se melhor no jogo. É um dos passos nesse propósito, o segundo é saber… o que fazer com ela. Johan Cruyff, citado por (Amieiro, 2009), explica que “ter a bola não significa tê-la e pronto. Há que saber o que fazer com ela. Quando eu digo que enquanto nós temos a bola o adversário não a tem e, portanto, não pode marcar, o que quero dizer é que nós mandamos e temos a iniciativa do jogo. E como tenho a bola, eles têm que a tentar roubar e, com isso, consigo criar espaço”. Também para o treinador português (Luís Castro, 2017), “a posse de bola não é um objectivo, é uma consequência… do meu jogo”.

Portanto, circular a bola pela primeira linha, mesmo que já no meio-campo adversário, sem ideias, mobilidade, mudanças de velocidade, agressividade e criatividade, é totalmente diferente do que tê-la, com essas qualidades todas, e conseguir ainda penetrar diversas vezes no interior do bloco adversário e / ou ameaçando também, com critério e regularidade, a sua profundidade. Este segundo cenário, consequentemente, levará a equipa a poder criar situações de finalização, não permitindo que a equipa adversária esteja tranquila, confiante, portanto, emocionalmente estável no jogo.

Todavia, num segundo pensamento sobre os dados apresentados, seria para nós muito mais interessante perceber quem é que treinava, num dos maiores clubes desse país, os jogadores mais influentes no jogo da Espanha, campeã do mundo em 2010, e da Alemanha, campeã do mundo em 2014. E perceber, depois disso, o declínio do seu jogo. Por outro lado, podemos também tentar compreender a forma como Pep Guardiola está a influenciar a cultura inglesa. Depois, se pensarmos ainda no papel decisivo que o trabalho de José Mourinho no F. C. do Porto teve, na qualidade de jogo e no rendimento da selecção Portuguesa no Europeu de 2004, e noutros exemplos similares, também podemos questionar que margem de intervenção e que papel terá um seleccionador / treinador nacional.

“Por muito que nos vendam estatísticas que queiram quantificar performances individuais, o jogo, o bom jogo, está completamente longe de poder ser interpretado ou quantificado por números que queiram trazer avaliações qualitativas. Porque não se pode quantificar a qualidade do que mais importa! As decisões!”

Pedro Bouças, 2017

“Odeio o “tiki-taka”. A posse de bola é apenas um método para organizar a equipa e desmontar o adversário…”

Pep Guardiola, 2014

“De Guardiola
p’ro Barcelona e selecção espanhola
do Bayern à selecção d’Alemanha,
e Guardiola sempre ganha
continuando a revolucionar,
o jogar…
Quem gosta de jogar à bola
Quem gosta de ir ver jogar,
Só pode reconhecer em Guardiola
O melhor p’ra tudo isto melhorar.”
(Frade, 2014)