Da euforia à depressão, e o que realmente importa

Já referimos noutros momentos que não tem sido objectivo deste espaço a análise específica a equipas e jogadores. Contudo, por ter gerado variadas opiniões, por se tratar da Selecção Portuguesa que tantos sentimentos agrega, mas acima de tudo pelos diferentes acontecimentos que o jogo nos trouxe, decidimos apresentar uma reflexão sobre o jogo Portugal x Islândia do Euro 2016. Essencialmente procuraremos uma análise colectiva do jogo, porém esta levará eventualmente a leituras individuais.

Emocionalmente, e perante a euforia vivida nas últimas semanas, o desfecho do jogo traz-nos, culturalmente, um regresso antecipado do histórico “fado luso”, que nos transporta da euforia à depressão num ápice. Porém, sem nunca descurar as emoções e os sentimentos que fazem deste jogo um fenómeno mundial, procuramos aqui uma visão mais racional dos acontecimentos, e pese o potencial paradoxo, não racionalista, analítica ou quantitativa, mas complexa e qualitativa.

Seria natural, perante o mediatismo, a grande expectativa criada e também por alguns jogadores que se estreavam em grandes competições de selecções, que a equipa apresentasse alguma ansiedade nos primeiros minutos do jogo. Neste primeiro jogo, e perante um adversário, ao qual se antecipava um comportamento iminentemente defensivo e reactivo, seria uma boa opção estratégica a conservação da bola e a segurança nas acções nesses primeiros momentos do jogo. Mesmo que essa posse não contesse grande agressividade ofensiva, consumada na penetração do bloco adversário. Ultrapassando essa ansiedade inicial, ganhando confiança no jogo e encostando o adversário à sua área, seria então o momento para procurar essa penetração e a chegada a situações de finalização. A este propósito, comentando o jogo, o ex-jogador português Simão Sabrosa explicou que nesses “minutos iniciais, eu lembro-me quando jogava, eram sempre complicados, o mais importante era nós termos contacto com a bola, e aquilo que os jogadores precisam de fazer, é ter contacto com a bola, para poderem ganhar confiança. A confiança vem quando temos a bola no pé, por isso é que os Avançados vêm muitas vezes ao meio-campo só para tocarem na bola.” 

Portugal atrasou essa segurança e a conquista dessa confiança, o que levou a que a posse de bola fosse mais dividida no início do jogo e perante o jogo directo adversário também se jogou em mais espaço. Como consequência, a Islândia aproximou-se mais vezes da baliza Portuguesa, principalmente decorrentes desse jogo directo, no seu momento de transição ofensiva, mas também das suas bolas paradas, e nalguns momentos, no contra-ataque. Num desses contra-ataques conseguiram mesmo uma oportunidade clara de golo que surge de uma recepção falhada de João Mário, resultando numa perda de bola anormal, explicada provavelmente pela ansiedade acima referida. Depois, Pepe, na impetuosidade do seu jogo procura a intercepção em vez da contenção, é ultrapassado, conseguindo a Islândia uma situação de 2×2+GR. Nesta situação Danilo erra na contenção e defesa do espaço, pois dá o espaço interior ao adversário com bola, permitindo-lhe uma finalização mais fácil.

Através do seu jogo directo, a Islândia esteve naturalmente mais forte na discussão do jogo aéreo. Damos exemplos de situações em que a Islândia ganhou consecutivamente essas acções. Problemas evidentes para Portugal na discussão da primeira bola, mas também no ganho da segunda bola, várias vezes por não ser garantida a concentração espacial para essa conquista.

Se numa fase posterior do jogo, Portugal conseguiu mais posse e controlo da bola, portanto um domínio em construção, daqui raramente evoluiu para um domínio em criação, ou seja, pela obtenção de sucessivas entradas no bloco adversário e consequente criação de situações de finalização, preferencialmente mais simples. Desta forma, para chegar à baliza adversária, recorreu iminentemente aos corredores laterais e aos cruzamentos, muitas vezes de espaços anteriores à grande área. Noutra situação conseguiu ainda uma oportunidade num passe longo directo para as costas da última linha aversária. Em todas estas situações, à partida mais fáceis de anular, a Islândia revelou, no entanto, dificuldades em defender os cruzamentos, que apesar de fortes na discussão das primeiras bolas aéreas, revelaram debilidades posicionais fruto das referências individuais que principalmente os seus Defesas-Centrais apresentaram. A sua última linha revelou ainda dificuldades no controlo da profundidade. Tudo isto apesar da Islândia ter conseguido reduzir o espaço de jogo pela proximidade das suas linhas em Organização Defensiva, garantindo assim, pelo menos, o cumprimento do princípio fundamental do jogo nesse momento… “garantir superioridade numérica” (no centro do jogo).

“Tivemos mobilidade e dinâmica, mas faltaram dois aspectos: a aceleração no momento em que ganhávamos o espaço e a definição no cruzamento. No cruzamento, insistimos muitas vezes no cruzamento por alto, é verdade que nesse aspecto conseguimos duas grandes oportunidades, uma pelo Nani e outra pelo Cristiano que não concretizámos.”

Fernando Santos, na conferência de imprensa após o jogo Portugal x Islândia, 14 de Junho de 2016.

“Na minha perspectiva, numa equipa que se quer assumir e quer ganhar o jogo, tivemos muitos jogadores fora da estrutura da equipa da Islândia. Quando eu digo fora da estrutura é jogarmos contra uma equipa montada em 4:4:2, em que fora da estrutura é tudo o que acontece à volta da equipa adversária e nós tivemos muitos jogadores à volta da Islândia. Nós conseguimos circular a bola, mas à volta da sua estrutura, mas raramente conseguimos entrar com muito perigo por dentro da estrutura. E porque é que não entrámos por dentro da estrutura? Porque João Moutinho veio pegar muito no jogo fora dessa estrutura. Fora da estrutura já estava o Danilo que estava entalado no meio dos Avançados adversários. Os dois Defesas-Centrais entraram pouco em condução pela estrutura adversária. E quando assim é, se já estavámos a falar de dois Centrais, de um Médio-Defensivo e mais um Médio, já é muita gente a jogar contra onze adversários que se encontram atrás da linha da bola, e assim torna-se mais difícil. O que poderia ser feito? Creio que João Moutinho poderia ter jogado numa linha mais avançada, ou seja, dentro da estrutura adversária e os Defesas-Centrais podiam ter assumido a construção. Temos que fazer mais isto para nos assumirmos como uma equipa que quer ganhar. E perdemos muito tempo com isto. Quando o conseguimos fazer, como é que o fizémos? Infelizmente fizémo-lo muito espaçadamente. Começámos a confundir aquele alinhamento dos quatro médios da Islândia, fundamentalmente com o avanço do Vieirinha, não tanto do Rafael Guerreiro na primeira parte, mais do Vieirinha, que estava sozinho no corredor, com o Médio, João Mário numa zona mais interior, e a partir daí, desfazendo o alinhamento dos quatro Médios, nós conseguimos começar a criar dificuldades à equipa da Islândia, aliás o nosso golo de Portugal é numa situação deste género”.

Carlos Carvalhal, no programa Euro 2016 de 14 de Junho, RTP3, 2016

Carlos Carvalhal explicou e as situações anteriores assim o demonstram. Entrada no bloco adversário e situações de finalização para os pés no corredor central. Contudo, foram situações raras.

Se a Islândia chegou poucas vezes à baliza Portuguesa, nos momentos em que o fez, foi perigosa, por ter chegado a situações favoráveis de finalização. Isto sucedeu pelas características Islandesas, nomeadamente a sua agressividade ofensiva, mas principalmente derivadas de problemas defensivos patentes na selecção Portuguesa, essencialmente ao nível do posicionamento e da decisão. Isto levou também a problemas de articulação intra-sectoriais, como foi claro no golo da Islândia. Se na nossa forma de pensar este jogo, não há espaço para um jogo prioritáriamente individual assente numa responsabilização individual, quer nos momentos defensivos, quer nos ofensivos, então a Defesa Individual não encontra, para nós, espaço na evolução que o Futebol viveu. A justificação desta posição levaria-nos a um trabalho mais aprofundado, que ficará para outro momento. Deixamos no entanto este pensamento:

“Uma casa estava guardada por dois cães, ao ser assaltada um dos ladrões chamou a atenção dos cães e logo estes “atacaram” o ladrão e perseguiram-no abandonando a casa, o outro ladrão entrou nela sem dificuldade. Numa outra casa que tinha dois cães “guardiões”, os ladrões utilizaram a mesma estratégia, os cães mostraram-se na mesma agressivos mas não largaram a porta da casa…”

César Luis Menotti

Esta situação, mostrou uma vez mais, os problemas e consequentes erros decorrentes desta forma de “pensar” o jogo das equipas. O próximo video descreve a nossa leitura da situação, contudo reforçamos que defender o espaço e não o adversário, é para nós atacar defendendo, jogar em acção e não em reacção, no fundo… é antecipar o futuro. Sobre tudo isto aconselhamos um livro já com 11 anos, revolucionário do ponto de vista teórico, que justifica esta visão do jogo.

Defesa à Zona no Futebol, Nuno Amieiro, 2005.

Defesa à Zona no Futebol, Nuno Amieiro, 2005.

“Há uma marcação individual que origina toda esta descoordenação. Porque se o comportamento fosse zonal, era uma situação facilmente resolvida não só pelo Pepe como pelo Vieirinha. Mas como a opção, não sei se opção, é muito difícil para nós estarmos a dizer que isto é uma opção da própria filosofia de jogo da equipa ou não, porque eu não sei, porque nós não sabemos o que o seleccionador quer, ou o que o treinador quer neste tipo de situações, mas aconselhava-se uma situação zonal.

(…)

Nós vemos aqui, o Pepe com uma referência individual sobre o ponta-de-lança, o Vieirinha sobre o outro, depois há um arrastamento, depois fica o outro sozinho. Se eles tivessem um comportamento zonal de um alinhamento em função da linha da bola, ou da linha do último defesa, esta bola era uma situação facilmente controlável por estes dois jogadores”.
Carlos Carvalhal, no programa Euro 2016 de 14 de Junho, RTP3, 2016
“Não se viram muitos cruzamentos, mas não se viu isto acontecer mais vezes”.
Marco Silva, no programa Euro 2016 de 14 de Junho, RTP3, 2016
“O que estará pensado será um posicionamento zonal, portanto é o Pepe que se acaba por deixar ir muito na ligação directa na marcação ao Sigþórsson, mas só o seleccionador sabe verdadeiramente o que pede aos jogadores para fazerem num momento destes. Teóricamente, se Pepe está já alinhado à frente do Vieirinha, isto não tinha acontecido.  (…) Depois Vieirinha tenta trocar com o Pepe, tenta trocar de homem, mas o Pepe já não percebe.”
Carlos Daniel, no programa Euro 2016 de 14 de Junho, RTP3, 2016

Numa derradeira leitura da situação do golo da Islândia, pode-se dizer que a metade esquerda da Defesa portuguesa defendeu à zona, de forma colectiva, e a metade direita defendeu de forma individual. Na última situação ilustrada no video, onde na prática, independentemente que poder ter acontecido de forma acidental, a Defesa acaba por apresentar um um posicionamento razoável sobre o espaço e sobre a zona mais perigosa para o adversário obter uma finalização de cruzamento, acaba por interceptar essa bola. E isto é o que significa antecipar o futuro.

Com o golo do empate da Islândia, a ansiedade regressou, consequentemente a equipa procurou chegar à baliza adversária de forma mais apressada, recorrendo cada vez mais aos espaços exteriores e aos corredores laterais, às variações longas de corredor, acumulando mais perdas e maior desgaste decorrente dos momentos de transição. As substituições, que procuraram transmitir maior ofensividade à equipa, potenciaram no entanto cada vez mais o jogo exterior e a progressão por fora do bloco adversário, ao serem acrescentados aos Defesas-Laterais dois Extremos praticamente sempre em largura máxima, o que intensificou os cruzamentos, aos quais os Islandeses foram respondendo com cada vez maior confiança. Atacando por fora do bloco Islandês, fez-lhe crecer o conforto e a segurança na sua organização defensiva. Um antigo profissional do Futsal, dizia que nessa modalidade era muito importante que no momento ofensivo, as equipas “tocassem ao meio”, o que significava precisamente que jogadores recebessem entre-linhas, portanto uma procura da construção dentro do bloco adversário. Segundo ele, isso provocaria desconforto e insegurança nos defensores, para além das situações em que essa acção conseguia colocar um atacante enquadrado no corredor central com a baliza, com os companheiros e respectivas soluções de último ou penúltimo passe e o(s) último(s) defensor(es). Dadas as grandes semelhanças entre as duas modalidades, no Futebol passa-se exactamente o mesmo.

“Adversário fechado no seu meio-campo: “Temos que ter muita paciência, como aconteceu ontem no jogo da Espanha, a Espanha manteve sempre a forma de jogar, não mudou em nada, e nós temos muita qualidade e teremos que fazê-lo da mesma maneira. Não nos podemos precipitar.”

Simão Sabrosa, Transmissão Portugal x Islândia, Sporttv, 2016

 Numa derradeira análise global, não esteve tudo errado nos momentos ofensivos da equipa portuguesa, e após o jogo de estreia, sentimos haver espaço para fazer crescer a organização ofensiva da equipa Portuguesa e rectificar estas questões. Como referimos atrás se Portugal foi dominate em construção, necessita agora de se tornar dominante em criação. O problema maior reside mesmo no momento defensivo, pois o que mais uma vez este jogo provou, é que subsistem, em jogadores de equipas de topo no Futebol mundial, referências individuais e consequentemente comportamentos defensivos individuais. E quanto a isto, perante a cultura, idade, estatuto, mentalidade, inexistência de tempo e provavelmente de abertura para desmontar estes hábitos, a selecção apresenta problemas graves nos seus momentos defensivos.

Finalmente, ainda para mais perante os erros cometidos, responder às provocações do treinador adversário, é decididamente algo que realmente NÃO importa, por muitas razões, mas também por retirar concentração ao que realmente importa.